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Luta antimanicomial

Bicho de 7 Cabeças: Livro crítico a manicômios foi barrado na Justiça

"Canto dos Malditos", obra baseada em história real e que inspirou filme nacional, foi barrada pela Justiça do Paraná.

Da Redação

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Atualizado às 10:02

Não tem coração que esqueça
Não tem ninguém que mereça [...] 
Não foi nada eu não fiz nada disso
E você fez um bicho de 7 cabeças

- Geraldo Azevedo, Bicho de 7 Cabeças

"Canto dos malditos" é um livro que retrata os sofrimentos do próprio autor, Austregésilo Carrano Bueno, durante internação manicomial. A obra, que inspirou o filme "Bicho de Sete Cabeças", de Lais Bodanzky, já teve apreensão de exemplares determinada pela justiça.

Em outubro de 1974, Austregésilo Carrano Bueno, aos 17 anos, ingressou no Hospital Espírita de Psiquiatria Bom Retiro, de Curitiba/PR. Seu pai, Israel Ferreira Bueno, foi o responsável por levá-lo ao manicômio, após encontrar um cigarro de maconha nos pertences do filho. Israel enganou Austregésilo dizendo que "visitariam um amigo". 

De acordo com o retratado na obra, durante a internação, o jovem passou por 21 sessões de eletrochoque, foi submetido a injeções diárias que causaram feridas, inchaços e infecções, e forçado a ingerir uma quantidade enorme de medicamentos - entre 20 e 25 comprimidos diários, além de receber surras e ser exilado em solitárias. 

Austregésilo, em desespero, ateou fogo na própria cela. Essa atitude despertou nos pais a consciência do que ocorria no instituto. Três anos depois do primeiro dia internado, o jovem foi levado para casa. 

Fora das grades manicomiais, Austregésilo decidiu escrever um livro relatando os horrores vivenciados na internação. Após quatro anos de recusas de editoras, amedrontadas por lançar um tema tão polêmico, a obra "Canto dos malditos" foi lançada pela editora Scientia et Labor da UFPR, em março de 1990.

A repercussão, realmente, foi explosiva. Após o lançamento, de acordo com a UOL, o livro vendeu 14 mil exemplares, em seguidas reedições por diferentes editoras, como a editora Rocco em 2001.

Porém, a associação paranaense de psiquiatria e os familiares do doutor Alô Ticolaut Guimarães, falecido em 1985, antes do lançamento, mas que além de professor emérito da UFPR fora diretor do Hospital Bom Retiro à época da internação de Austregésilo, ingressaram com medidas judiciais para que a obra fosse retirada de circulação.

 (Imagem: Arte migalhas)

Livro "Canto dos Malditos", de Austregésilo Carrano Bueno, narrou o período de confinamento do autor em manicômios e foi proibido pela justiça do Paraná.(Imagem: Arte migalhas)

Alô Guimarães x Austregésilo

Os filhos de Alô ingressaram com um processo, na 8ª vara Cível de Curitiba/PR contra Austregésilo e a Editora Rocco no qual exigiam que trechos ofensivos à memória do psiquiatra fossem retirados de edições posteriores do livro, além de indenização por danos morais. 

Em primeira instância a demanda dos familiares foi improcedente. O juiz considerou a inexistência dos danos morais, pois Austregésilo e a editora agiram no exercício regular de um direito. 

Inconformados, os filhos apelaram da decisão, sustentando que Austregésilo usou o livro para agredir a memória de Alô, violando a dignidade da pessoa humana. E que na sentença, o juiz deixou de ponderar se as ofensas proferidas pelo autor do livro seriam essenciais para o desenvolvimento de sua luta política contra a existência de manicômios.  Afinal, alegaram abuso de direito encoberto por liberdade de expressão.

"[..] é evidente que as defesas da presente demanda não pressupõem que o falecido Alô Guimarães seja freqüentemente intitulado ao longo do livro como sendo um  psicopata, sádico, filho de uma cadela pesteada, médico filho-da-puta, corno manso, desleixado, etc. Também afirmam ser evidentemente desnecessário que exista o injurioso ataque direto aos familiares - ora apelantes -, qualificando-os  pejorativamente, como doentes mentais, idiotas, alienados, bestas e debilóides."

