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Oscar 2024

ABC da censura: Entenda o movimento que pede banimento de livros nos EUA

Pedidos de censura cresceram vertiginosamente em 2022 e casos chegam à Suprema Corte.

Da Redação

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Atualizado em 18 de fevereiro de 2024 18:28

(Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos acesos - Ray Bradbury, no livro Fahrenheit 451)

A designação "terra da liberdade", pela qual os Estados Unidos são reconhecidos, é questionável diante do vertiginoso aumento de pedidos de censura a livros em bibliotecas públicas e escolares.

Segundo a ALA - American Library Association e a PEN America, em 2022 foram 1.269 pedidos, o maior número registrado em 20 anos. Entre os mais de 2.000 livros catalogados como "restritos", "questionados" ou "proibidos" para estudantes, em até 37 Estados norte-americanos, destacam-se obras como "A vida de Rosa Parks", "Maus", "O Caçador de Pipas", "O Hobbit", "The Handmaid's Tale" e "O Diário de Anne Frank".

A restrição suscita preocupações sobre o acesso à diversidade literária e à liberdade de expressão. O curta-metragem documental da MTV "The ABCs of Book Banning" (Os ABCs da Proibição de Livros), que recebeu indicação ao Oscar 2024, na categoria melhor documentário de curta-metragem, mostra a perspectiva dos estudantes acerca da proibição das obras.

Duas faces da mesma liberdade

A Primeira Emenda da Constituição norte-americana assegura que o Congresso não legislará para restringir a liberdade de palavra e de imprensa.

Por outro lado, a segunda parte deste dispositivo proíbe a obstrução do direito de petição. É com base nela que grupos pedem a reconsideração de aquisição, ou manutenção, de livros pelas bibliotecas. 

A diretora do departamento de liberdade intelectual da ALA - American Library Association, Deborah Caldwell-Stone, destaca que nos Estados Unidos as bibliotecas são regulamentadas localmente, ou seja, não estão na alçada do governo. Assim, a decisão final acerca dos pedidos administrativos é dos bibliotecários.

Ela ressalta que cada equipe deve decidir conforme as necessidades da comunidade, seguindo a Constituição, sem favorecer um ponto de vista ou opinião.

Cortes de Justiça

A Justiça norte-americana também desempenha papel importante sobre o tema. 

Em 1982, no caso Island Trees School District vs. Picoa Suprema Corte proferiu uma das primeiras decisões vetando o banimento. Por 5 votos a 4, os magistrados entenderam que o poder discricionário dos conselhos escolares é secundário em relação ao enunciado da Primeira Emenda.

Segundo Deborah Caldwell-Stone, o entendimento da Suprema Corte vem sendo mantido, não se admitindo censura com base em discriminação. Ela destacou o recente caso Leila Little et al vs. Llano Couty, no Texas. 

A ação foi ajuizada em 2022 e as partes aguardam o julgamento pela Corte de Apelação de Nova Orleans. Uma liminar foi concedida em março de 2023, pelo juiz distrital Robert Pitman, ordenando que o sistema bibliotecário devolvesse 17 títulos às prateleiras.

A diretora da ALA afirma que muitos desses livros tratavam das experiências da população LGBTQIA+ ou de racismo e escravidão nos Estados Unidos. Quando os livros foram removidos, diz Deborah, os bibliotecários foram orientados a queimá-los.

Na mira da censura

Dados da ALA apontam que os temas mais recorrentes em livros objeto de pedidos de censura são violência e abuso físico (49%), saúde e bem-estar de estudantes (42%), experiências sexuais (33%), racismo e raça (30%), questões LGBTQIA+ (30%) e luto ou morte (29%).

Um documento da associação identifica os livros mais banidos em 2022.

 (Imagem: ALA - American Library Association)

Documento da ALA mostra os 13 livros que mais foram objeto de pedidos de censura em 2022.'(Imagem: ALA - American Library Association)

Ainda, o censo registra que 30% dos pedidos em 2022 partiram de pais de crianças e adolescentes, e que 49% dos requerimentos destinaram-se a bibliotecas públicas. Os Estados que até agora mais acataram os pedidos de censura foram a Flórida, seguida pelo Texas, Missouri e Utah.  

