Crime do restaurante chinês suscitou debate sobre racismo em 1938
Acusado de assassinato, Arias de Oliveira foi comparado a "monstro" e jornais fizeram referência a sua cor da pele.
Da Redação
sexta-feira, 6 de outubro de 2023
Atualizado às 13:00
Em 1938, um homem negro foi acusado de ser autor de uma chacina que matou quatro pessoas dentro do restaurante chinês Órion, em São Paulo, capital.
À época, os jornais chamaram o suspeito de "monstro" e fizeram referência a sua aparência, à cor da sua pele e ao porte físico, considerando que ele tinha "o vigor necessário para cometer o crime".
Em três oportunidades, sendo duas delas perante o Tribunal do Júri, Arias de Oliveira foi absolvido dos quatro homicídios.
O processo deu visibilidade à temática do preconceito racial. Conheça essa história.
Chacina
Era 2 de março de 1938, uma Quarta-feira de Cinzas, quando o lituano Pedro Adukas, cozinheiro do restaurante chinês Órion, chegou ao trabalho. Bateu palmas no portão, mas não foi recebido. Eis que notou o cadeado aberto e resolveu entrar no estabelecimento.
Para sua surpresa, encontrou no salão do restaurante seus dois companheiros de trabalho, o também lituano José Kulikevicius e o brasileiro Severino Lindolfo Rocha, mortos no chão do salão, com os rostos desfigurados e envoltos em poças de sangue.
Encaminhou-se para os fundos do estabelecimento, onde encontrou seu patrão, o chinês Ho-Fung, também assassinado. Pedro decidiu subir até o segundo piso, local de residência do patrão. Lá encontra a esposa de Ho-Fung, Maria Akiau, também morta.
Em um cenário com quatro homicídios, o cozinheiro acionou a polícia da capital paulista.
No curso das investigações, a polícia concluiu que os funcionários foram atacados enquanto dormiam sobre as mesas do restaurante e o assassino usara como instrumento um pilão de madeira de 70 cm, deixado no local do crime.
Ho-fung havia sido golpeado na cabeça e tinha um laço de algodão apertado no pescoço; sua mulher foi assassinada por esganadura. A polícia também constatou que o cofre do restaurante não foi roubado.
O restaurante
Fundador do restaurante Órion, localizado à rua Venceslau Braz, 13, próximo à Praça da Sé, Ho-Fung chegou ao Brasil em 1926. Ele encontrou emprego em um restaurante pertencente a João Akiau Ching, o qual, posteriormente, tornar-se-ia seu cunhado.
Ho-Fung casou-se com Maria Akiau, irmã de João, em 1933. No mesmo ano do casamento, a mãe de Maria faleceu. Com o dinheiro da herança, o casal abriu o restaurante Órion, muito frequentado por advogados, já que próximo ao Palácio da Justiça, sede do TJ/SP.
Suspeitas
O primeiro apontado como suspeito foi o irmão de Maria, João Akiau, por supostamente invejar a prosperidade do cunhado. Ho Det Men, que veio da China com Ho-Fung, também foi indicado como suspeito, pois foi visto nas redondezas do restaurante.
No entanto, uma denúncia mudaria o rumo da investigação. Um garçom do restaurante, Manoel Custódio, conhecido como Maneco, em seu terceiro depoimento à polícia, apontou Arias de Oliveira, um ex-funcionário do Órion, como suspeito.
Arias trabalhara no local durante 16 dias e havia pedido demissão na sexta-feira antes do Carnaval. Segundo Maneco, o ex-funcionário voltara ao restaurante na terça-feira para pedir o emprego de volta e no mesmo dia cometera os crimes.
O acusado e a prisão
Arias nasceu em Franca/SP, nunca conheceu o pai e foi abandonado pela mãe aos 10 anos, tendo sido criado pelo tio. Em 1937, aos 24 anos, migrou para São Paulo/SP, com a intenção de ser motorista particular, mas só encontrou empregos temporários, como o do restaurante chinês.
Após a acusação de Maneco, Arias teve a prisão decretada em 9/3/38. Sua prisão foi amplamente noticiada pelos jornais.
Segundo o podcast Casos Forenses, produzido pelo TJ/SP, os jornais chamaram Arias de "monstro" e fizeram referência a sua aparência, à cor da sua pele e ao porte físico, considerando que ele tinha "o vigor necessário para cometer o crime".
O acusado foi submetido a exames, em uma época na qual se utilizavam técnicas da escola positivista, como a perícia "antropopsiquiátrica", com análise do corpo e traços que indicariam se o ex-funcionário do Órion teria inclinação à prática de crimes.
Arias negara seu envolvimento no crime, mas mudou a versão e confessou que esteve no estabelecimento no dia dos assassinatos.
Em um primeiro momento, apontou Maneco como culpado, mas o Manoel tinha um álibi consistente. Assim, Arias acabou confessando a autoria.
Defesa
O movimento Frente Negra Brasileira contratou o advogado Paulo Lauro para defender o acusado. Foi o primeiro caso de renome do advogado, formado pela Faculdade de Direito da USP e que, futuramente, tornar-se-ia deputado Federal e prefeito de capital paulista.
A defesa do caso foi pautada na alegação de inconsistência das provas, da relatividade dos testes realizados e da imprestabilidade da confissão.
Julgamento
Em 31/1/39, no Tribunal do Júri do Palácio da Justiça, foi iniciado o julgamento. O júri foi presidido por Paulo de Oliveira Costa, magistrado que hoje dá nome ao Salão do Júri do Palácio. Por maioria de 4 a 3, em razão da insuficiência de provas, Arias foi declarado inocente.
Entretanto, o MP recorreu da decisão e, em junho de 1940, a 1ª câmara do TJ/SP acolheu as alegações de nulidade do parquet. Segundo o acórdão, a regra que assegurava o direito do promotor, defesa e jurados de inquirirem testemunhas havia sido desrespeitada. Além disso, o tribunal entendeu que os esclarecimentos dos peritos não tinham sido transcritos, de modo que a falta impediria uma sentença justa.
Em 9/9/40 ocorreu o segundo júri, conduzido pelo mesmo magistrado. Novamente, Arias foi absolvido por 4 a 3.
O MP novamente interpôs recurso. Em 27/8/42, três desembargadores da 2ª câmara Criminal do Tribunal de Apelação se reuniram para julgá-lo. Ao final, dois desembargadores votaram pela absolvição e um pela condenação.
Na época, o CP permitia que o Tribunal absolvesse ou condenasse o réu quando considerasse que a decisão dos jurados não encontrava apoio nas provas dos autos. Atualmente, esse tipo de decisão não é possível. O máximo que o tribunal pode fazer é anular o julgamento e encaminhar o caso para novo júri, ou, eventualmente, modificar a pena aplicada.
De acordo com Boris Fausto, historiador e autor do livro "O Crime do Restaurante Chinês", a percepção pública da imagem de "monstro" do réu foi alterada no período entre sua prisão e julgamento. Para o escritor, na época, a realização da Copa do Mundo de 1938 fez com que o noticiário apontasse semelhança física entre Arias e o grande ídolo do futebol, Leônidas da Silva, suavizando a imagem do acusado.
Após a tripla absolvição, Arias assinou uma petição, em 1943, solicitando a devolução de sua CNH.
Essa é a última peça do processo, hoje em exposição no Museu do TJ/SP, em São Paulo/SP, e indica que Arias conseguira o desejado emprego de motorista particular.
- Veja as peças do processo.