Para diretor de patente da Ericsson, falta de proteção reduz inovação
Ícaro Leonardo destaca que a falta de proteção efetiva de patentes pode levar a uma diminuição dos índices de inovação do Brasil.
Da Redação
segunda-feira, 9 de outubro de 2023
Atualizado em 10 de outubro de 2023 08:04
"Há desequilíbrio nos recentes debates sobre patentes essenciais (ou, Standard Essential Patents - SEPs) e potencial impacto no ecossistema da inovação e redução em investimentos em pesquisa na indústria de telecomunicações". Este é o entendimento do diretor de patentes da Ericsson, Ícaro Leonardo da Silva.
Segundo executivo, a falta de proteção do tema pode levar a uma diminuição dos índices de inovação do país e reduzir a relevância do Brasil no cenário global no que diz respeito às discussões sobre patentes essenciais.
Para destrinchar o tema, Migalhas escutou o diretor de patentes da Ericsson. Confira.
Migalhas: Qual a importância das patentes?
Ícaro: "As patentes são cruciais na partilha voluntária de conhecimento e tecnologia e promoção do desenvolvimento tecnológico. Ao tornarem suas invenções tecnológicas públicas por meio de patentes, os titulares dessas patentes recebem, em contrapartida, um período de exclusividade limitado sobre a invenção.
Entre as opções de uso das patentes, os seus titulares podem decidir licenciá-las a terceiros, em troca de uma remuneração adequada pelos investimentos substanciais de tempo e recursos no desenvolvimento de tais invenções. Patentes e licenciamento permitem-nos continuar a investir em inovação e desenvolvimento (I&D), resultando em tecnologia que beneficia a todos.
No caso da indústria de telecomunicações, o licenciamento das patentes mediante remuneração adequada, é fundamental para a continuidade dos ciclos de inovação de cada geração da tecnologia: o licenciamento das patentes essenciais do 4G foi responsável por financiar parte das pesquisas necessárias para o desenvolvimento do 5G, e o licenciamento das patentes essenciais ao 5G terão papel similar, financiando parte das pesquisas dos sistemas futuros, como o 6G."
Migalhas: Por que a indústria de telecomunicações é diferente de outros setores?
Ícaro: "Em contraste com algumas indústrias em que as patentes são utilizadas principalmente para excluir outras empresas de um mercado, no caso da indústria de telecomunicações, o licenciamento dessas patentes desempenha um papel ativo no desenvolvimento da indústria, tendo em vista a padronização das tecnologias desenvolvidas e implementadas em diferentes setores.
A padronização dessas tecnologias é o que permite a interoperabilidade e compatibilidade de diferentes equipamentos entre si. Dessa forma, para garantir acesso à tecnologia padronizada, as organizações que contribuem com suas tecnologias inovadoras para o padrão, comprometem-se voluntariamente a licenciar suas patentes essenciais, ou seja, as patentes integradas aos padrões, em termos FRAND (Fair, Reasonable and Non-Discrimatory - Justo, Razoável e Não Discriminatório). Tais licenças são concedidas mediante compensação justa e adequada, que permitirá aos titulares das patentes essenciais continuarem investindo em pesquisa e desenvolvimento e contribuindo com suas tecnologias para o desenvolvimento das próximas gerações."
Migalhas: Por que a padronização é tão importante?
Ícaro: "A padronização é o resultado de um processo consensual entre as partes relevantes de uma indústria para garantir a criação de sistemas, produtos e serviços de bom desempenho, de acordo com as diretrizes definidas, normalmente no âmbito de organizações de padronização, tal como o Instituto Europeu de Padrões de Telecomunicação (European Telecomunications Standards Institure, ETSI). O objetivo é maximizar a compatibilidade, interoperabilidade, segurança, repetibilidade e qualidade.
O desenvolvimento de um padrão técnico baseia-se no consenso de diferentes partes, incluindo fornecedores, operadores, usuários finais, grupos de interesse e governos. É graças a essa interoperabilidade que smartphones 5G de um fabricante podem se comunicar com equipamentos de rede celular desenvolvidos por outro fabricante. Ou, que um smartphone 5G de um operador de um país funcione perfeitamente em outro. E sem as patentes essenciais, o processo de padronização da tecnologia e o enorme avanço tecnológico na área, dificilmente teriam ocorrido, especialmente em poucas décadas, como se observou."
Migalhas: A Comissão Europeia (CE) apresentou em abril de 2023 uma proposta de reforma do licenciamento de patentes essenciais que vem sendo duramente criticada pela mídia especializada em propriedade intelectual. Ao que você atribui tais críticas?
Ícaro: "Creio que a maior parte das críticas se deve ao fato das justificativas da CE para intervir no licenciamento de patentes essenciais não serem fundamentadas em evidências, além de haver questionamentos sobre a efetividade da proposta em atingir os objetivos expostos pela CE.
