Barroso fala de litigância climática no mundo e no Brasil na COP 27
Ministro disse em discurso que a gravidade da mudança climática e a crítica inação de muitos governos têm alterado a linha de fronteira entre Direito e Política em matéria ambiental.
Da Redação
domingo, 13 de novembro de 2022
Atualizado em 14 de novembro de 2022 18:57
O ministro Luís Roberto Barroso esteve na COP 27, conferência climática da ONU, em Sharm El Sheik, no Egito, e falou em discurso sobre a litigância climática no mundo e no Brasil e afirmou que, diante da inação dos governos e da falta de mobilização da sociedade, pode caber ao Judiciário "empurrar a história na direção certa".
Para o ministro, tribunais não são capazes de conduzir essa luta isoladamente e sempre será imprescindível a atuação governamental e da sociedade para que ela possa ter sucesso. "Mas eles têm, em muitos casos, a capacidade de colocar o tema na agenda política e no debate público, forçando uma tomada de atitude", ressaltou.
O ministro ainda falou em seu discurso sobre o papel do Judiciário, a litigância climática pelo mundo, a situação no Brasil, o papel dos Tribunais Constitucionais no enfrentamento da mudança climática e sobre os fundos Clima e Amazônia.
Situação do Brasil
Ao falar acerca da situação do Brasil, Barroso ressaltou a omissão do governo nos últimos quatro anos. O ministro descreveu como um "desmonte" das principais agências governamentais que desempenhavam as funções de comando e controle em matéria ambiental no país, especialmente na Amazônia.
"Em números redondos, o desmatamento aumentou de 4 mil km2 em 2012 para cerca de 15 mil km2 em 2022. Além disso, o governo se recusou a demarcar novas reservas indígenas, como impõe a Constituição e, pior que isso, deixou de proteger as reservas já existentes de invasões por motivações diversas. A experiência demonstra que a preservação ambiental é muito maior nas terras indígenas."
Para o ministro, houve grande leniência em relação a crimes diversos, como (a) exploração e comércio ilegais de madeira, (b) mineração ilegal, (c) caça e pesca ilegais, (d) grilagem de terras e (e) ameaças e assassinatos de defensores da floresta.
"O Brasil corre o risco de perder a soberania da Amazônia, não para qualquer outro país, mas para o crime organizado. Esse quadro fático, somado ao quadro jurídico descrito acima, levou a uma atuação proeminente do Supremo Tribunal Federal em matéria ambiental."
Atuação do STF
Barroso disse que existem inúmeras ações em tramitação no STF lidando direta ou indiretamente com a questão ambiental e a mudança climática, que incluem: o questionamento à privatização da Eletrobras, a participação da sociedade civil na composição de conselhos consultivos e deliberativos para definição de políticas públicas em matéria ambiental, o uso das Forças Armadas em ações preventivas e repressivas contra crimes ambientais e várias ações relacionadas à omissão do governo na proteção de diferentes biomas brasileiros, como o Pantanal e a Amazônia.
O ministro destacou três decisões: a do Fundo Clima, na qual o STF reconheceu a omissão do governo; a do Fundo Amazônia, em que foi determinado que o governo o reativesse e não fizesse novas paralizações; e ação que pede o reconhecimento de um estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental.
Papel dos Tribunais
Ao concluir, o ministro ressaltou que a gravidade da mudança climática e a crítica inação de muitos governos têm alterado a linha de fronteira entre Direito e Política em matéria ambiental. Progressivamente, tribunais vão se tornando mais proativos.
"Tribunais Constitucionais desempenham três tipos de papeis: (i) contramajoritário, quando invalidam atos dos outros dois Poderes que contrariem a Constituição; (ii) representativo, quando atendem demandas sociais, protegidas pela Constituição, e que não foram satisfeitas pelo processo político majoritário; e (iii) iluminista."
Segundo Barroso, esse papel iluminista pode ser assim definido: em certas situações, raras mas importantes, cabe às Cortes Supremas, em nome da Constituição, de tratados internacionais e de valores universais de justiça, sanar omissões graves, que afetem os direitos humanos.