Em grau recursal, o desembargador Carvílio da Silveira Filho, da 15ª câmara Cível do TJ/PR, em 2006, reformou a sentença, sob o argumento de que os filhos buscam de forma justa a proteção da honra do pai. Ao contrário do que veiculado no livro, de acordo com o magistrado, o falecido psiquiatra "sempre se pautou por conduta profissional séria -, fato que o ajudou a tornar-se Prefeito de Curitiba, Secretário do Estado do Interior e Justiça, Secretário de Estado da Saúde, Deputado Federal por duas legislaturas e, ainda, Senador da República."

Ele também considerou que liberdade de expressão e liberdade de imprensa se condicionam a limites e no caso, houve excesso por parte de Austregésilo porque trouxe informações maldosas e difamtória acerca do profissionalismo do dr. Alô e porque infringiram o direito á honra do falecido médico e de sua família.

"Na elaboração de matéria jornalística, portanto, a escolha das expressões a serem utilizadas é tarefa da mais alta importância, na medida em que o meio de comunicação responde pelo que foi publicado não apenas quando há a deliberada vontade de difamar e denegrir, mas, também quando aplica - ou deixa aplicar -, termos inadequados, que não sejam expressão da verdade, respondendo, assim, pela negligência."

Afinal, o magistrado determinou que as obras fossem retiradas de circulação no prazo máximo de 60 dias sob pena de multa diária de R$ 5 mil reais. E que, futuras edições da obra deixassem de mencionar, "direta ou indiretamente -  expressões infamantes e ofensivas ao falecido psiquiatra ou seus familiares [...]."

Ademais arbitrou danos morais no valor de R$ 20 mil a serem pagos solidariamente por Austregésilo e a Editora Rocco.

Danos morais

Austregésilo também ingressou com uma ação indenizatória na 10ª Vara Cível do TJ/PR. Ele passou a exigir dos hospitais em que fora internado e dos familiares do médico Alô Ticoulat Guimarães uma reparação de R$ 10 milhões por erros médicos e danos morais.

O magistrado Moraes Leite, da 2ª câmara Cível do TJ/PR confirmou decisão da primeira instância que considerou o suposto crime prescrito, já que ocorrido há mais de 20 anos.

"Tendo em vista que a ação foi ajuizada em 12.05.98 (fls. 2-verso) e que o apelante recebeu alta pela última vez em 20.09.77, verifica-se que a ação prescreveu em vinte de setembro de 1997".

Ademais, Austregésilo foi condenado às custas processuais no valor de R$ 60 mil. 

No cinema

Bicho de Sete Cabeças é um filme da diretora Laís Bodanzki, que retratou a história de Austregésilo. Lançado em 22/6/01 e estrelado por Rodrigo Santoro, ele reuniu 450 mil espectadores nos cinemas, conquistou 46 prêmios nacionais e internacionais e foi visto em toda a América Latina por meio da HBO.

 (Imagem: Estado de S. Paulo)

O filme também registrou uma média de 37 pontos de audiência ao ser transmitido pela Rede Globo e, por conta de toda a sua importância histórica, é considerado um clássico do cinema nacional.

Luta Antimanicomial

A luta de Austregésilo não se restringiu à publicação do livro. Ele passou parte de sua vida em militância contra os manicômios, sendo representante do MLA - Movimento da Luta Antimanicomial e a favor da adoção de modelos mais humanos de tratamentos psiquiátricos. 

A principal vitória do movimento foi a sanção da lei 10.216/01, conhecida como lei da reforma psiquiátrica, a qual foi regulada apenas 22 anos depois, com a resolução 487/23 do CNJ.

Por sua contribuição no MLA, e por participar da Comissão Intersetorial de Saúde Mental do Conselho Nacional de Saúde, foi homenageado em maio de 2003 pelo ministério da Saúde em reconhecimento a sua luta na construção da rede nacional de serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos no Brasil.

Austregésilo morreu em 27 de maio de 2008, aos 51 anos, em razão de infeccção generalizada ocasionada por um câncer no fígado.

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