Após votos de Zanin e Barroso, STF tem 4 a 2 contra o marco temporal
Julgamento foi interrompido devido ao horário e será retomado na próxima semana.
Da Redação
quinta-feira, 31 de agosto de 2023
Atualizado em 1 de setembro de 2023 11:43
Nesta quinta-feira, 31, durante sessão plenária do STF, os ministros Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso votaram contra a fixação de marco temporal para demarcação de terras indígenas.
Em sessões anteriores, outros quatro ministros já haviam votado. Edson Fachin (relator) e Alexandre de Moraes contra o marco temporal, por considerarem que a terra indígena deve ser definida por tradicionalidade. Por outro lado, os ministros Nunes Marques e André Mendonça entendem que a falta de um marco causa insegurança jurídica.
Marco temporal é uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. Ela se contrapõe à teoria que considera que o direito desses povos sobre as terras tradicionalmente ocupadas é anterior à criação do Estado brasileiro, cabendo a este apenas demarcar e declarar os limites territoriais.
O julgamento
Relator, ministro Edson Fachin, manifestou-se contra o marco temporal. Para S. Exa., a proteção constitucional aos "direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam", não depende da existência de um marco nem da configuração do esbulho renitente com conflito físico ou de controvérsia judicial persistente na data da promulgação da Constituição.
O posicionamento do relator foi acompanhado pelo ministro Alexandre de Moraes, o qual entende que a adoção de um marco temporal pode ignorar totalmente direitos fundamentais.
Em contrapartida, ministro Nunes Marques, foi favorável ao marco temporal. S. Exa. entende que a Constituição de 1988 reconheceu aos indígenas, entre outros pontos, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, mas essa proteção constitucional depende do marco temporal.
Solução adequada
Ministro André Mendonça, na sessão plenária de ontem, seguiu a divergência inaugurada por Nunes Marques. Para S. Exa., "os conceitos que delineiam o marco temporal da ocupação, configuram-se a solução que melhor equilibra os múltiplos interesses em disputa".
Nesta tarde, o julgamento foi retomado com a conclusão do voto de Mendonça que apresentou a seguinte tese:
"Os direitos territoriais indígenas consistem em direito fundamental dos povos indígenas e se caracterizam, no direito originário, sobre as terras que tradicionalmente ocupam sob os seguintes pressupostos:
1- A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial a posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;
2- A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e das necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições nos termos do parágrafo 1º do art. 231 da CF/88;
3- A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam depende da existência do marco temporal caracterizado em 5 de outubro de 1988;
4- Ainda que não verificada a observância ao marco temporal é assegurada a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, quando verificado o remitente esbulho configurado como um conflito físico ou controvérsia judicial persistente a data da promulgação;
5- Inexistindo a presença do marco temporal da constituição de 1988 ou de remitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente a data da promulgação da Constituição, podem ser utilizados os demais instrumentos previstos na legislação de regência para solução da questão, dentre os quais a instituição de reserva indígena, mediante prévio procedimento expropriatório, desde que haja consentimento livre, prévio e informado das comunidades indígenas envolvidas;
6- O laudo antropológico, realizado nos termos do decreto 17.076/96, deve ser elaborado por comissão multidisciplinar aberto a questionamentos pelas partes interessadas com a participação obrigatória de especialistas indicados pelos entes federativos envolvidos. E é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos costumes e tradições;
7- O redimensionamento de terra indígena só é admitido nos casos em que se verifica a presença de vício de nulidade insanável durante o prazo decadencial estipulado pela legislação de regência;
8- As terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;
9- As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;
10- São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a posse, o domínio ou a ocupação das terras de ocupação tradicional indígena, ou a exploração das riquezas do solo, rios e lagos nelas existentes, não assistindo ao particular direito à indenização ou ação em face da União pela circunstância da caracterização da área como indígena, ressalvado o direito à indenização das benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé;11- Há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente;
12- Usufruto dos índios não se sobrepõe aos interesses da política de defesa nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alterativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho igualmente estratégico a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa ouvido o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consultas às comunidades indígenas envolvidas, assim como a FUNAI;
13- A atuação das forças armadas da polícia federal e das demais forças de seguranças na área indígena, no âmbito das respectivas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às respectivas comunidades indígenas ou a FUNAI;
14- O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de equipamentos públicos, redes de comunicação e estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação."
Proteção constitucional
Em seguida, ministro Cristiano Zanin votou contra o marco temporal. Segundo S. Exa., "a proteção constitucional dos direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas independe da existência de marco temporal".