"Isso se dá em casos de inércia dos governos e mesmo de desmobilização da sociedade. Em muitas partes do mundo, foi assim com a segregação racial, os direitos das mulheres e os direitos da comunidade LGBTI, para citar alguns exemplos."
Confira o discurso completo:
LITIGÂNCIA CLIMÁTICA NO MUNDO E NO BRASIL: EMPURRANDO A HISTÓRIA
I. Introdução1
1. Eu tenho muito prazer e muita honra de estar aqui na COP 27 e de compartilhar algumas ideias e reflexões sobre o tema da litigância climática. Eu agradeço a gentileza do convite do Instituto Clima e Sociedade, bem como da International Bar Association, da American Bar Association e da Ordem dos Advogados do Brasil.
2. O mundo inteiro está, nesse exato momento, debatendo a crise climática. Ainda agora em setembro, no Global Constitutionalism Seminar, que reúne juízes de Supremas Cortes de diferentes partes do mundo na Faculdade de Direito de Yale, nos Estados Unidos, um dos temas centrais foi, precisamente, Climate Change e Climate Litigation.
3. É muito oportuna, portanto, a discussão sobre a atuação de advogados e dos tribunais no enfrentamento desse tema. Dividi essa apresentação em três partes: (i) o papel do Judiciário na crise climática, (ii) algumas decisões emblemáticas pelo mundo afora e (iii) a situação específica do Brasil, que é um dos principais atores globais quando se trate de mudança climática e aquecimento global.
- Para quem esteja chegando agora ao tema, uma nota informativa. O regime das Nações Unidas para o enfrentamento da mudança climática assenta-se sobre três pilares:
(i) a Convenção Quadro, que entrou em vigor em 1994, foi ratificada por 197 países e estabeleceu princípios abrangentes, obrigações de caráter geral e processos de negociação a serem detalhados em conferências posteriores entres as partes. Nela ficou prevista a realização periódica de uma Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Neste ano de 2022, realiza-se a COP 27;
(ii) o Protocolo de Kyoto, que entrou em vigor em 1997 e conta atualmente com a ratificação de 192 países, instituiu metas específicas de redução da emissão de gases de efeito estufa para 36 países industrializados e a União Europeia. Os países em desenvolvimento ficaram de fora dessa obrigação específica;
(iii) o Acordo de Paris, que entrou em vigor em 2016 e conta com a adesão de 196 países. Ele se destina à a mitigação das mudanças climáticas e à adaptação aos seus efeitos, bem como ao financiamento das medidas para realizar esses fins. Seu objetivo principal é limitar o aquecimento global a 2 graus Celsius e, preferencialmente, a 1,5 graus Celsius, comparado com os níveis pré-industriais. Para tanto, busca a neutralidade de carbono até meados do século2.
Cada país deve, voluntariamente, apresentar sua Contribuição Nacional Determinada, comprometendo-se com à redução de suas emissões de gases de efeito estufa.
II. A litigância climática
1. A denominada litigância climática refere-se às ações judiciais ou procedimentos administrativos que visam, principalmente, à obtenção de decisões relativas à redução da emissão de gases de efeito estufa (mitigação), à redução da vulnerabilidade aos efeitos das mudanças climáticas (adaptação), à reparação de danos sofridos em razão das mudanças climáticas (perdas e danos) e à gestão dos riscos climáticos (riscos)"3.
2. Normalmente, esses casos têm como alvo ações ou omissões de governos ou agências governamentais, mas há exemplos, também, de ações ajuizadas em face de partes privadas, como se verá adiante.
3. Naturalmente, o papel dos advogados públicos e privados é não apenas defender seus clientes nessas ações, mas também o aconselhamento que busca evitar a ocorrência do litígio. Advogados têm, igualmente, um papel importante na assessoria para a regulação e a elaboração de legislação a respeito da matéria.
- Embora eu tenha sido advogado por 30 anos, eu vou olhar para o tema na perspectiva de um juiz constitucional, o que tenho sido pelos últimos 9 anos.
