Ressocialização ainda é um desafio no sistema prisional brasileiro
Baixa escolaridade, falta de oportunidades de trabalho e estigma social estão entre os entraves a serem superados.
Da Redação
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025
Atualizado às 07:15
A população carcerária no Brasil cresceu quase 900% desde 1990, atingindo cerca de 900 mil pessoas em 2024. Apesar de avanços em educação e trabalho como estratégias de ressocialização, os desafios persistem, especialmente devido à reincidência criminal, que ocorre rapidamente após a liberdade.
Políticas públicas e iniciativas, como o plano nacional "Pena Justa", buscam enfrentar essas questões, mas a falta de padronização de dados e o estigma social ainda dificultam mudanças estruturais.
Raio-X das prisões brasileiras
Em 1990, o Brasil contava com aproximadamente 90 mil pessoas presas. Esse número apresentou um crescimento expressivo nas décadas seguintes, atingindo 500 mil em 2010 (mais que quintuplicando) e ultrapassando 700 mil em 2016. Atualmente, a população carcerária é de quase 900 mil pessoas, considerando presos provisórios, sentenciados a diferentes regimes e aqueles em medidas de segurança.
A maior parte dos encarcerados no Brasil é composta por homens jovens, negros, com baixa escolaridade e pouca inserção no mercado de trabalho. Os crimes mais comuns são tráfico de drogas (o mais prevalente), seguido por roubo (qualificado e simples) e homicídio (qualificado e simples).
Além de ser identificado como o país com maior crescimento de população carcerária no período, o Brasil também investiu na criação de vagas nas prisões.
Em 1990, o Brasil contava com cerca de 300 unidades prisionais, número que cresceu significativamente, atingindo aproximadamente 1.700 em 2015 - ou seja, foram 1.400 estabelecimentos construídos.
Nos anos seguintes, porém, a infraestrutura prisional não acompanhou o aumento contínuo da população carcerária. Em 2020, havia menos unidades, devido a desativações, e o sistema contava com 1.395 prisões e, em 2024, com 1.386. Assim, o sistema prisional permanece em superlotação.
Crescimento desproporcional da população carcerária
Quando comparada ao crescimento da população nacional, a expansão do sistema prisional revela um contraste acentuado.
Segundo o IBGE, a população do Brasil era de 151 milhões em 1990 e cresceu para cerca de 213 milhões em 2024 - um aumento de 41%. Já a população carcerária registrou um crescimento de aproximadamente 900% no mesmo intervalo.
Reincidência criminal
Pode-se dizer que o interesse científico pelo cárcere, e pela temática da reincidência criminal, é crescente no país desde a década de 80. Contam como impulsionadores desse processo dois momentos decisivos da história nacional: a aprovação da LEP - Lei de Execuções Penais em 1984 e a Assembleia Nacional Constituinte, entre 1987 e 1988 - por estabelecerem a temática dos Direitos Humanos.
Em um dos primeiros trabalhos que buscaram estimar a taxa de reincidência, o NEV-USP - Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo constatou, em 1988, que 46% dos egressos do sistema penitenciário paulista retornavam à prisão.
Em 1991, os mesmos pesquisadores - os sociólogos Sérgio Adorno e Eliana Bordini - analisaram quantos egressos haviam sofrido nova condenação e o resultado foi o de 29%.
Em 1999, no Rio de Janeiro, a socióloga e coordenadora do Cesec - Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, Julita Lemgruber, calculou a taxa de 30% de retorno à prisão.
Em 2008, a CPI do sistema carcerário da Câmara dos Deputados indicava que cerca de 70% dos presos voltavam a cometer crimes, embora essa taxa tenha sido questionada por sua falta de fundamentação metodológica.
Em 2015, o Ipea - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, em parceria com o CNJ, produziu o relatório "Reincidência criminal no Brasil". Considerando a pessoa que, depois de cumprir pena, voltou a ser condenada em ação penal, o estudo chegou a uma taxa de 24%.
Na sequência, em 2019, o CNJ publicou o relatório "Reentradas e reiterações infracionais: um olhar sobre os sistemas socioeducativo e prisional brasileiros", em que apontou recidiva de 42,5% no sistema prisional.
