Juristas abordam responsabilidade do Estado por ações policiais letais
Miguel Reale e Daiana Ryu emitiram parecer no Caso Jacarezinho, que guarda semelhanças com a recente operação no Guarujá.
Da Redação
sexta-feira, 4 de agosto de 2023
Atualizado às 11:27
Ao menos 16 pessoas, entre PM e civis, morreram desde o início da Operação Escudo, realizada pela polícia militar na baixada santista, litoral de São Paulo. A ação da polícia começou no último dia 28, após a execução de um policial da Rota durante patrulhamento. Desde então, a PM tem recebido denúncias de excessos por parte de agentes.
A operação no Guarujá não é fato isolado no país.
Situação semelhante ocorreu em maio de 2021, no Rio de Janeiro, quando policiais entraram na comunidade do Jacarezinho em operação que resultou em 27 mortos.
O professor Miguel Reale Júnior, e Daiana Ryu (Miguel Reale Júnior Sociedade de Advogados), elaboraram parecer jurídico, em caráter pro bono, sobre a letalidade policial e a responsabilidade do Estado sobre os danos causados à comunidade.
Operação em Jacarezinho
Conta o parecer que, em 6 de maio de 2021, a Polícia Civil do Rio de Janeiro realizou operação na comunidade de Jacarezinho. O objetivo seria cumprir 21 mandados de prisão contra suspeitos de participar de organização criminosa.
Mas, logo no início da ação, um policial foi morto. Entre 6h e 16h, a comunidade teria se transformado em verdadeiro cenário de guerra, que resultou em 28 mortes. Os moradores da comunidade alegaram ter sofrido vários efeitos, como trauma psicológico, fechamento das escolas, suspenção da vacina de covid e fechamento do comércio.
Em razão dos fatos, a Educafro - grupo que luta pela inclusão dos negros e pobres em universidades - ajuizou ACP contra o Estado do Rio, pleiteando indenização por danos morais coletivos em favor da comunidade no valor de R$ 100 milhões, além de tratamento psicológico e psiquiátrico gratuito às vítimas.
Em seu parecer, Miguel Reale e Daiana Ryu explicam as réplicas e tréplicas apresentadas no processo e contam a origem da comunidade do Jacarezinho, que atualmente possui 38 mil habitantes e tem população predominantemente negra, de baixa escolaridade e baixíssima renda. "Jacarezinho, tal qual outras comunidades, abriga uma grande população de trabalhadores que se desloca cotidianamente pela cidade do Rio de Janeiro."
Segundo os juristas, a operação Exceptis não foi um fato isolado, e há décadas a comunidade tem sido alvo de ações policiais que provocam intenso sofrimento a seus moradores.
"A incursão policial na favela mediante o uso da força armada é, portanto, a regra na 'política de segurança pública' do estado do Rio de Janeiro."
Direitos Humanos
O documento lembra uma operação realizada em 1995, em que policiais ingressaram na favela Nova Brasília e foram mortos três policiais e 13 moradores da comunidade. Ao apreciar o caso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos entendeu que os fatos não foram investigados adequadamente pelos órgãos brasileiros e determinou que o estado do Rio de Janeiro estabelecesse metas e políticas para redução da letalidade e da violência policial, ressaltando que "o uso da força policial deve observar os documentos internacionais de proteção dos direitos humanos, bem como os princípios da legalidade, da necessidade e da proporcionalidade".
Reale e Ryu citam, ainda, decisão do STF que, durante a pandemia, determinou a elaboração, por parte do Estado do RJ, de plano para redução da letalidade policial. Ministro Fachin, relator do caso no Supremo, reconheceu a crise de segurança pública no Estado, que corresponderia a verdadeiro "estado inconstitucional de coisas".
"As atabalhoadas operações policiais nas comunidades, contudo, não cessaram. A Polícia do Estado do Rio de Janeiro, indiferente à decisão proclamada pela Corte Constitucional, não deixou de provocar danos terríveis aos moradores das comunidades por meio de ações administrativas pontuais e violentas."
Foi neste contexto que aconteceu a operação no Jacarezinho, a qual "desde seu nascedouro, não estava revestida pelo manto da legitimidade", tendo sido desastrosa, "caracterizando-se como a segunda maior chacina ocorrida na história do Rio de Janeiro".
Na avaliação dos pareceristas, a ação foi desproporcional, transformando-se em "mera vingança contra a comunidade", e feriu os princípios básicos sobre a utilização da força e de armas de fogo pelos funcionários responsáveis pela aplicação da lei.
Reparação de danos
No documento, Miguel Reale e Daiana Ryu destacam os danos emocionais causados às vítimas, e a responsabilidade do Estado, que, em sua avaliação, é objetiva.
"Deve-se recompensar a perda da chance de uma vida normal, vida que passou a se arrastar sem a paz e a alegria das crianças brincando na rua ou de fazer festa em casa. A vida cotidiana veio a ser a ansiedade, medo e principalmente amargor, danos prolongados a serem recompensados."
No caso da chacina no Jacarezinho, o parecer conclui que: i) é possível afirmar que a comunidade Jacarezinho é vítima, e titular de direito à reparação pelos danos; ii) a segurança pública é direito essencial da vida em sociedade, e a coletividade do bairro foi atingida nesse direito básico; iii) e há responsabilidade objetiva do Estado pelos impactos, justificando a reparação.
- Leia a íntegra do parecer.