III. Mudança climática e direitos humanos
1. É importante registrar que o direito a um meio ambiente saudável - e o dever de os governos enfrentarem a mudança climática - vem sendo crescentemente compreendido, pela jurisprudência e pela literatura, como um direito fundamental. E tratados internacionais, como o Acordo de Paris, passam a ser vistos como tratados de direitos humanos.
2. Em verdade, é impossível dissociar a litigância climática da ideia de Justiça Climática, desenvolvida por Mary Robinson, ex-Presidente da Irlanda e ex-Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos4. Uma constatação relativamente óbvia feita por ela é a de que a mudança climática afeta de maneira desproporcional as populações mais pobres do mundo, que são as menos responsáveis por suas causas.
3. Justiça climática significa a adequada distribuição das responsabilidades, custos e consequências advindas das alterações causadas pelos fenômenos climáticos. Essa distribuição envolve países desenvolvidos e em desenvolvimento, pessoas ricas e pobres, geração atual e futuras gerações.
4. A injustiça climática afeta mais gravemente a fruição de direitos fundamentais pelos mais vulneráveis, que têm comprometidos os seus direitos à vida, à alimentação, à saúde e à moradia. A mudança climática começa a impulsionar a migração forçada de pessoas, fugindo de inundações, secas, elevação do nível do mar e outros eventos extremos.
5. A decisão brasileira no caso envolvendo o Fundo Clima5 é considerada a primeira decisão mundial de uma Suprema Corte reconhecendo o Acordo de Paris como um tratado de direitos humanos6.
6. Atualmente, está pendente perante a Corte Europeia de Direitos Humanos o caso Duarte Agostinho v. Portugal, a ser julgado pela Grande Câmara, composta por 17 juízes. Nessa ação, seis jovens portugueses ajuizaram uma queixa contra 33 países da União Europeia alegando que seus direitos humanos (vida, privacidade e não discriminação) estão sendo por eles violados ao não tomarem medidas suficientes em matéria de mudança climática. O pedido é para que adotem providências mais ambiciosas e efetivas.
- Em importante decisão datada de 23 de setembro de 2022, a Comissão de Direitos Humanos da ONU entendeu que a conduta da Austrália ao não proteger adequadamente os habitantes das ilhas do Estreito de Torres contra os impactos adversos da mudança climática constituía uma violação do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
Parte I
O Papel do Judiciário
I. Razões para a intervenção do Judiciário
1. São dois os principais fatores que, ao longo dos anos, têm levado à intervenção dos tribunais em questões climáticas, mais comumente para sanar omissões e atuações insuficientes ou deficientes dos governos.
2. Tais fatores são: a) ignorância e negacionismo, mesmo em face da advertência da quase unanimidade dos cientistas; e b) uma visão de curto prazo e imediatista da política, já que os efeitos das emissões de carbono e da degradação ambiental realizadas hoje somente serão sentidos pela próxima geração.
3. Vale dizer: por negacionismo ou imediatismo, políticos e empresários adiam decisões que, na verdade, são urgentes.
- Por essa razão, como os incentivos da política majoritária não favorecem a proteção ambiental e as medidas contra a mudança climática, os tribunais, cujos integrantes não dependem de votos nem precisam se mover pelos objetivos de curto prazo da política, é que precisam atuar.
II. Incremento da judicialização da questão climática nos últimos tempos
1. Nos últimos tempos, a litigância climática sofreu expressivo crescimento. De acordo com o Climate Change Laws of the World, são 2118 casos em todo o mundo, sendo cerca de 1476 somente nos Estados Unidos7.
2. Há três fatores que parecem influir nesse processo: a) a distância que separa o mundo das metas estabelecidas no acordo de Paris; b) a aproximação dos prazos dos compromissos estabelecidos; e c) o descaso acentuado de governos eleitos nos últimos tempos em relação à questão climática8.
III. Postura inicial do Judiciário, que começa a mudar
1. Num primeiro momento, as ações propostas visando responsabilizar governos por suas ações e omissões relativamente à mudança climática eram sumariamente descartadas.
2. Os fundamentos recaíam, normalmente, sobre a falta de legitimidade para agir e outras questões processuais. No fundo, a visão dos tribunais - que de certa forma ainda persiste amplamente - é que esta é uma questão política, não sendo própria a intervenção do Judiciário.
