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Racismo estrutural

Moradora que ofendeu síndica após ser vítima de racismo não indenizará

Desembargador, citando Jorge Aragão, criticou postura de minimizar ou ignorar racismo estrutural na sociedade, ressaltando necessidade de reavaliação das condutas em situações de culpa concorrente.

Da Redação

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Atualizado às 15:02

A 34ª câmara de Direito Privado do TJ/SP reformou sentença que havia condenado condômina a pagar R$ 9 mil por ofensas à síndica e ao subsíndico. O tribunal reconheceu a existência de culpa concorrente, pois a moradora havia sido, antes, xingada de "macaca" pelos autores da ação.

Conforme o acórdão, a síndica e o subsíndico ajuizaram a ação por danos morais contra a moradora após serem ofendidos por ela. O juízo de 1ª instância, com base em um vídeo anexado aos autos que mostrava a moradora proferindo xingamentos, condenou-a ao pagamento de indenização por danos morais.

A condômina recorreu da decisão, alegando cerceamento de defesa, pois a sentença foi proferida apenas com base no vídeo, sem a oitiva de testemunhas.

Ela juntou boletins de ocorrência que corroboravam sua versão dos fatos, alegando que ofendeu a síndica e o subsíndico porque eles a chamaram de "macaca" e a ameaçaram de morte. Afirmou, ainda, que esses argumentos foram apresentados na contestação, mas não foram considerados pelo juízo de 1ª instância.

 (Imagem: Freepik)

Desembargador entendeu que reação da moradora foi justificada após ter sofrido racismo.(Imagem: Freepik)

Racismo Estrutural

Ao analisar o recurso, o desembargador Luiz Guilherme da Costa Wagner destacou a importância de considerar todas as circunstâncias que levaram ao descontrole emocional da condômina.

Ressaltou que a síndica e o subsíndico silenciaram a respeito das graves alegações de injúria racial e ameaça de morte, o que, segundo o art. 374, II e III, do CPC, torna-as incontroversas, dispensando dilação probatória.

"Causa perplexidade, para dizer o mínimo, observarmos que a grave afirmação trazida nos autos, de que uma pessoa teria chamado a outra de 'macaca', fora fato totalmente desprezado neste processo. Repita-se: os autores sequer se deram ao trabalho de responder em réplica tal situação, ainda que fosse para falar que a acusação era mentirosa."

O relator criticou a postura de desprezo em relação à acusação de racismo, reforçando que chamar uma pessoa negra de "macaca" é um ato grave que não pode ser ignorado ou minimizado.

"Simplesmente se ignora tal questão, parecendo ser algo sem importância. E o que é pior: talvez realmente para alguns seja uma questão sem importância."

Também lamentou que expressões, piadas e xingamentos raciais sejam vistos como "comuns" na sociedade vitimada pelo racismo estrutural. Para ilustrar, citou trechos de um poema de Jorge Aragão.

"Esse processo nos mostra que realmente o racismo estrutural tende a nos fazer acreditar que um negro ser chamado de 'macaco' é algo normal e que não deve gerar maiores reflexos; distorção da realidade assim como o 'preto de alma branca', imortalizado nos versos do poeta Jorge Aragão:

'Se preto de alma branca pra você

É o exemplo da dignidade

Não nos ajuda, só nos faz sofrer

Nem resgata nossa identidade.'"

Além disso, o desembargador reconheceu que, embora a reação da condômina não fosse a mais adequada, o contexto de ofensas raciais e ameaças justificava uma reavaliação da sentença original.

Considerou, assim, que as condutas da síndica e do subsíndico contribuíram significativamente para a situação de descontrole da moradora, configurando uma situação de culpa concorrente.

Com base nesses fundamentos, o colegiado deu provimento ao recurso, julgou improcedente a ação indenizatória e inverteu a sucumbência.

Veja o acórdão.