A proposta sugere a introdução de novos mecanismos e complexidades ao licenciamento das patentes essenciais, que podem gerar um desequilíbrio no mercado e, consequentemente, poderiam resultar na desaceleração de inovação na indústria de telecomunicações e indústrias que se beneficiam de tecnologias como a do 5G.
Além disso, a proposta não prevê mecanismos para a prevenção de 'hold-out', prática adotada por algumas empresas visando evitar e/ou atrasar o pagamento de royalties pelo maior tempo possível, enquanto seus equipamentos infringindo tais patentes continuam sendo comercializados.
Também é desconsiderado o fato do licenciamento de patentes essenciais ser global, e que uma regulamentação regional na União Europeia pode desencadear a fragmentação de padrões globais como o 5G, em detrimento dos interesses da sociedade e consumidores."
Migalhas: Como está a situação no Brasil em relação às patentes essenciais?
Ícaro: "A relevância do Brasil no cenário global de patentes essenciais se dá em dois âmbitos: o primeiro consiste nas centenas de invenções por ano (como as relacionadas ao 5G) depositadas junto ao INPI - Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, incluindo patentes de inventores brasileiros e de centros de pesquisas estabelecidos no Brasil. Nesse sentido, a indústria de telecom, através dos depósitos de patentes essenciais e outras patentes no Brasil, tem contribuido com o índices de inovação do país.
O segundo, intimamente relacionado com o primeiro, está relacionado ao fato do contínuo reconhecimento no Brasil do valor da propriedade intelectual e, mais especificamente, de patentes para o desenvolvimento tecnológico e socioeconômico do país, e a necessidade de um ordenamento jurídico que ofereça proteção adequada e efetiva a esses direitos. Os tribunais brasileiros têm sido cada vez mais acionados no contexto de disputas globais envolvendo licenças de patentes essenciais, e o tópico tem atraído cada vez mais interesse no debate público.
Por fim, vale mencionar um recente debate em que participei em agosto de 2023 sobre patentes essenciais do 5G, no 'I Seminário sobre Proteção da Inovação em Tecnologia da Informação e Comunicação', organizado pela UFRJ e um outro debate em setembro de 2023, conduzido por alguns colegas, na EMERJ - Escola de Magistratura do Rio de Janeiro, entitulado 'Temas Relevantes do Direito de Patentes'.
Vale, também, mencionar o relatório do GIPI - Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual que incentiva um contínuo e equilibrado debate, reconhecendo os interesses, tanto dos desenvolvedores de tecnologias padronizadas, como de seus usuários, além de concluir pela ausência de necessidade de alteração da legislação de propriedade industrial brasileira para lidar com o tema."
Migalhas: E se diminuíssem os mecanismos jurídicos de proteção aos titulares de patentes essenciais no Brasil?
Ícaro: "Uma das razões do protagonismo do Brasil no cenário global das patentes essenciais, com um grande número de depósitos de patentes, dá-se pelo fato de que quando há um desacordo entre as partes no licenciamento global de patentes essenciais, é possível acionar a justiça brasileira, que garante o direito dos titulares, inclusive através de medidas liminares.
Em debates recentes no Brasil sobre patentes essenciais, alguns participantes defendem a redução desses direitos. Existem muitas questões jurídicas a serem analisadas antes de qualquer especulação nesse sentido. No âmbito do licenciamento de patentes essenciais, não podemos esquecer que implementadores têm acesso imediato à tecnologia, e é importante que, tanto o titular da patente, como seus implementadores, tenham incentivos para negociar uma licença justa. Infelizmente, muitas vezes titulares de patentes não têm outra alternativa senão acionar o judiciário para lidar com aqueles implementadores que se recusam a negociar em boa-fé. De todo modo, tal discussão deve sempre levar em consideração seu potencial impacto nos incentivos para inovação no Brasil, em especial na indústria de telecomunicações."
Migalhas: Caso este modelo seja alterado, o que pode ser afetado?
Ícaro: "Investimentos em pesquisa e desenvolvimento são incentivados, e em grande parte são dependentes do licenciamento de patentes, em especial no âmbito de tecnologias padronizadas. Portanto, se houver barreiras que dificultem o exercício do direito dos titulares de patentes e a obtenção de compensação justa e razoável, tais incentivos e recursos diminuiriam, resultando em menos inovação, e em uma possível redução do número de invenções, incluindo aquelas desenvolvidas e submetidas no Brasil.
Não podemos esquecer, também, que isso poderia afetar o necessário reconhecimento aos inventores brasileiros, em grande parte pós-doutores, doutores, mestres, pós-graduados, que vêem na carreira de inventor uma alternativa de aplicar seus conhecimentos na indústria."