"Para que não se repita": Relembre o 8/1 e entenda os desdobramentos
Há um ano, extremistas invadiam os prédios chantados na praça dos Três Poderes e provocavam destruição. Conquanto recuperados os edifícios públicos, ficou no ar o temor de que a democracia, ainda incipiente no Brasil, estivesse por um fio.
Da Redação
domingo, 7 de janeiro de 2024
Atualizado em 8 de janeiro de 2024 10:20
"Traidor da Constituição é traidor da Pátria."
Ulysses Guimarães,
presidente da Assembleia Nacional Constituinte.
8 de janeiro de 2023, Dia da Infâmia. A invasão da Praça dos Três Poderes, em 2023, deixou uma indelével marca do potencial destrutivo do extremismo crescente enfrentado no Brasil nos últimos anos.
Como reiterado pela então presidente do STF, ministra Rosa Weber, para a manutenção da integridade democrática, a data deve ser lembrada sempre "para que nunca mais se repita".
Dia D
Eram duas da tarde de domingo quando os brasileiros, que se preparavam para o início de mais uma semana, foram surpreendidos com a notícia de uma invasão aos prédios das principais instituições nacionais em Brasília/DF.
Manifestantes que estavam há muitos dias acampados em frente ao QG do Exército, e outros que, provenientes dos quatro cantos do Brasil, juntaram-se a eles naquele dia, iniciaram uma caminhada em direção ao coração do Poder em Brasília.
Sob a concretude da Esplanada, e a conivência de alguns, irromperam as barricadas e foram participar do que chamavam no codinome do crime de "Festa da Selma".
A Praça em si, que é barreira geográfica, não foi limite suficiente. De fato, com o real objetivo de atingir o âmago republicano, ferindo a democracia, os prédios foram invadidos: o Congresso Nacional, o STF e o Palácio do Planalto.
Salas depredadas, objetos e documentos destruídos e furtados, e a porta do armário do ministro Alexandre de Moraes foi exibida como "prêmio".
O ataque só foi contido por volta de 18h30 daquele dia, com o acionamento da Força Nacional. Após a desocupação, os prédios foram interditados e periciados.
Entre os incontáveis prejuízos, notou-se que uma réplica da Constituição de 1988 fora furtada. Felizmente, o exemplar original manteve-se intacto, pois está em um museu do Tribunal, fora da área invadida.
Além da Constituição, a obra "Bandeira do Brasil", de Jorge Eduardo, foi encontrada boiando sobre a água que inundou todo o andar, após vândalos abrirem os hidrantes ali instalados. Outra obra depredada foi "As mulatas", de Di Cavalcanti, encontrada com sete rasgos, de diferentes tamanhos. Trata-se da principal peça do Salão Nobre do Palácio do Planalto, cujo valor estimado é de R$ 8 milhões.
Ainda, a escultura em bronze avaliada em R$ 250 mil, "O Flautista", de Bruno Giorgi, foi encontrada destruída. A Galeria dos ex-presidentes também foi arruinada, com todas as fotografias retiradas da parede, jogadas ao chão e quebradas.
O Relógio de Balthazar Martinot, presente da Corte Francesa para Dom João VI, datado do século XVII e de valor inestimável, foi reiteradamente lançado ao chão.
Repercussão
Os ataques repercutiram nos jornais do Brasil e do mundo. The New York Times e The Guardian compararam a invasão à ocorrida em 6/1/21 no Capitólio.
No Brasil, a faculdade de Direito da USP realizou um ato em defesa da democracia, reunindo personalidades do mundo jurídico.
A OAB lançou manifesto em apoio à democracia brasileira, que foi lido pelo presidente, Beto Simonetti, na abertura do ano Judiciário de 2023.
Outras figuras políticas importantes, entidades e ministros do STF demonstraram repúdio à invasão.
Ação e contenção
Como os golpistas estavam há semanas reunidos diante do QG do exército e diante de "ameaças de guerra", o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, no dia anterior ao ataque, já havia autorizado a atuação da Força Nacional para proteção da ordem pública e do patrimônio, por meio da portaria 272/23.
Após as invasões, o presidente Lula assinou um decreto determinando intervenção Federal no DF até o dia 31/1/23 para pôr fim ao comprometimento da ordem pública no Estado, e nomeou como interventor Ricardo Cappelli.
A PGR iniciou investigação para apurar a responsabilidade dos envolvidos e a AGU pediu a reintegração de posse da Esplanada, para que todos os imóveis fossem desocupados pelos manifestantes sob pena de multa.
Em 11 de janeiro, dois dias após o ataque, mensagens nas redes sociais anunciavam uma "mega manifestação nacional pela retomada do poder" com o bloqueio de estradas. Sob ameaça de novos atos golpistas, o ministro Alexandre de Moraes atendeu a pedido da AGU e proibiu qualquer interrupção de tráfego em todo o Brasil.
Omissão e facilitação?
O governador do DF, Ibaneis Rocha e o então secretário de Segurança Pública, Anderson Torres foram imediatamente afetados com a deflagração dos ataques. E recentemente, numa entrevista, o presidente Lula lhes atribui culpa pelo ocorrido.
