Peça de Zé Celso foi denunciada por padre e alvo de ação judicial
Após apresentação em Araraquara/SP, pároco da cidade denunciou Zé Celso e sua equipe por vilipêndio a objetos sagrados.
Da Redação
sexta-feira, 14 de julho de 2023
Atualizado em 15 de julho de 2023 08:01
"É engraçado que minha geração foi chamada de contracultura. Mas quem é 'contra-a-cultura' são eles. Eles têm medo da liberdade, da arte e da criação." - Zé Celso em entrevista à Sesc TV, 2017.
Em 1995, o padre Oswaldo Baldan fez uma representação ao MP contra o dramaturgo Zé Celso e seu grupo teatral. A encenação da peça "Mistérios Gozosos" na cidade de Araraquara/SP, terra natal do dramaturgo, motivou um caso de polícia no município da "morada do sol".
À época, de acordo com reportagem da Folha de S.Paulo, o padre - que não sabemos se assistiu ao espetáculo, ou dele só "ouviu falar" - declarou que a obra vilipendiava os rituais católicos. Isso porque, em uma das cenas, o ator Marcelo Drummond, representando Jesus Cristo, oferecia banana e champanhe como se fossem o Corpo e Sangue de Cristo.
Após a representação, Zé Celso e seu grupo foram intimados para depor na 1ª Delegacia Seccional, nos Jardins, em São Paulo, conforme noticiado pelo Estadão, em outubro de 1995. O dramaturgo, durante seu depoimento de 25 minutos, disse que não teve intenção de usar a peça para ofender.
No ano seguinte, o diretor e seis membros do grupo foram denunciados pelo Ministério Público. No dia 26 de novembro de 1996, no fórum de Araraquara, foi realizada uma audiência preliminar. Segundo a Folha de S.Paulo, no dia da audiência, artistas locais foram ao local para apoiar o dramaturgo.
Ainda de acordo com o matutino, na entrada da sala de audiências, Zé Celso sinalizou que não faria acordo para se livrar do processo.
Mesmo assim, o promotor de Justiça, Nelson Barboza Filho, propôs encerrar o caso se o dramaturgo aceitasse prestar serviços à comunidade por oito meses e os outros integrantes do grupo, por quatro meses. Como a proposta não foi aceita, o promotor enquadrou os acusados no art.208 do CP - o qual, até hoje, protege imagens e ritos religiosos - e a denúncia foi formalizada.
Ao sair da audiência, Zé Celso se manifestou dizendo "não aceito o acordo porque não tenho culpa. Faço arte, nada pensando em vilipendiar. Querem nos obrigar a trabalhar pela comunidade. Já trabalhamos pela comunidade".
Após a formalização da denúncia pelo promotor, o juiz José Maurício Garcia Filho marcou outra audiência para 18/2/97, para ouvir a defesa e decidir se aceitaria ou não a denúncia. No fatídico dia, o juiz decidiu não recebê-la e arquivou o caso.
"Esse juiz, que rejeitou a denúncia, abre caminho para o interior, onde vamos mostrar peças que causarão mais escândalo para as pessoas que estão presas a uma visão única de mundo", afirmou Zé Celso após o deslinde do caso.
Família
Nem mesmo a mãe de Zé Celso, Sra. Angela, foi poupada de se manifestar a respeito do ocorrido. "Eu não dou razão nem para o padre Baldan e nem para o meu filho. Mas eu pedi para o José Celso não levar a peça a Araraquara, porque eu tinha visto um pedacinho pela TV Cultura e não gostei. Mas ele me disse que queria levar a peça com muito amor e muito carinho. Eu não sei por que ele faz essas coisas", declarou à Folha.