Recentemente, estudo realizado pelo Depen - Departamento Penitenciário Nacional e pelo Gappe-UFPE - Grupo de Assessoria, Planejamento e Pesquisa Econômica da Universidade Federal de Pernambuco, aponta para valores entre 37% e 42%, conforme diferentes ênfases em torno do conceito de reincidência. O documento considera informações de 12 Estados e do DF, com dados de 979 mil pessoas que estiveram presas entre 2010 e 2021.
Os números das pesquisas são significativamente menores do que os 70% estimados na CPI de 2008, mas ainda indicam desafios na ressocialização e reintegração social dos egressos do sistema penitenciário.
Legislação e princípios para a ressocialização
Apesar da reincidência ser um tema que preocupa, a legislação brasileira prevê diversos mecanismos para a reintegração do apenado na sociedade. A questão que se coloca é: seriam os dispositivos meramente prescritivos e pouco executados?
No topo do ordenamento jurídico nacional, a CF/88 explicita o direito à educação e ao trabalho a todos (art. 6º) - decorrentes do próprio princípio da dignidade da pessoa humana.
No art. 203 também está prevista assistência social a quem precise, visando a integração do indivíduo ao mercado de trabalho. Ainda, no art. 205 está previsto o incentivo à educação, em parceria com a sociedade, visando o desenvolvimento humano, o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho.
A LEP - lei de execução penal (lei 7.210/84) logo em seu primeiro artigo, expressa a preocupação com a integração social da pessoa condenada e internada. E, para cumprir essa finalidade, estabelece como deveres do Estado diferentes tipos de assistência no art.10: material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa.
O quesito trabalho, tal como disposto nessa lei, tem finalidade educativa e produtiva - e não está sujeito ao regime da CLT.
Para complementar as disposições da LEP no que diz respeito à educação e ao trabalho - considerados fundamentais para a emancipação dos indivíduos - outros instrumentos normativos podem ser citados. Um deles é a LC 79/94, responsável pela criação do Funpen - Fundo Penitenciário Nacional.
No art. 3º está prevista a destinação de recursos para ações pedagógicas relacionadas ao trabalho profissionalizante e também formação educacional e cultural do preso e do internado.
As resoluções 14/94 e 3/09 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária integram o núcleo protetivo em torno do trabalho e da educação nos estabelecimentos penais.
A primeira estabelece regras mínimas para o tratamento de presos no país, dispondo sobre instrução e assistência educacional (art. 38 a 42), bem como atividades laborais e remuneração (art. 56).
A segunda resolução dispõe sobre as diretrizes nacionais para a oferta de educação nos estabelecimentos penais, e prevê que o trabalho prisional deve ser ofertado em horário e condições compatíveis com as atividades educacionais (art. 8º).
Dada sua importância, a realização de atividades de estudo e trabalho influi diretamente na progressão de regime do apenado - condicional (CP, art. 83, III), aberto (LEP, art. 114, I), saída temporária (LEP, art. 122, II e III) - e remição da pena (LEP, art. 126): cada 12 horas de frequência escolar, segmentadas em pelo menos três dias, significam um dia a menos de pena. E a cada três dias trabalhados, um dia a menos.
A legislação internacional, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) e o Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos (OEA, 1988), reconhece a educação e o trabalho como direitos fundamentais.
No sistema prisional, a ONU reforça essa proteção nos Princípios Básicos ao Tratamento de Reclusos (1990) e nas regras mínimas para o tratamento de prisioneiros, garantindo atividades culturais, educação e trabalho digno, sem insalubridade ou discriminação. Além disso, destaca-se a necessidade de compatibilizar essas atividades com a reintegração social e profissional do indivíduo.
Desafios para sair do mundo do crime
"Quando alguém entra no mundo do crime, rapidamente se fecham as portas do mercado de trabalho formal. A comunidade se afasta quando sabe que alguém cometeu um crime, mesmo que esse indivíduo não vá para o presídio. Às vezes, a família também vira as costas. A chance de ser arregimentado por grupos criminosos só cresce" - Almir de Oliveira Junior, sociólogo, Ipea (Viana, 2023, p. 80).
Apesar da prescrição legislativa, a prática, elucidada pelo números que o sistema prisional fornece, é repleta de dificuldades individuais e institucionais que precisam ser superadas, principalmente com relação à educação, ao trabalho, aos vinculos sociais e ao estigma carregado pelos egressos do sistema penal. Dados do Senappen - Secretaria Nacional de Políticas Penais mostram essa realidade.
