Decisão da sétima câmara cível do TJ/RS em questão de filiação homoparental e direito de visitas
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Da Redação
quinta-feira, 12 de abril de 2007
Atualizado às 09:51
Decisão
Decisão da sétima câmara cível do TJ/RS em questão de filiação homoparental e direito de visitas. Veja abaixo na íntegra.
FILIAÇÃO HOMOPARENTAL. DIREITO DE VISITAS.
Incontroverso que as partes viveram em união homoafetiva por mais de 12 anos. Embora conste no registro de nascimento do infante apenas o nome da mãe biológica, a filiação foi planejada por ambas, tendo a agravada acompanhado o filho desde o nascimento, desempenhando ela todas as funções de maternagem. Ninguém mais questiona que a afetividade é uma realidade digna de tutela, não podendo o Poder Judiciário afastar-se da realidade dos fatos. Sendo notório o estado de filiação existente entre a recorrida e o infante, imperioso que seja assegurado o direito de visitação, que é mais um direito do filho do que da própria mãe. Assim, é de ser mantida a decisão liminar que fixou as visitas. Agravo desprovido.
AGRAVO DE INSTRUMENTO - SÉTIMA CÂMARA CÍVEL
Nº 70018249631- COMARCA DE PORTO ALEGRE
BEATRIZ M.F. - AGRAVANTE
IVELISE M.F. - AGRAVADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em desprover o agravo de instrumento interposto, cassando a decisão liminar.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além da signatária (Presidente), os eminentes Senhores DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS E DES. RICARDO RAUPP RUSCHEL.
Porto Alegre, 11 de abril de 2007.
DES.ª MARIA BERENICE DIAS, Presidenta e Relatora.
RELATÓRIO
DES.ª MARIA BERENICE DIAS (PRESIDENTA E RELATORA)
Trata-se de agravo de instrumento interposto por Beatriz M.F., em face da decisão da fl. 54, que, nos autos da ação declaratória movida por Ivelise M.F., regulamentou liminarmente a visita da agravada ao filho Artur.
Alega que é mãe biológica de Artur, o qual foi concebido por meio de fertilização in vitro após inúmeras tentativas para engravidar. Aduz que durante o relacionamento, ao contrário da recorrida, sempre esteve determinada em ser mãe. Destaca que, após uma série de desentendimentos, procurou sem sucesso uma terapeuta, na tentativa de reconciliação. Argumenta que após comunicar o término do relacionamento e dizer que já possuía outra companheira, a recorrida passou a apresentar comportamento agressivo, fazendo inclusive escândalos e perturbando os vizinhos. Enfatiza que todas as despesas do infante são por ela custeadas. Sustenta que a decisão ora hostilizada é suscetível de causar lesão grave e de difícil reparação, já que o relacionamento afetivo que manteve com a agravada, não traz como conseqüência jurídica o direito de visitas. Esclarece que após o término do relacionamento, como o menino estava muito próximo da agravada, permitiu que ela permanecesse em sua companhia por algumas horas durante o sábado, contudo, por orientação de uma psicóloga, não mais permitiu os encontros. Requer o provimento do recurso interposto para que seja suspenso o direito de visitas da recorrida ao infante (fls. 2-20).
O Desembargador-Plantonista deferiu o pedido liminar (fls. 76-79).
A parte agravada, em contra-razões, destacou a existência de um relacionamento afetivo entre as partes por um período de doze anos. Sustenta que não se pode falar em ausência de laços parentais e afetivos, uma vez que o filho foi planejado pelo casal. Pugna pelo desprovimento do recurso interposto (fls. 91-96).
A Procuradora de Justiça opinou pelo conhecimento e desprovimento do recurso interposto (fls. 161-166).
É o relatório.
VOTOS
DES.ª MARIA BERENICE DIAS (PRESIDENTA E RELATORA)
Pretende a recorrente reformar a decisão que, nos autos da ação de reconhecimento e dissolução de união homoafetiva cumulada com reconhecimento de filiação socioafetiva e regulamentação de visitas ajuizada pela agravada.,fixou visitas ao infante nos sábados das 14h às 18h, em finais-de-semana alternados (fl. 59),
As litigantes mantiveram união homoafetiva por mais de doze anos e no oitavo ano da união resolveram ter um filho. O infante foi concebido por meio de fertilização in vitro, concretizada por meio de doação de esperma de um amigo do casal.
O menino Artur conta, atualmente, quatro anos de idade (fls. 60). Embora seu registro de nascimento conste apenas o nome da mãe biológica, patente que no seu histórico de vida e na sua formação psicológica encontram-se manifestados o afeto sentido pelos carinhos por Ivelise, a quem o infante chama carinhosamente de "Ive".
Na própria capa da filmagem do nascimento do infante encontram-se a genitora e a recorrida (fl. 105).
No filme do nascimento de Artur, juntado nas fls. 107, é que a filiação homoparental mais se evidencia. A agravada ficou ao lado da recorrente durante todo o parto. Logo após o nascimento, enquanto o menino ainda chorava, Ivelise começa a contar-lhe uma história (que, segundo ela, contava junto à barriga da agravante durante a gestação - fl. 106) e este imediatamente pára de chorar. Em seguida, quem mostra Artur aos familiares é Ivelise. Correspondência eletrônica enviada pela recorrente a uma amiga, comunicando o nascimento do menino, está assinado: Beatriz, Ive e Artur (fl. 114).