Para o bom andamento das investigações, o governador do DF foi afastado, fato que perdurou até 15/3/23. O então PGR, Augusto Aras, pediu abertura de uma investigação contra o ex-governador ao STJ.
Anderson Torres, exonerado do cargo por Ibaneis Rocha, negou conivência com os atos. Enquanto os ataques ocorriam, Torres - que havia assumido o cargo há apenas 7 dias na secretaria do DF, curiosamente tinha tirado férias nos Estados Unidos, em local próximo de onde se encontrava o ex-presidente Bolsonaro, que não se dignou a passar a faixa presidencial.
A AGU e o diretor-Geral da PF pediram no STF a prisão em flagrante do ex-secretário de Segurança Pública. O ministro Alexandre de Moraes determinou a prisão de Torres, acusado de omitir, ou facilitar, a invasão dos prédios.
Anderson Torres foi preso ao desembarcar no Brasil e liberado da preventiva quase cinco meses depois. Segue cumprindo medidas cautelares.
Bode expiatório?
Taxados como golpistas, terroristas e vândalos pela mídia, apoiadores do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, e demais pessoas ligadas à extrema direita, insurgiram nas redes sociais com uma versão fantasiosa, acusando a esquerda de forjar o ataque. Afirmaram que "esquerdistas" se infiltraram na "manifestação pacífica" para provocar destruição e, depois, culpar os manifestantes de direita.
A tentativa de distração durou pouco, porque muitos dos manifestantes fizeram auto-prova do ataque, filmando e publicando em redes sociais a ação, sempre debochando das instituições. As próprias redes sociais tornaram-se fundamentais na identificação dos suspeitos.
No próprio dia 8 de janeiro, o ministro Alexandre de Moraes determinou que empresas de telecomunicações guardassem a localização geográfica dos celulares.
Mesmo diante de tudo isso, o ex-presidente, em recente entrevista à CNN, disse que o "8" foi uma "armadilha da esquerda".
O fato é que o trabalho dos papiloscopistas também foi essencial para a identificação dos atores, pela via das impressões digitais e comparações faciais. O cruzamento de dados auxiliou na identificação primária dos envolvidos.
Outra tentativa de mudar o foco de responsabilidade à época atingiu o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, que chegou a ser denunciado pela ala bolsonarista. O deputado Federal Nikolas Ferreira apresentou ao STF pedido de investigação contra Dino por suposta omissão nos atos antidemocráticos, alegando que o ministro teria conhecimento prévio das ações via Abin - Agência Nacional de Inteligência.
Ministro Alexandre de Moraes, entretanto, arquivou o pedido por entender que não havia indícios da prática de crime por Dino, nem a indicação de meios, tempo e lugar em que supostas condutas teriam sido realizadas.
Prisões imediatas
Segundo o STF, entre 8 e 9 de janeiro foram realizadas 2.170 prisões. No dia 10, o MPF apresentou um relatório revelando a situação dos custodiados na ANP - Academia Nacional de Polícia em Brasília que estavam em acampamentos em frente ao QG do Exército em Brasília.
O MPF relatou que boa parte das pessoas custodiadas não eram de Brasília e "possivelmente vieram ao QG a partir de ônibus gratuitos de suas cidades financiados por agentes organizadores dos atos".
O parquet esclareceu que, após a prisão, as pessoas eram identificadas, tinham termo de flagrante lavrado e eram, ou liberadas, ou encaminhadas à penitenciária (Papuda ou Colmeia).
A OAB/DF fez diligências no local para verificar as condições da custódia. A Ordem constatou que as pessoas reunidas na Academia estavam no ginásio ou em barracas no jardim, que eram fornecidas refeições, que os banheiros estavam em ordem e que havia posto médico para acompanhamento integral. Também pontuou que uma sala para atendimento da advocacia foi disponibilizada.
Audiências de custódia
Foram realizadas 1.397 audiências de custódia sob a coordenação da corregedoria do CNJ, principalmente por magistrados do TRF da 1ª região e juízes do TJ/DF.
No mesmo dia das prisões, o ministro Alexandre de Moraes autorizou a liberação de maiores de 70 anos, idosos entre 60 e 70 anos que apresentassem comorbidades e mulheres com filhos menores de 12 anos.
Liberdade provisória e prisões preventivas
Dez dias após o ataque, entre 18 e 20 de janeiro, ministro Alexandre de Moraes converteu prisões em flagrante em preventivas e concedeu liberdades provisórias, com imposição de cautelares, como o uso de tornozeleira eletrônica.
No total, 938 pessoas tiveram a prisão em flagrante convertida em preventiva e 459 obtiveram a liberdade provisória.
As cautelares foram concedidas, segundo o ministro, porque, apesar dos fortes indícios de autoria e materialidade, não foram juntadas provas da violência, invasão e depredação. Já a manutenção de prisões teve como fundamento a garantia da ordem pública e da efetividade da investigação.