"Não se pode validar a tese do marco temporal das terras indígenas, o que representaria ignorar tais populações, não podendo comprovar a posse tradicional. Podem [indígenas] ter sido forçados a deslocamentos involuntários, remitentes esbulhos, alvos de conflitos ou ameaças."
S. Exa., contudo, reconheceu a possibilidade de indenização a particulares que adquiriram terras de "boa-fé". Nessa vertente, a indenização por benfeitorias e pela terra nua valeria para proprietários que receberam do governo títulos de terras que deveriam ser consideradas como áreas indígenas.
"Em situações complexas, o Estado pode e deve transferir às partes a possibilidade de construção de uma solução pacificadora, que preserva o interesse de todos os envolvidos e traga segurança jurídica necessária para continuidade de atividades, negócios e usufruto dos bens envolvidos no conflito."
Posteriormente, Zanin seguiu a tese apresentada pelo relator (Fachin), contudo, propôs novas redações as teses 3, 4, 5, 9, 10, 11 apresentadas pelo relator:
"3 - A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 ou da configuração do remitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial ao tempo da promulgação da Constituição, uma vez que não há no texto constitucional base para o estabelecimento de qualquer marco temporal;
4 - Existindo posse tradicional indígena ao tempo da promulgação da constitucional de 1988, o regime de indenização respeitará dupla vertente, conciliando o disposto no art. 231 parágrafo 6º com o art. 37, parágrafo 6º, ambos da Constituição de 1988;
5 - O laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.776/1996 é um dos elementos fundamentais para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de terras indígenas;
9 - Assiste ao particular não indígena o direito a indenização pelas benfeitorias decorrentes da ocupação de boa-fé e da e pelo valor da terra nua, consoante o regime de responsabilidade civil da administração pública por eventual dano causado pelos entes federados e pela União, em decorrência da titulação de terras tradicionalmente ocupadas após procedimento administrativo ou judicial, admitida a autocomposição.
10 - Aferição da indenização a particular não indígena dar-se-á por meio de procedimento judicial ou extrajudicial, nos quais serão verificadas a boa-fé do particular e a responsabilidade civil do ente público, não sendo possível a aferição da indenização no mesmo procedimento de demarcação.
11 - Descabe indenização em casos já pacificados decorrentes de terras indígenas já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório.
12- A compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional do meio ambiente."
Laudos antropológicos
Posteriormente, ministro Luís Roberto Barroso também apresentou voto contra o marco temporal. Para S. Exa., "a proteção dos direitos territoriais indígenas se dá mesmo sem a finalização do processo administrativo de demarcação".
"Todos nós [Fachin, Moraes, Zanin] desmistificamos a ideia de que haveria um marco temporal assinalado pela presença física em 5 de outubro de 1988, reconhecendo ao revés, que a tradicionalidade e a persistência da reivindicação em relação a área, mesmo que desapossada, também constitui fundamento de direito para as comunidades indígenas."
Para embasar seu entendimento, S. Exa. citou o caso "Raposa Serra do Sol". "Eu extraio da decisão de Raposa Serra do Sol a visão de que não existe um marco temporal fixo e inexorável e que a ocupação tradicional também pode ser demonstrada pela persistência na reivindicação de permanência na área, por mecanismos diversos."
No mais, Barroso fundamentou seu entendimento por meio de laudos antropológicos. Isso porque, para ele, "o Judiciário deve se limitar a suas capacidades institucionais e respeitar a valoração técnica de profissionais que tem maior conhecimento da matéria".
Em relação a tese, S. Exa. se alinhou a posição do relator com as complementações feitas pelo ministro Cristiano Zanin.
Entenda
O litígio em análise envolve a posse de áreas que teriam ocupação tradicionalmente indígena. De um lado, povos indígenas querem provar que têm direito a determinadas terras, por questão de tradicionalidade.
De outro, o que se busca é o estabelecimento de um "marco temporal", uma data, a partir da qual as terras que não estivessem ocupadas por indígenas não pertenceriam a eles.
A proposta é que este marco seja a data da promulgação da atual Constituição Federal: 5 de outubro de 1988. Assim, povos indígenas só poderiam lutar pela demarcação das terras que provarem estar sob sua posse nesta data.
O processo que motivou a discussão trata da disputa pela posse da Terra Indígena Ibirama, em Santa Catarina. A área é habitada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani, e a posse de parte da terra é questionada pela Procuradoria do Estado.
- Processo: RE 1.017.365