Assistir a fita não permite que se tenha qualquer dúvida da função materna exercida pela agravada, desde antes do nascimento de Artur. Segundo os atuais estudos médicos, ainda no ventre, o filho ouve a voz dos pais, daí a recomendação para que eles conversem com seus filhos, mesmo antes do nascimento. Esta verdade resta evidenciada na filmagem, pois se acalmou o bebê ao ouvir a história que lhe contava a agrava antes de ter nascido.
A recorrida participou de todos os momentos da vida do infante, desde as consultas da recorrente ao obstetra até as consultas pediátricas, conforme atestados juntados nas fls. 109-110. A prova é farta a evidenciar o dia-a-dia da família, passeando com o menino (fl. 98), em momentos de afetividade familiar (fl. 99), em viagens (fl. 101), comemoração de Natal (fl. 103) e nos aniversários (fl. 97, 100, 102). Em todos esses momentos lá estava a recorrida dedicando ao filho atenção, cuidado e afeto, participando ativamente na sua formação e desenvolvimento. Ivelise ficava em companhia do infante inclusive quando a recorrente viajava a trabalho, conforme trechos de correspondências eletrônicas trocadas à época (fl. 128):
(...) Sabe que te amo. Estou sentindo muito a tua falta. Conta p o artur q perdi o vôo. Te amo.
Ao contrário do alegado pela recorrente, comprovada está a contribuição de Ivelise, não apenas afetivamente, mas também, de forma financeira, como por exemplo, com o pagamento do teste do pezinho (fl. 144), das vacinas (fls. 145-148) e inclusive do quarto do menino (fl. 149)
Certo é que ambas abriram mão de projetos e horas de trabalho para constituírem uma família e passaram a conviver de forma mais próxima com o infante. Evidenciada está também a colaboração da recorrida, na formação psíquica do menino e, embora não sendo a mãe biológica, é sua mãe afetiva, estado de filiação que vem sendo prestigiada cada vez mais pela Justiça.
Ao depois, consabido que o rompimento do vínculo de convívio, com quem a criança entretém estrito vínculo afetivo, pode gerar seqüelas de ordem psicológica. O sentimento de perda e abandono ao certo irá comprometer seu desenvolvimento saudável. O direito de visita é muito mais um direito do filho do que de qualquer de seus genitores. Assim, nada justifica a resistência da recorrente em afastar o filho de conviver com aquela que ele também considera sua mãe. Aliás, as visitas foram fixadas de forma muito acanhada, e a negativa da mantença do vínculo afetivo sugere simples sentimento de vingança.
Ora, em tempos que a afetividade tornou-se uma realidade digna de tutela, não pode o Poder Judiciário afastar-se da realidade dos fatos. Como bem diz Giselda Hironaka, mudam os costumes, os homens e a história, só não muda a atávica necessidade de cada um de saber que, em algum lugar, se encontra o seu porto e seu refúgio, vale dizer o seio de sua família. (Família e casamento em evolução. Direito Civil: estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 21).
Esta Câmara, que foi a pioneira no Brasil a admitir a adoção homoafetiva, não pode deixar de reconhecer que o vínculo de filiação, independente do sexo dos genitores, gera todos os deveres, mas também assegura todos os direitos decorrentes do poder familiar. Certamente o direito/dever de maior significado é o de convivência, que não pode ser excluído pela separação dos genitores.
Assim já me manifestei no meu artigo Paternidade homoparental (disponível em www.mariaberenice.com.br - sem destaque no original):
A paternidade é reconhecida pelo vínculo de afetividade, fazendo nascer a filiação socioafetiva. Ainda segundo Fachin, a verdadeira paternidade não é um fato da Biologia, mas um fato da cultura, está antes no devotamento e no serviço do que na procedência do sêmen.
Se a família, como diz João Baptista Villela, deixou de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, o que imprimiu considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade, imperioso questionar os vínculos parentais nas estruturas familiares formadas por pessoas do mesmo sexo.
Não se pode fechar os olhos e tentar acreditar que as famílias homoparentais, por não disporem de capacidade reprodutiva, simplesmente não possuem filhos. Se está à frente de uma realidade cada vez mais presente: crianças e adolescentes vivem em lares homossexuais. Gays e lésbicas buscam a realização do sonho de estruturarem uma família com a presença de filhos. Não ver essa verdade é usar o mecanismo da invisibilidade para negar direitos, postura discriminatória com nítido caráter punitivo, que só gera injustiças.
Sendo notório o estado de filiação existente entre a recorrida e o infante, imperioso ser assegurado o direito de visitação, sendo este um direito do filho. Assim, deve ser mantida a decisão que fixou liminarmente visitas ao infante Artur nos sábados das 14h às 18h, em finais-de-semana alternados, de modo muito restrito, e que só não vai majorado por ausência de recurso da mão Ivelise.
Por tais fundamentos, o desprovimento do agravo se impõe, desconstituindo-se a decisão liminar proferida nesta sede.
DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS - De acordo.
DES. RICARDO RAUPP RUSCHEL - De acordo.
DES.ª MARIA BERENICE DIAS - Presidente - Agravo de Instrumento nº 70018249631, Comarca de Porto Alegre: "DESPROVERAM. UNÂNIME."
Julgador(a) de 1º Grau: GLADIS DE FATIMA FERRAREZE
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