3. Mais recentemente, no entanto, em inúmeros países, os tribunais têm examinado o mérito de muitas dessas pretensões. Por vezes com decisões simbólicas, mas outras vezes com julgamentos efetivos, capazes de impactar, de modo relevante, o comportamento dos governos e empresas.
- Em alguns tribunais já começa a se delinear uma tese mais ousada, que é a do reconhecimento de um direito fundamental ambiental a entes não humanos (nonhuman entities), falando-se em "direitos da natureza".
Parte II
A litigância climática pelo mundo
I. Alguns precedentes emblemáticos
- Não é o caso nem seria possível fazer aqui um levantamento de todas as decisões, pelo mundo afora, que impactaram a questão ambiental e climática. No entanto, alguns julgados, por seu pioneirismo e relevância na luta ambiental em todo o planeta merecem registro. Aqui vão cinco deles.
1. Massachusetts v. Environmental Protection Agency (EPA)9
Em decisão datada de 2007, a Suprema Corte dos Estados Unidos, por 5 votos a 4, decidiu que: (i) os 12 Estados que ajuizaram as ações tinham legitimidade ativa para postular em juízo seus interesses relativos à preservação ambiental; e (ii) a legislação (o Clean Air Act) confere à Agência de Proteção Ambiental (EPA - Environmental Protection Agency) poderes para regular a emissão de gases de efeito estufa. A atuação da agência foi tímida nos governos Bush e Trump e mais intensa nos governos Obama e Biden. É importante registrar, todavia, que decisão mais recente da Suprema Corte, no caso West Virginia v. EPA10, reduziu significativamente os poderes da agência nessa matéria.
2. Caso Urgenda (Urgenda Foundation v. The Government of The Netherlands)
Em 20.12.2019, a Suprema Corte da Holanda confirmou as decisões da Corte Distrital e da Corte de Apelações no caso Fundação Urgenda v. Estado da Holanda (Urgenda Foundation v. The State of The Netherlands). A decisão que foi mantida, que era de 2015, determinou que o governo reduzisse suas emissões de gases estufa em pelo menos 25% até o fim de 2020, comparado com os níveis de 1990. O julgado determinou, ainda, que o governo tomasse imediatamente mais ações efetivas relacionadas à mudança climática. Esse foi, possivelmente, o primeiro julgamento no mundo no qual cidadãos obtiveram o reconhecimento de que seu governo tem o dever jurídico de prevenir mudanças climáticas perigosas.
3. Millieudefensie et al v. Royal Dutch Shell
Esta ação foi proposta por organizações não-governamentais ambientalistas e mais 17 mil cidadãos em face da Shell, uma das principais empresas no mercado mundial de combustíveis fósseis. Em decisão proferida em 5 de abril de 2019, a Corte Distrital da Haia determinou que a empresa ré, por sua holding (RDS), tinha obrigação de reduzir as emissões de dióxido de carbono em 45% líquidos até o final de 2030, comparado aos níveis de 2019. A redução se refere a todo o portfolio de energia do Grupo, levando em conta o valor agregado do volume de todas as emissões. O caso se tornou especialmente importante por ter sido a primeira vez que um tribunal ordenou a uma empresa privada que atuasse para a realização das metas do acordo de Paris.
4. Neubauer et al. v. Germany
Em 24 de março de 2021, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha decidiu que algumas disposições da lei alemã de proteção do clima (Klimaschutzgesetz - KSG) são incompatíveis com os direitos fundamentais na medida em que não estabelecem especificações suficientes em relação à redução das emissões de gás carbônico a partir de 2031. A lei de proteção do clima, de 12 de dezembro de 2019, regulamenta os objetivos nacionais para a proteção do clima e os valores das emissões permitidas anualmente somente até 2030. De acordo com o Tribunal, houve uma violação à proporcionalidade por transferir um ônus maior de redução das emissões para um período pós-1930, ameaçando os direitos fundamentais de gerações futuras. O tribunal introduziu, neste caso, a preocupação com a proteção de gerações futuras e o princípio da equidade intergeracional.