Acirramento político

Para Deborah Stone, o acirramento político vivenciado no país colaborou com o aumento dos pedidos de censura. Foram formados grupos que gostariam de ver suprimidas informações a respeito minorias, dando à História apenas um viés.

Ela defende que as bibliotecas sejam diversificadas, refletindo experiências, interesses e preocupações de todas as pessoas. 

"Todos usam as bibliotecas, todos pagam impostos. Se você é gay ou negro, você deve encontrar livros que refletem sua vida e experiências nas prateleiras de uma biblioteca", completa. 

Censura no Brasil

Segundo a diretora-executiva da Câmara Brasileira do Livro, Fernanda Garcia, a censura é algo bem característico de regimes autoritários e em certos momentos da história o Brasil baniu não só livros, mas outras produções artísticas.

Em 1937, durante o primeiro governo Vargas, os escritores Jorge Amado e José Lins do Rego tiveram obras apreendidas e queimadas em público por "simpatia com o comunismo". A situação foi noticiada pelo Jornal do Estado da Bahia. 

 (Imagem: Reprodução Jornal do Estado da Bahia)

Durante o regime militar, de 1964 a 1985, o Ato Institucional 5 endureceu a censura na imprensa e a liberdade de expressão. O livro Feliz Ano Novo, publicado em 1975, por José Rubem Fonseca, é um exemplo de obra que chegou a ser recolhida pelo departamento da PF, sob a justificativa de abordar temas envolvendo sexo, violência e conflito entre classes sociais.

Atualmente, segundo Fernanda Garcia, não é possível que uma petição leve à censura de livros, já que a CF é bem direta ao defender a liberdade de expressão no art. 5º.

Ela explica que, no âmbito das bibliotecas brasileiras, a equipe de profissionais definirá se os títulos são ou não adequados. A administração das bibliotecas é descentralizada, já que existem bibliotecas municipais, estaduais e o Sistema Nacional de Bibliotecas Federal. Este é vinculado ao ministério da Cultura e visa promover as bibliotecas no país, estabelecer acervo e criar políticas de fomento à leitura. 

Apesar da impossibilidade de censura, dois episódios nos últimos seis anos revelam que alguns agentes públicos insistem na ideia do banimento de obras literárias.

Em 2019, durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro, o então prefeito, Marcelo Crivella, determinou que a HQ "Vingadores: a cruzada das crianças" fosse recolhida. Segundo manifestou a prefeitura, os quadrinhos teriam "conteúdo sexual" ao retratar o beijo entre duas personagens do sexo masculino.

A ação, entretanto, surtiu efeito oposto e aguçou a curiosidade da população. O influenciador Felipe Neto comprou 14 mil exemplares da obra e as distribuiu, gratuitamente, na entrada do evento.

Ademais, em duas decisões, ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, do STF, barraram a apreensão dos livros pela prefeitura. 

 (Imagem: Jornal O Globo)

Periódico noticiou o recolhimento dos gibis na Bienal do Livro carioca.(Imagem: Jornal O Globo)

Em novembro de 2023, a secretaria da Educação de Santa Catarina determinou que escolas estaduais retirassem nove livros de circulação das bibliotecas. Entre eles, "It: A coisa", "Laranja Mecânica" e "Exorcismo". 

 (Imagem: Folha de S.Paulo)

No curta-metragem "The ABCs of Book Baning", Grace Linn, uma idosa centenária, vai à reunião da junta escolar de um condado para protestar contra o banimento de livros.

Ela faz questão de mostrar uma colcha que costurou à mão, na qual retrata diversas obras banidas no país. Em sua fala, Grace alerta que proibir é ter medo do conhecimento, e medo do conhecimento não é liberdade. 

Apesar das diferenças culturais e sistêmicas entre Estados Unidos e Brasil, preocupa o crescimento de movimentos que estimulam a censura e o controle de obras, prejudicando o acesso de pessoas a conhecimento sobre minorias e à liberdade de pensamento.

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