Entenda PL que disciplina desconsideração da personalidade jurídica
Bolsonaro tem até dia 13 para sancionar o texto, já aprovado pelo Congresso.
Da Redação
sexta-feira, 2 de dezembro de 2022
Atualizado em 3 de dezembro de 2022 08:32
O presidente Jair Bolsonaro tem até o dia 13 para sancionar projeto de lei que trata da desconsideração da personalidade jurídica.
O texto, aprovado no Congresso no último dia 23, disciplina como será feita a cobrança direcionada a sócios ou responsáveis por dívidas de empresa.
Hoje, apesar de a possibilidade ser prevista em lei, não há um trâmite específico para ela. Se aprovada, a nova lei instituirá um rito procedimental, assegurando, entre outros pontos, o direito ao contraditório, aplicação mais restritiva e maior segurança jurídica.
Para esmigalhar o tema, convidamos três especialistas para analisar o novo texto: os advogados Eduardo Boccuzzi (Boccuzzi Advogados Associados), Marcos Costa (Machado Meyer Advogados) e Pedro Paulo Wendel Gasparini (Gasparini, Nogueira de Lima e Barbosa Advogados). Confira as análises abaixo.
- Leia a íntegra do texto aprovado.
Defesa
Um dos pontos importantes trazidos pelo projeto é que os sócios terão o direito de produzir provas, e o juiz somente poderá decretar a desconsideração depois de ouvir o Ministério Público. Além disso, o juiz não poderá decidir a questão antes de assegurar o direito amplo de defesa.
Veja trecho:
Art. 3º Antes de decidir sobre a possibilidade de decretar a responsabilidade dos membros, dos instituidores, dos sócios ou dos administradores por obrigações da pessoa jurídica, o juiz estabelecerá o contraditório, assegurando-lhes o prévio exercício da ampla defesa.
(...)
Art. 4º O juiz não poderá decretar de ofício a desconsideração da personalidade jurídica.
Art. 5º O juiz somente poderá decretar a desconsideração da personalidade jurídica ouvido o Ministério Público e nos casos expressamente previstos em lei, sendo vedada a sua aplicação por analogia ou interpretação extensiva.
O texto prevê o prazo de 15 dias para os sócios apresentarem defesa, contados da intimação. Em requerimento específico, deverão ser especificados os atos que motivaram a responsabilização do sócio. Essa indicação deverá ser feita por quem propuser a desconsideração da personalidade jurídica ou pelo MP.
Caso a medida seja decretada, ela não poderá atingir os bens particulares dos membros que não tenham praticado ato abusivo em prejuízo dos credores da pessoa jurídica e em proveito próprio.
Decisão judicial indispensável
Ainda de acordo com o projeto aprovado, as decisões da Administração Pública sobre desconsideração da personalidade jurídica também ficam sujeitas a decisões judiciais.
Pela legislação atual, um processo administrativo poderia chegar à desconsideração como em um juízo, mas sem os procedimentos elaborados na nova proposta.
Direito ao contraditório
O advogado Marcos Costa (Machado Meyer Advogados) destaca que o PLC 69/14 basicamente consolida as regras já existentes sobre o tema no artigo 50 do CC e nos artigos 133 a 137 do CPC. Contudo, nos termos do próprio parecer da CCJ do Senado, visa a aperfeiçoar alguns dos pontos ainda controvertidos, objetivando garantir o prévio exercício do contraditório e da ampla defesa pelas partes a serem atingidas.
Ele explica que, primeiramente, a redação do artigo 1º, parágrafo único, do PLC deixa claro que o procedimento previsto para a desconsideração da personalidade jurídica deverá ser observado em todas as decisões e por todos os órgãos do Judiciário, visando solucionar um problema recorrente especialmente na Justiça do Trabalho, a qual, muitas vezes, responsabiliza sócios e administradores de empresas sem a instauração de um incidente que respeite o direito ao contraditório e à ampla defesa, bem como sem a observância dos requisitos legais para tanto, bastando a ausência de patrimônio da empresa devedora.
Por sua vez, os artigos 2º e 6º do PLC reforçam as alterações que a lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/19) introduziu no artigo 50 do CC, bem como o disposto no artigo 134, § 4º, do CPC, ressaltando a necessidade de ser indicado de forma clara e precisa o ato fraudulento praticado e o autor do ato fraudulento, não bastando alegações genéricas ou a tentativa de imputar a todos os sócios e administradores eventuais condutas de forma generalizada, sem uma individualização do ato/da pessoa, sob pena de indeferimento liminar do pleito.
O advogado explica que as redações de tais artigos buscam evitar que sócios minoritários que não participam da administração da empresa, bem como sócios e administradores que não participaram de eventual ato fraudulento, respondam com o seu patrimônio particular.
"Ao prever expressamente que somente poderá ser responsabilizado o sócio ou o administrador que cometeu um ato ilícito em detrimento dos credores e em proveito próprio, entendemos que o artigo 6º do PLC afasta a possibilidade de responsabilização do sócio ou do administrador por eventual benefício indireto, como prevê atualmente o artigo 50 do CC:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso" (grifamos)."