5. Notre Affaire à Tous e Outros v. France
Quatro organizações sem fins lucrativos iniciaram procedimento contra o Governo francês por ações inadequadas relativamente à mudança climática. Em 3 de fevereiro de 2021, o Tribunal Administrativo de Paris proferiu decisão reconhecendo que a inação da França causou danos ecológicos pelas mudanças climáticas e concedeu aos autores da ação o valor simbólico de um euro por dano moral causado por essa inação. Em 14 de outubro de 2021, o Tribunal ordenou que o Estado tomasse ações imediatas e concretas para cumprir seus compromissos de redução de emissões de carbono e reparar os danos causados por sua inação até 31 de dezembro de 2022. A França se comprometeu a reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 40% até 2030, em comparação com níveis de 1990, e alcançar neutralidade de carbono até 2050.
Parte III
A situação no Brasil
I. O quadro jurídico
1. O Brasil tem um quadro bem particular em relação à jurisdição constitucional em geral, que repercute, igualmente, sobre as questões climáticas.
2. Em primeiro lugar, a Constituição brasileira é uma Constituição bastante abrangente. Ela cuida, como qualquer Constituição, dos temas específicos próprios de uma Constituição: organização do Estado, separação e competência dos Poderes e definição dos direitos fundamentais. Mas cuida, também: do sistema tributário, do sistema previdenciário, do sistema de saúde, do sistema educacional, dos servidores públicos e suas diversas carreiras, da intervenção do Estado no domínio econômico, da proteção das comunidades indígenas, da criança, do adolescente e do idoso, e, muito particularmente, da proteção ambiental.
3. O art. 225 da Constituição prevê: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado..., impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".
4. Em segundo lugar, a Constituição brasileira possibilita o acesso relativamente fácil à Suprema Corte, em razão de dois mecanismos: a) a existência de inúmeras ações diretas que permitem que uma lei ou uma política pública possam ser questionadas diretamente perante o Supremo Tribunal Federal; e b) a existência de um grande número de atores institucionais e privados que podem propor essas ações diretas.
5. Esse quadro normativo é responsável pela existência de diversas ações perante o Supremo Tribunal Federal nas quais se discutem a atuação da administração pública em matéria ambiental e, especialmente, no que diz respeito à mudança climática.
II. O quadro fático
1. Nos últimos quatro anos, praticou-se no Brasil uma política ambiental que foi de encontro aos deveres impostos pela Constituição e às obrigações assumidas perante a comunidade internacional.
2. Assistiu-se ao desmonte das principais agências governamentais que desempenhavam as funções de comando e controle em matéria ambiental em todo o país, mas especialmente na Amazônia. Em números redondos, o desmatamento aumentou de 4 mil km2 em 2012 para cerca de 15 mil km2 em 2022.
3. Além disso, o governo se recusou a demarcar novas reservas indígenas, como impõe a Constituição e, pior que isso, deixou de proteger as reservas já existentes de invasões por motivações diversas. A experiência demonstra que a preservação ambiental é muito maior nas terras indígenas.
4. Houve grande leniência em relação a crimes diversos, como (a) exploração e comércio ilegais de madeira, (b) mineração ilegal, (c) caça e pesca ilegais, (d) grilagem de terras e (e) ameaças e assassinatos de defensores da floresta.
- O Brasil corre o risco de perder a soberania da Amazônia, não para qualquer outro país, mas para o crime organizado.
5. Esse quadro fático, somado ao quadro jurídico descrito acima, levou a uma atuação proeminente do Supremo Tribunal Federal em matéria ambiental.
III. Três ações perante o Supremo Tribunal Federal
- Existem, como dito, inúmeras ações em tramitação no Supremo Tribunal Federal lidando direta ou indiretamente com a questão ambiental e a mudança climática, que incluem: (i) o questionamento à privatização da empresa estatal de energia elétrica (Eletrobras); (ii) a participação da sociedade civil na composição de conselhos consultivos e deliberativos para definição de políticas públicas em matéria ambiental; (iii) o uso das Forças Armadas em ações preventivas e repressivas contra crimes ambientais; e (iv) várias ações relacionadas à omissão do governo na proteção de diferentes biomas brasileiros, como o Pantanal e a Amazônia.