Atualmente, segundo dados do STF, apenas 66 pessoas permanecem presas preventivamente.
Denúncias
Em abril de 2023, o STF, no plenário virtual, formou maioria para tornar réus 100 acusados de participação nos atos golpistas. Esse montante representava uma parcela ínfima do total de 1.354 denúncias formalizadas e recebidas pela Corte.
Enquanto oito ministros seguiram o voto do relator Alexandre de Moraes, pelo recebimento das denúncias, ministros Nunes Marques e André Mendonça divergiram, em parte, dos demais.
Nunes Marques votou por rejeitar 50 denúncias contra investigados, entendendo que o fato de os acusados estarem acampados nas imediações do QG do Exército, sem individualização das condutas, não era justa causa para a propositura das ações. Quanto às demais, Nunes Marques entendeu que deveriam ser analisadas pela Justiça Federal.
Mendonça também entendeu que não havia provas contra os 50 acusados e, quanto aos outros, entendia que as ações deveriam ser analisadas em 1ª instância, não pelo Supremo.
Os quatro primeiros
Foi com muita expectativa nacional que em setembro de 2023 o STF julgou os quatro primeiros réus dos ataques antidemocráticos.
O primeiro foi condenado pelos crimes de associação criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e por crime contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural.
Prevaleceu o voto do relator, ministro Alexandre de Moraes, que foi acompanhado por seis dos onze ministros. S. Exa. propôs a pena de 17 anos de prisão e o pagamento solidário - com os demais condenados - de R$ 30 milhões para ressarcimento de danos. Os demais ministros divergiram do relator acerca do quantum da pena.
Com fundamentos similares ao da condenação do primeiro réu, o segundo foi condenado a 14 anos de prisão; o terceiro e o quarto foram condenados a 17 anos de prisão. Este último julgado no plenário virtual.
Até o momento, segundo dados do STF, além dos quatro mencionados, mais 26 réus foram condenados.
Legislativo e CNJ
Paralelamente aos julgamentos no STF, o Congresso Nacional instalou, em maio, uma CPMI para investigar os atos antidemocráticos. Cinco meses depois, em outubro, o relatório conclusivo foi divulgado pela relatora, senadora Eliziane Gama.
Nele, foi aprovado, com 20 votos favoráveis e 11 contrários, o indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de mais 60 pessoas, acusados de tentativa de golpe de Estado durante a invasão da sede dos três Poderes.
Em setembro, o CNJ anunciou que investigaria magistrados e servidores do Judiciário suspeitos de envolvimento com os ataques.
Quem mandou matar a democracia?
Apesar dos indiciamentos aprovados pelo Congresso e dos julgamentos no STF, ainda resta um longo caminho para que todos os envolvidos nos brutais ataques sejam responsabilizados.
Não só quem esteve na balbúrdia será processado e julgado. As investigações seguem para apurar quem financiou toda a movimentação que culminou no dia da infâmia.
A Operação Lesa Pátria, da PF, desde janeiro de 2023, investiga quem estimulou os atos golpistas. No primeiro dia de 2024, um empresário de Londrina/PR foi o primeiro denunciado como financiador dos ataques.
Democracia inabalada
O prédio do STF foi reconstruído em tempo recorde: menos de um mês após os ataques os ministros já se encontravam na plenário físico para a abertura de mais um ano Judiciário.
Em sessão histórica, a então presidente do STF, ministra Rosa Weber (atualmente aposentada), afirmou que os vândalos "não destruíram o espírito da democracia. Não foram e jamais serão capazes de subvertê-lo, porque o sentimento de respeito pela ordem democrática continua e continuará a iluminar as mentes e os corações dos juízes desta Corte Suprema, que não hesitarão em fazer prevalecer sempre os fundamentos éticos e políticos que informam e dão sustentação ao Estado Democrático de Direito".
No mesmo dia os ministros e servidores do STF realizaram um abraço simbólico ao redor da sede da Corte. A ministra reiterou, em diversas oportunidades, a importância de rememorar a data, para que não se repita.
Agora, um ano após os acontecimentos, o Supremo realiza uma exposição em seu edifício-sede. "Após 8 de janeiro: Reconstrução, memória e democracia" é o nome da mostra que será aberta em 8 de janeiro de 2023. No mesmo prédio, que outrora fora depredado, o STF abre as portas para que a civilidade e a memória preencham o recinto.
Enquanto a apuração do fatídico dia segue o devido processo legal e os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito, outrora desrespeitados pelos próprios réus dos ataques, as instituições, com pesar, mas com resiliência, aludem à data como uma representação de "memória" para que ela não repita, jamais.
Epíteto
No dia 9 de janeiro, ao relatar os episódios, e porque estávamos no Dia do Fico, este nosso rotativo alcunhou o dia 8 como o Dia da Infâmia. No dia 21 de janeiro, ministro Gilmar assinou um artigo na Folha de S.Paulo chamando a data de Dia da Infâmia, que passou assim a ser denominado por parta da imprensa e pela própria então presidente do STF.