Ainda, os artigos 4º e 5º do PLC estabelecem que os juízes não poderão decretar a desconsideração da personalidade jurídica de ofício, bem como que tal pleito somente poderá ser deferido após a oitiva do MP e apenas após ser facultada à pessoa jurídica o pagamento ou a garantia da dívida, reforçando a necessidade de se garantir o devido processo legal, bem como os princípios da ampla defesa e do contraditório.
Em suma, destaca o advogado, o PLC busca:
(i) uniformizar a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica pelo Poder Judiciário,
(ii) evitar a responsabilização de sócios e administradores que não cometeram atos ilícitos e não se beneficiaram diretamente de eventual fraude e, especialmente,
(iii) garantir o direito à ampla defesa e ao contraditório antes de ser decretada tão severa medida.
Aplicação mais restritiva
O advogado Pedro Paulo Wendel Gasparini (Gasparini, Nogueira de Lima e Barbosa Advogados) observa que o PL impõe critérios mais restritivos do que se tem hoje.
Ele lembra que, ainda na década de 1960, Requião fazia a defesa da aplicação, no Brasil, da disregard doctrine, utilizada em âmbito da common law. O ordenamento jurídico brasileiro adotou o instituto pela vez primeira no ano de 1998, no CDC. Na sequência, a desconsideração da personalidade jurídica foi adotada pelas leis 9.605/98 e 8.884/94. Em 2002, com o advento do então novo Código Civil, o art. 50 disciplinou o instituto.
"Não é novidade, porém, o uso exacerbado e por vezes danoso desse instituto tão logo inserido no ordenamento pátrio. As críticas aos exageros são por todos conhecidas. Daí o importante papel exercido pela jurisprudência para conferir maior clareza aos seus requisitos autorizadores."
O CPC/15 igualmente contemplou a desconsideração, nos artigo 133 a 137. Houve sensível regulação do que se convolou num incidente processual, com a introdução de procedimento mais claro a ser seguido, apesar de ainda suscitar críticas.
Assim, o advogado pontua que, ao que parece, o PL 69/14, que é oriundo de projeto apresentado à Câmara dos Deputados em 2008, busca conferir ainda maior segurança jurídica à desconsideração da personalidade jurídica quando dirigida a sócios em razão de dívidas de empresas.
"O novo texto contém importante inovação: a obrigatoriedade de que o postulante à desconsideração indique, de forma objetiva e específica, quais seriam os atos praticados em abuso da personalidade jurídica - o que também se aplica ao Ministério Público, caso atue no processo. Se essa especificação não for observada, o juiz indeferirá liminarmente o pedido; apenas se verificados os requisitos agora aparentemente mais rigorosos, o pleito será atendido, sendo vedada aplicação de interpretação analógica nem extensiva."
Pedro Paulo explica que a principal justificativa do PL foi assegurar o exercício prévio e mais amplos contraditório e defesa, em hipóteses de responsabilidade pessoal do sócio por dívida da empresa, antes da decretação da desconsideração. Outras novidades relevantes podem ser citadas: a vedação expressa da decretação de ofício e a previsão de que a simples insuficiência de patrimônio não autoriza a desconsideração, caso ausentes os demais pressupostos e a vedação de atingir os bens particulares de membros, instituidores, sócios ou administradores que não tenham praticado o ato abusivo em prejuízo dos credores da pessoa jurídica e em proveito próprio.
"Evidentemente está-se diante de critérios muito mais restritivos."
O advogado pontua, por fim, que a nova lei, se aprovada sem vetos, deverá ser aplicada por "quaisquer dos órgãos do Poder Judiciário", o que significa, em tese, que os novos dispositivos também se aplicarão à Justiça do Trabalho, em que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica é amplamente utilizado.
Segurança jurídica
Para o advogado Eduardo Boccuzzi (Boccuzzi Advogados Associados), o PL terá ótimas consequências práticas, sendo a mais importante a segurança jurídica.
"O PL pouco inova em termos procedimentais. Todavia, em termos materiais, o PL é muito importante no reforço da responsabilidade limitada daqueles que empreendem.
Um dos princípios basilares da economia capitalista é a responsabilidade limitada de quem empreende. Entretanto, esse princípio básico tem sido relevado em inúmeras decisões judiciais, as quais desconsideram a personalidade jurídica ante a mera inexistência ou insuficiência de patrimônio para quitação de obrigações contraídas pela pessoa jurídica."
O especialista pontua que essas decisões judiciais geram grande insegurança jurídica. Por exemplo, quando se vai adquirir um imóvel de um indivíduo que tenha sido sócio ou administrador de uma pessoa jurídica, há uma insegurança latente nessa transação, pois sempre pode surgir um passivo da empresa que, através da desconsideração da personalidade jurídica, pode recair sobre o sócio ou administrador que vendeu o imóvel. "Não raro, muitas transações são canceladas porque o adquirente se recusa a comprar um imóvel de quem tem em seu histórico a condição de sócio ou administrador de uma empresa."
O PL, por seu turno, traz novo regramento para a desconsideração, dificultando-a, e reafirmando o princípio basilar da responsabilidade limitada. "Deve-se saudar assim, notadamente, o §2º do artigo 5º, artigo 6º e 7º do novo regramento proposto, cuja principal consequência prática é maior segurança jurídica para todos que empreendem, investem ou compram imóveis."