Entidades acionam STF contra norma do CFM que restringe aborto legal
Resolução publicada pelo conselho de medicina veda realização de "assistolia fetal" para casos de gravidez resultante de estupro com mais de 22 semanas.
Da Redação
segunda-feira, 8 de abril de 2024
Atualizado às 12:03
O partido Psol e entidades como a Sociedade Brasileira de Bioética acionaram o STF pedindo a suspensão da resolução do CFM - Conselho Federal de Medicina que proibiu a realização de procedimento usado em casos de interrupção de gestação avançada em casos de estupro.
A resolução CFM 2.378/24 foi publicada na última quarta-feira, 3, e veta a assistolia fetal, que consiste numa injeção de produtos químicos que provocam a morte do feto para, depois, ser retirado do útero da mulher.
O procedimento é recomendado para casos de aborto legal acima de 22 semanas a fim de evitar, entre outras coisas, que o feto seja expulso com sinais vitais antes da sua retirada do útero. Mas a norma proíbe a realização do procedimento.
A petição foi enviada ao STF no âmbito da ADPF 989, a qual já tramita na Corte desde 2022 e pede que o Supremo garanta a possibilidade de aborto nas hipóteses previstas em lei. O texto afirma que, "ao impor às vítimas de violência sexual que buscam os serviços de saúde com gravidez mais avançada (acima de 22 semanas) a obrigatoriedade de manter a gravidez até o termo para posterior doação, representa uma grave violação de direitos humanos, com caracterização de tratamento desumano e degradante pelo Estado".
Diz, ainda, que a orientação contraria expressamente a OMS, segundo a qual o procedimento representa "o melhor padrão em termos de medicina baseada em evidências e como parâmetro civilizatório científico para os seus Estados membros".
Ao apontar violação do direito à saúde e não observação do dever de prevenir violência contra meninas e mulheres, o texto pede o deferimento de cautelar para suspender a resolução.
Leia a petição.
- Processo: ADPF 989
A resolução
A norma publicada pelo Conselho de Medicina diz o seguinte:
Art. 1º É vedado ao médico a realização do procedimento de assistolia fetal, ato médico que ocasiona o feticídio, previamente aos procedimentos de interrupção da gravidez nos casos de aborto previsto em lei, ou seja, feto oriundo de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas.
Atualmente, pela literatura médica, um feto com 25 semanas de gestação e peso de 500 gramas é considerado viável para sobreviver a uma vida extrauterina. No período de 23 a 24 semanas, pode haver sobrevivência, mas a probabilidade de qualidade de vida é discutida. Considera-se o feto não viável até a 22ª semana de gestação.
O conselheiro do CFM e relator da resolução, Raphael Câmara, ressaltou que, a partir da 22ª semana de gestação, há possibilidade de vida extrauterina, e a realização da assistolia fetal pelo profissional nesses casos, portanto, não teria previsão legal.
Ele lembrou ainda que o Código de Ética Médica estabelece que é vedado ao profissional praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação vigente no país.
De acordo com o conselheiro, o CFM não se opõe a casos de aborto previstos em lei, uma vez que a resolução trata apenas da proibição da assistolia fetal a partir da 22ª semana de gestação. "A mulher não é obrigada a ficar com aquele fruto indesejável do estupro", completou. Segundo ele, após 22 semanas, os casos não configurariam mais aborto, mas antecipação de parto.
Para o CFM, ultrapassado o marco temporal das 22 semanas de gestação, deve-se preservar o direito da gestante vítima de estupro à interrupção da gravidez e o direito do nascituro à vida por meio do parto prematuro, "devendo ser assegurada toda tecnologia médica disponível para sua sobrevivência após o nascimento".
Questionado se a resolução abarca os demais casos de aborto legal previstos no Brasil, como quando há risco de vida para a gestante e fetos com anencefalia, o conselheiro explica que o texto se aplica apenas a casos de gravidez oriunda de estupro.
Constitucionalidade
Para a coordenadora da ONG feminista Grupo Curumim, Paula Viana, a resolução "mais desprotege do que atende aos direitos das mulheres".
"Não existe, na Constituição brasileira, esse conceito de vida desde a concepção. Portanto, é uma resolução também inconstitucional, que desprotege, principalmente meninas e mulheres. A criminalização fica visível, pois considera valores, coloca a vida de meninas e mulheres com baixo valor, expõe mais a riscos."
Ela também destaca que o conceito de saúde precisa ser mais amplo do que o proposto pela resolução, e que casos de violência sexual são muito complexos, envolvendo a família e a comunidade.
"A gente tem um estatuto legal que permite essa proteção, não importa a idade gestacional. Isso não é discutível na pauta da preservação e da promoção da saúde. É uma resolução com forte caráter moralista e, infelizmente, violadora de tantos direitos. (...) O que está sendo negado é o acesso à melhor tecnologia que existe, segundo a Organização Mundial da Saúde, a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia."
Limbo e riscos
A coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Flávia Nascimento, avalia que, com a resolução, vítimas de estupro que estejam com mais de 22 semanas de gestação passam a ocupar uma espécie de limbo ao tentar acessar o aborto legal em serviços de saúde. "A gente tem uma legislação, desde 1940, que não impõe nenhuma limitação ao direito ao aborto legal. Não se discute, isso é um direito."
"É uma norma que é expressamente contrária à lei. Pode fazer com que os profissionais de saúde deixem de cumprir com seu dever legal, podendo incidir, inclusive, em ato criminoso, como omissão de socorro."
Com informações da Agência Brasil.