O perigo das "gralhas": Veja confusões causadas por erros tipográficos
Substituição acidental de letras, causando equívocos, já atingiu até mesmo Machado de Assis.
Da Redação
sexta-feira, 11 de outubro de 2024
Atualizado às 15:20
Na tipografia, a troca de uma letra por outra - que pode gerar equívocos, confusões e até ironias cômicas - é chamada de "gralha". Foi exatamente uma dessas "gralhas" que provocou a indignação de um advogado de Santos/SP nesta semana. Ele disse que acionará a Justiça após receber nota fiscal de uma ótica contendo a descrição "cliente trouxa".
A ótica se justificou, alegando que tudo não passou de um erro de digitação. A troca da letra "e" pela "a" transformou o termo "cliente trouxe" em "cliente trouxa", fazendo com que a informação passasse de uma simples descrição para uma ofensa.
A gralha, além de prejudicial, parece também ser capciosa: por que será que muitas vezes acaba gerando termos ofensivos ou vulgares?
Machado de Assis, por exemplo, enfrentou grande contratempo com um erro tipográfico.
No prefácio da segunda edição de sua obra Poesias Completas, publicada em 1902, a palavra "cegara", na frase "lhe cegara o juízo", foi trocada por um embaraçoso "cagara".
O editor de Machado era Baptiste-Louis Garnier, um francês estabelecido no Brasil e proprietário da editora Garnier Frères, responsável por obras compostas e impressas na França. A solução encontrada foi a correção manual, livro por livro. Um funcionário da Garnier, Everardo Lemos, sugeriu raspar a letra "a" e substituir pela letra "e", usando nanquim.
Entre os bibliófilos - colecionadores de livros raros - circula a história de que o próprio Machado de Assis, já idoso e debilitado, teria participado desse esforço coletivo para corrigir os exemplares, ajudando a reescrever a letra.
Alguns livros, no entanto, escaparam da correção manual e foram vendidos antes da intervenção.
O segundo lote, que chegou ao Brasil já com a retificação, deu origem a três versões distintas da obra: a original, uma com a correção manual e outra com a correção tipográfica.
Atualmente, todas essas edições são extremamente raras. No sebo "Estante virtual" exemplares, com a correção manual, são vendidos por R$ 1.800 e R$ 2.500.
O bruxo do velho Cosme não precisaria ter ficado tão preocupado. No fim das contas, poderia ter sido apenas uma traquinagem do demônio Titivillus, famoso na Idade Média por causar erros nos manuscritos dos monges copistas.
Ou, quem sabe, ele poderia ter encontrado algum consolo ao descobrir que, em 1768, houve deslize muito mais explícito na folha de rosto.
Hoje com um exemplar na Biblioteca Nacional, o livro "Obras", de Claudio Manoel da Costa, ícone do arcadismo, foi impresso com uma curiosa troca de letras, resultando no inexistente e memorável "Orbas".
O escritor, ensaísta e bibliófilo brasileiro Eduardo Frieiro, em sua obra "Os livros, nossos amigos", relata um curioso caso de gralha.
Ele menciona um obituário de um jornal carioca que trazia a seguinte frase: "O honrado Senador X passou os últimos anos de sua existência entre duas mulatas". O correto seria "muletas".
Mesmo na era digital esse tipo de falha é comum e nem mesmo os órgãos oficiais escapam. Em 2019, uma porTaria do Ibama foi publicada no DOU com o insólito termo "porcaria".
"Esta Porcaria entra em vigor na data de sua publicação no Diário Oficial da União", dizia o documento.
O erro foi logo detectado e, graças às facilidades do mundo digital, o texto foi corrigido no mesmo dia.
Some-se ao que foi narrado até aqui, uma gralha que chegou ao Judiciário brasileiro.
Em 2012, uma lanchonete foi indenizada por danos morais e materiais após um erro em anúncio divulgado em lista telefônica no Paraná. O anúncio veiculado entre 2008 e 2009 trocou "sucos exóticos e grelhados" por "sucos eróticos e gralhados", além de divulgar o número de telefone errado.
Acionar o Judiciário também é a intenção do advogado de Santos/SP que recebeu nota com a palavra "trouxa" no lugar de "trouxe".
Do nosso ponto de vista - com o perdão do trocadilho - a ótica deveria ser poupada da contenda.
Afinal, se até Machado de Assis, com toda a sua genialidade, foi vítima de uma gralha tão embaraçosa, talvez o erro em uma nota mereça um pouco de indulgência e bom humor.