Destaco a seguir três dessas ações: duas já julgadas e outra com o julgamento iniciado, mas suspenso por pedido de vista de um dos ministros. (No Brasil, onde os julgamentos são públicos, existe a possibilidade de um dos ministros pedir a paralisação temporária do julgamento para melhor estudar a questão).
III.1. Fundo Clima11
1. Trata-se de uma ação direta constitucional proposta por quatro partidos políticos perante o Supremo Tribunal Federal sob a alegação de que o Governo Federal manteve o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima) inoperante nos anos de 2019 e 2020. Pede-se o reconhecimento do dever jurídico do Governo de enfrentar a mudança climática, a retomada do funcionamento do Fundo e a proibição de contingenciamento dos seus recursos.
2. O Fundo Clima foi criado com a finalidade de assegurar recursos para apoio a projetos, estudos e financiamento de empreendimentos que visem à mitigação da mudança climática e à adaptação à mudança do clima e aos seus efeitos (Lei n. 12114/2009). Trata-se do principal instrumento voltado ao custeio do combate à mudança climática e ao cumprimento das metas de redução de emissão de gases de efeito estufa. Seus recursos provêm de participações especiais na exploração do petróleo, doações domésticas e internacionais e previsões orçamentárias, entre outros.
3. Em 2009, o Brasil assumiu o compromisso voluntário de até 2020 reduzir a emissão de gases estufa entre 36,1% e 38,9% em relação às emissões projetadas para o período. Embora o referido compromisso tenha constituído mera declaração política, sem caráter vinculante, a meta anunciada foi positivada na lei que instituiu a Política Nacional sobre Mudança Climática12. O compromisso implicava na redução da taxa anual de desmatamento para o patamar máximo de 3.925 km2.
4. Os autores da ação demonstraram, todavia, que o desmatamento, nos anos de 2019, 2020 e 2021, aumentou exponencialmente, em lugar de ser reduzido. E que isso importava em violação tanto dos compromissos internacionais assumidos quanto da legislação doméstica que incorporara tais compromissos, tornando-os vinculantes.
5. Ao longo da decisão, o Tribunal fez a afirmação importante de que os tratados sobre direito ambiental constituem espécie do gênero tratados de direitos humanos e que, portanto, de acordo com o entendimento vigente no Brasil, têm status supralegal, isto é: embora estejam abaixo da Constituição, estão acima da legislação ordinária.
6. A decisão final do Tribunal, de 4 de julho de 2022, assentou: a) a proteção do meio ambiente e o combate às mudanças climáticas não constituem questão política, mas dever constitucional, supralegal e legal do Governo Federal e, como consequência, b) o Governo não pode se omitir na operacionalização do Fundo nem c) tampouco pode contingenciar os valores a eles destinados.
III.2. Fundo Amazônia13
1. Trata-se aqui de ação direta constitucional proposta em face do Governo Federal pelos mesmos quatro partidos que haviam ajuizado a ação sobre o Fundo Clima, dessa vez contra a paralisação do Fundo Amazônia. Os autores pediram a reativação do Fundo com a retomada das captações, repasse de recursos para os projetos já aprovados, o exame de novos projetos e a proibição de utilização dos recursos do Fundo para fins diversos dos previstos no decreto de sua criação.
2. O Fundo Amazônia foi criado com o propósito de financiar ações de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento e de promoção da conservação e do uso sustentável da Amazônia Legal14. Trata-se de uma compensação financeira aos países em desenvolvimento, no âmbito do REED+15, de incentivo à redução de emissões de gases de efeito estufa. O Fundo Amazônia capta recursos internacionais e nacionais, tendo como principais doadores a Noruega (91%), a Alemanha (5,7%) e a empresa brasileira de petróleo Petrobras (0,5%).