Educação e trabalho
Quanto à educação, dos quase 900 mil apenados atualmente, apenas cerca de 86 mil têm ensino fundamental completo, somente 104 mil concluíram o ensino médio, e 20 mil são analfabetos.
No quesito trabalho, nem 20% da população de apenados desenvolve algum tipo de atividade. Cerca de 44% dos estabelecimento penais não dispõem de módulos laborais. O número dos que estudam e trabalham simultaneamente não chega a 4%.
Nesse tocante, tanto a educação como o trabalho são desejáveis porque além de ensejarem melhores oportunidades e perspectivas permitem contatos com a realidade externa, evitando que os apenados sejam colocados em liberdade em situação ainda mais grave do que quando entraram no sistema prisional.
Representam, de fato, um retorno à legitimidade social, a possibilidade de efetivamente se recuperarem e (re) estabelecerem os laços sociais que amparam a vida e o bem-estar dos sujeitos. A questão é que iniciativas como as previstas na LEP devem ser encaradas como direitos universais e inalienáveis e não como benefícios destinados a poucos.
Vínculos
Outra informação a se destacar é que, da população que vive no cárcere, quase 25% não tem informação de visitantes cadastrados - apontando para a falta de manutenção, ainda que restrita, de vínculos positivos com o mundo externo. O resultado tende a ir na contramão dos efeitos corretivos e reabilitadores da pena:
"Ao romper esses vínculos sociais, o indivíduo passa a assimilar valores, hábitos, vocabulário e códigos próprios do sistema prisional, em um processo de aprendizagem que implica 'dessocialização', refletida na recusa a normas admitidas pela sociedade exterior" (Viana, 2017, p. 101).
Preconceito
O estigma que acompanha o egresso desponta como um dos fatores determinantes para reincidência criminal. Quando o indivíduo é rejeitado pela sociedade, sem conseguir se colocar no mercado de trabalho e sem o apoio familiar, o risco de apenas conseguir se sustentar com a ajuda do crime organizado é alto. E, nessa situação, a exigência é a participação em novos delitos.
Nesse cenário, as deficiências do sistema penitenciário como que encaminham o preso para a carreira no crime. De acordo com o sociólogo Almir de Oliveira Junior, "a criminalidade, como qualquer profissão, demanda aprendizado. Como usar uma arma? Quando desistir da empreitada? Como lidar com uma pessoa que reage ou corre? qual é o lugar ideal para realizar um assalto? O melhor lugar para aprender é a penitenciária, onde estão aqueles que já detêm o conhecimento" (Viana, 2023, p. 80).
Ainda sobre a questão do estigma, a socióloga Maiara Corrêa, do NEV-USP, aborda algumas das dificuldades de se conseguir deixar para trás o negativo legado prisional:
"[...] o estigma do ex-presidiário equivale a ter sua trajetória marcada na carne. É fácil identificar, pela linguagem corporal e verbal, pelas roupas, alguém que passou pelo cárcere [.] Quando se consegue superar a primeira barreira e ser contratada, de modo geral surgem as queixas de que a pessoa não sabe se portar, nem lidar com os colegas, nem se adequar à disciplina que o ambiente de trabalho exige" (Viana, 2023, p. 81).
Legislativo
Apesar dos dispositivos legais e das diretrizes internacionais, o relatório final de 2015 da CPI do Sistema Carcerário Brasileiro, realizado pela Câmara dos Deputados, declarou que a ressocialização no Brasil ainda estava em estágio muito incipiente, sendo inexistente em diversos estabelecimentos penais. O documento também convocou a sociedade a atuar em conjunto com o Estado a fim de que avanços no tema fossem alcançados.
No documento, foram apresentadas uma série de propostas para solucionar, ainda que pontualmente, os problemas identificados ao longo da investigação.
Assim, atualmente tramitam na Câmara dos Deputados dois projetos de lei voltados à inclusão de condenados e egressos do sistema prisional no mercado de trabalho.
O primeiro estabelece a reserva de um percentual de mão de obra para esse público em contratos firmados com a Administração Pública (PL 4.562/23). Já o segundo propõe incentivos e subvenções econômicas para pessoas jurídicas que contratarem egressos do sistema penitenciário (PL 2.683/15).