As Bacantes
Em 1997, novamente, Zé Celso foi impedido de apresentar uma peça durante um evento em Araraquara: "As Bacantes". Dessa vez, não pelo padre Oswaldo, que, segundo a Folha de S.Paulo, afirmou: "Cada pessoa dá o que tem", mas, pela então presidente da Fundart da cidade, Martha Lupo Stella. Em defesa da fundação, a presidente afirmou que não houve uma proibição, mas uma falta de interesse do município na promoção da peça. Segundo ela, foi uma forma de evitar mais polêmicas, não uma censura.
De acordo com o G1, após pressão da Câmara municipal e da Unesp de Araraquara, que ameaçou retirar o patrocínio ao evento, a Fundart mudou de opinião e permitiu que Zé Celso se apresentasse. Como a mudança foi repentina, o dramaturgo não conseguiu apresentar a peça "As Bacantes", mas ele e seu grupo estrelaram "Ela" e "Pra dar um fim no juízo de Deus".
Vilipêndio - parte 2
Não foi apenas em Araraquara que Zé Celso e seu grupo tiveram problemas. Em 2015, ele e os atores Mariano Mattos Martins e Tony Reis foram acusados de vilipendiar publicamente objeto de culto religioso pelo padre goiano Luiz Carlos Lodi da Cruz.
Uma ação foi ajuizada após encenação do musical "Acordes", na praça da cruz da PUC/SP em 2012, no qual um boneco do Papa era mutilado e decapitado como alegoria à necessidade de questionar o autoritarismo.
Ao final do processo, o juiz de Direito Jose Zoega Coelho, do JECrim de SP, absolveu o dramaturgo e os outros atores.
"A liberdade de manifestação do pensamento, constitucionalmente assegurada, aqui socorre os Réus. Nenhuma igreja está imune à crítica, por qualquer meio ou forma de expressão, notadamente a teatral".
Zé Celso, em um ato
Na última quinta-feira, 6/7/23, o dramaturgo, diretor e ator José Celso Martinez Corrêa faleceu aos 86 anos. Ele nasceu em Araraquara/SP em 1937, e deixou a cidade do interior do Estado para se dedicar ao estudo do Direito no Largo S. Francisco, em São Paulo.
Durante os estudos do Direito, rompeu com as amarras do tradicionalismo e questionou o status quo do político. Assim como muitos nomes da dramaturgia brasileira que estiveram nas Arcadas, Zé Celso, em 1960, integrou o Centro Acadêmico XI de Agosto.
O dramaturgo concluiu o curso (Turma de 1960), tendo colado grau em junho de 1961, mas dedicou-se ao meio artístico e, durante a década de 60, profissionalizou seu grupo teatral. O grupo de teatro amador Oficina passou a ter sede no bairro do Bixiga, centro de São Paulo. Ela foi denominada "Teatro Oficina Uzyna Uzona", ou, simplesmente, "Teatro Oficina".
O projeto do teatro foi assinado por Lina Bo Bardi, a mesma arquiteta do MASP. Ela optou por romper com o tradicional estilo italiano de palco e integrou público e artistas por meio de uma plateia estruturada com pranchas de madeira e metal. Em 1982, o local foi tombado pelo patrimônio histórico e artístico nacional. Em 2015, o The Guardian considerou o Oficina como melhor teatro do gênero.
Vida e arte
A história e obra de Zé Celso se confundem com o Teatro Oficina e refletem o cenário cultural e político do Brasil. Em entrevista de 2017, à Sesc TV, Zé Celso apontou que a arte tem poder transpolítico, exprimindo com liberdade e expressando o que corpo maltratado sente e não quer sentir, afirmando que "todo ser humano tem poder político. Desde que ele perceba, mas não se deixe prender".
Fontes:
https://veja.abril.com.br/cultura/como-ze-celso-afrontou-a-ditadura-e-acabou-torturado-pelo-regime
https://vejasp.abril.com.br/cultura-lazer/morte-ze-celso-teatro-oficina
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/7/20/revista_da_folha/5.html
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq110606.htm
https://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/video/apos-polemica-fundart-de-araraquara-chegou-a-vetar-peca-de-ze-celso-em-1997-11759466.ghtml