3. As doações de Noruega e Alemanha, no entanto, foram interrompidas porque os contratos celebrados com aqueles países previam um específico modelo de governança do Fundo, conduzido por dois comitês: COFA (Comitê Orientador do Fundo Amazônia) e o CTFA (Comitê Técnico-Científico do Fundo Amazônia). O Governo Federal, contudo, extinguiu ambos, sem colocar uma outra estrutura aceitável no lugar. Como consequência, sem a sua principal fonte de recursos, o Fundo parou de funcionar.
- Uma observação interessante: logo em seguida às eleições presidenciais brasileiras de 30 de outubro de 2022, a Noruega e a Alemanha declararam que iriam retomar as suas contribuições para o Fundo Amazônia16.
4. A importante decisão do STF invocou os princípios da precaução, da prevenção e da vedação do retrocesso, bem como os deveres de proteção do Estado em matéria ambiental. Afirmou, também, que não se tratava de uma questão política, por haver ocorrido a desconstrução da política pública ambiental existente, sem que fosse substituída por qualquer outra.
5. Em conclusão, o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucionais os decretos que revogaram os comitês de governança do Fundo e determinou que em 60 dias o Governo Federal reativasse o Fundo Amazônia, com o formato de governança anterior.
III. Ação pedindo o reconhecimento de um estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental17
1. No dia 30 de março de 2022, o STF iniciou o julgamento de uma ação direta constitucional ajuizada por sete partidos políticos questionando ações e omissões do Governo Federal relativamente à questão ambiental, ao enfrentamento da mudança climática e, muito especialmente, à preservação da Floresta Amazônica.
2. O pedido principal foi a retomada e execução efetiva da política pública existente de combate ao desmatamento na Amazônia, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônica Legal (PPCDAm), de modo a viabilizar o cumprimento das metas climáticas assumidas pelo Brasil perante a comunidade global em acordos internacionais, internalizados pela legislação nacional.
3. Entre as inúmeras ações e inações do Governo Federal, foram apontadas: (i) redução da fiscalização e controle ambientais, (ii) redução e inexecução do orçamento do Ministério do Meio Ambiente e dos órgãos ambientais em geral (Ibama, ICMBio e Funai), (iii) desestruturação administrativa dos órgãos de combate ao desmatamento e proteção do clima e (iv) descumprimento de deveres internacionais de redução de desmatamento e de combate à emergência climática.
- A consequência de tais comportamentos do Governo Federal tem sido o aumento expressivo dos índices de desmatamento da Amazônia nos anos de 2019 e 2020, inclusive - e de maneira assustadora - dentro de Terras Indígenas (TIs) e Unidades de Conservação (UCs).
4. Em conclusão, pedem o reconhecimento de um estado de coisas inconstitucional na gestão ambiental do Brasil, instituindo um litígio de natureza estrutural.
5. A ministra relatora do caso apresentou o seu voto, no qual reconheceu o estado de coisas inconstitucional quanto ao desmatamento ilegal da Floresta Amazônica e de omissão do Estado brasileiro em relação aos seus deveres de proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
6. Como consequência, determinou que o Governo Federal e os órgãos e entidades federais competentes formulem e apresentem um plano de execução efetiva e satisfatória do PPCDAm ou de outros que estejam vigentes, especificando as medidas adotadas para: (i) a retomada de efetivas providências de fiscalização e controle voltados à proteção da Floresta Amazônica, (ii) resguardo dos direitos dos indígenas e das áreas protegidas (Terras Indígenas e Unidades de Conservação) e (iii) combate aos crimes ambientais.
7. Plano deverá ser apresentado no prazo de 60 dias e o Governo Federal deverá exibir, em sítio eletrônico acessível ao público, relatórios objetivos e claros das ações tomadas e dos resultados obtidos, de modo a poderem ser acompanhados por todos os interessados.
- Após o início do julgamento, um dos onze ministros do Tribunal pediu a sua suspensão temporária, para melhor exame da matéria (pedido de vista). Como já assinalado, trata-se de uma possibilidade prevista no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Ainda não há data marcada para a retomada do julgamento.
IV. Conclusão: o papel dos Tribunais Constitucionais no enfrentamento da mudança climática
1. A gravidade da mudança climática e a crítica inação de muitos governos têm alterado a linha de fronteira entre Direito e Política em matéria ambiental. Progressivamente, tribunais vão se tornando mais proativos.