Ambas as iniciativas buscam fomentar a reintegração social por meio do trabalho, reduzindo a reincidência criminal.
Judiciário
Paralelamente, em 2015, a questão carcerária estava sendo colocada em discussão no STF, na ADPF 347 protocolada pelo PSOL. Em 2024, ao analisar o pedido, a Corte reconheceu haver um estado de coisas inconstitucional.
"Há um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro, responsável pela violação massiva de direitos fundamentais dos presos. Tal estado de coisas demanda a atuação cooperativa das diversas autoridades, instituições e comunidade para a construção de uma solução satisfatória", diz a tese firmada pelo Supremo.
Ao reconhecer tal situação, o STF reconheceu, também, que o sistema penitenciário no país não serve efetivamente à ressocialização - como já havia apontado a CPI de 2015. Para fomentar mudanças, a Corte determinou a elaboração de um plano nacional de enfrentamento, chamado Pena Justa.
O projeto foi construído de forma conjunta entre o CNJ e a União, e contou com ampla participação social - coletadas cerca de 6 mil propostas em audiência pública, consulta pública e contribuições institucionais.
Homologado em dezembro de 2024, o plano apresenta 50 ações mitigatórias e mais de 300 metas a serem cumpridas. Os Estados e o DF têm até junho de 2025 para apresentar ao STF planos alinhados ao nacional, e até 2027 para concluir a implementação.
As medidas se distribuem em 4 eixos:
- controle da entrada e das vagas prisionais para enfrentar a superlotação;
- melhoria da infraestrutura e dos serviços,
- processos de saída e reintegração social;
- garantia de que as transformações sejam permanentes, evitando retrocessos.
No eixo I, destacam-se iniciativas como a adoção de um modelo nacional de audiências de custódia, ampliação de medidas alternativas à prisão - como alternativas penais, monitoração eletrônica e justiça reparativa -, revisão do encarceramento de grupos específicos, como mulheres envolvidas em crimes patrimoniais e de drogas, e realização de mutirões processuais periódicos.
O eixo II aborda melhorias nas condições dos presos, com visitas virtuais complementares, implantação de escolas em todas as unidades prisionais - atendendo ao menos 80% da população -, e atividades de cultura, esporte, lazer e leitura. Há também a ampliação de oportunidades de trabalho, com cotas no serviço público e oficinas privadas dentro das prisões, vinculadas à remição de pena.
O terceiro eixo foca na reintegração social, fortalecendo as Raesp - Redes Estaduais de Atenção a Pessoas Egressas do Sistema Prisional - que articulam instituições e políticas públicas para apoiar egressos e seus familiares. Incluem-se a consolidação da política de atenção aos egressos, estímulos à contratação de ex-detentos e extinção da pena de multa por hipossuficiência. A Política de Atenção a Pessoas Egressas (resolução CNJ 307/19) inclui os Escritórios Sociais, que oferecem assistência interdisciplinar a egressos e pré-egressos, e um escritório virtual que facilita o acesso a serviços básicos, cursos e ofertas de trabalho.
No eixo IV, destacam-se o suporte aos servidores penais, produção de relatórios sobre atividades e orçamento, e padronização de dados nacionais. O programa Fazendo Justiça (CNJ/PNUD/apoiadores) oferece 29 ações voltadas ao ciclo penal e socioeducativo, auxiliando tribunais, elaborando normas e planejando atividades para enfrentar os problemas do sistema prisional.
Essas medidas visam combater a crise estrutural do sistema penitenciário brasileiro. O STF, apesar de críticas, tem assumido protagonismo para superar bloqueios políticos e institucionais, atuando em consonância com a decisão sobre a ADPF 347 e enfrentando os desafios dessa questão histórica.
Referências
SENAPPEN - Secretaria Nacional de Políticas Penais. Prisões no Brasil. Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios. Acesso em: 27 jan. 2025.
SISDEPEN - Sistema de Informações Penitenciárias. Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen. Acesso em: 27 jan. 2025.
VIANA, D. A volta ao erro. Revista Pesquisa FAPESP, edição 328, p. 76-81, 2023. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2023/05/076-081_reincidencia-criminal_328.pdf. Acesso em: 27 jan. 2025.
VIANA, L. Trabalho e educação como instrumentos de emancipação nas prisões. In: FIDALGO, F.; FIDALGO, N. Sistema prisional - teoria e pesquisa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.