2. Tribunais Constitucionais desempenham três tipos de papeis: (i) contramajoritário, quando invalidam atos dos outros dois Poderes que contrariem a Constituição; (ii) representativo, quando atendem demandas sociais, protegidas pela Constituição, e que não foram satisfeitas pelo processo político majoritário; e (iii) iluminista.
- Esse papel iluminista pode ser assim definido: em certas situações, raras mas importantes, cabe às Cortes Supremas, em nome da Constituição, de tratados internacionais e de valores universais de justiça, sanar omissões graves, que afetem os direitos humanos. Isso se dá em casos de inércia dos governos e mesmo de desmobilização da sociedade. Em muitas partes do mundo, foi assim com a segregação racial, os direitos das mulheres e os direitos da comunidade LGBTI, para citar alguns exemplos.
3. Com o tema da mudança climática também tem sido assim em muitos países: diante da inação dos governos e da falta de mobilização da sociedade, pode caber ao Judiciário empurrar a história na direção certa.
- Naturalmente, tribunais não são capazes de conduzir essa luta isoladamente e sempre será imprescindível a atuação governamental e da sociedade para que ela possa ter sucesso. Mas eles têm, em muitos casos, a capacidade de colocar o tema na agenda política e no debate público, forçando uma tomada de atitude.
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1- Sou grato a Luísa Lacerda e Gabriel Rodrigues Teixeira de Moraes Rêgo pelo valioso auxílio na pesquisa dos materiais que serviram de base ao presente texto.
2- A neutralidade de carbono ou neutralidade climática significa a emissão líquida zero de dióxido de carbono, mediante um equilíbrio entre emissões e absorção desse gás de efeito estufa. O efeito estufa consiste na retenção de calor na atmosfera, pela excessiva concentração de gases que produzem essa consequência. Sua principal causa é a utilização de combustíveis fósseis, como petróleo, carvão e gás natural.
3- Joana Setzer, Kamyla Cunha e Amália S. Botter Fabbri. Panorama da litigância climática no Brasil e no mundo. In: Joana Setzer, Kamyla Cunha e Amália S. Botter Fabbri (coords), Litigância climática: novas fronteiras para o direito ambiental no Brasil, 2019 [livro eletrônico].
4- V. Mary Robinson, Justiça climática: Esperança, resiliência e a luta por um futuro sustentável. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.
5- ADPF n. 708, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 4.07.2022.
6- Leandro Neumann, Brazil's High Court First to Declare Paris Agreement a Human Rights Treaty. Yale University Press: New Haven, 2022. Disponível aqui.
7- Disponível aqui. Acesso em 30 oct. 2022.
8- Exemplo: a Suécia sempre se destacou pelo vanguardismo ambiental, mas seu novo governo conservador extinguiu o Ministério do Meio Ambiente. Fonte aqui.
9- 547 U.S. 497 (2007). Disponível aqui. Acesso em 15.08.2022.
10- 597 U.S. __ (2022).
11- ADPF n. 708, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 4.07.2022.
12- Lei nº 12.187/2009, art. 12: "Para alcançar os objetivos da PNMC, o País adotará, como compromisso nacional voluntário, ações de mitigação das emissões de gases de efeito estufa, com vistas em reduzir entre 36,1% (trinta e seis inteiros e um décimo por cento) e 38,9% (trinta e oito inteiros e nove décimos por cento) suas emissões projetadas até 2020".
13- ADO n. 59, Rel. Min. Rosa Weber, j. 3.11.2022.
14- Decreto n. 6.527, de 2008.
15- O REED+ é um mecanismo de compensação financeira a países em desenvolvimento, formulado no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (UNFCCC), como incentivo para a redução de emissões de gases de efeito estufa, inclusive com a preservação florestal. Para que haja o pagamento é necessária a apresentação de resultados pelos países candidatos ao recebimento dos recursos.
16 - Disponível aqui.
17- ADPF n. 651, Rel. Min. Cármen Lúcia, j.