"O ódio só prejudica quem o sente", diz Barroso em discurso na FGV
Ministro afirmou que Brasil enfrenta falta de civilidade, fanatismo, baixa autoestima, naturalização da mentira, negacionismo ambiental e culto à ignorância.
Da Redação
sexta-feira, 26 de agosto de 2022
Atualizado em 29 de agosto de 2022 09:18
"Derrotar a pobreza, integridade, educação básica, desenvolvimento sustentável, investimento em ciência e tecnologia". De acordo com o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, esses são os pilares para o "país que queremos".
Patrono da turma de 2022 da Escola de Direito da FGV São Paulo, S. Exa. fez emocionante discurso sobre o retrato atual brasileiro e os alicerces necessários para um Brasil melhor.
Professor da faculdade, o ministro apresentou aos presentes dicas valiosas para a "fórmula da felicidade". Em sua visão, não há uma regra exata, pois, cada um é feliz à sua maneira. Todavia, Barroso reiterou que o segredo para viver uma vida boa é ser bom.
"Simples assim: ser uma pessoa boa. Controlar os próprios pensamentos, palavras e ações e direcioná-los para o bem. Ter respeito, consideração e um sentimento fraterno por todas as pessoas. Mesmo as que pareçam não merecer. E jamais dar reciprocidade a maus sentimentos. O mal consome a si mesmo. O ódio só prejudica quem o sente. Evitem a raiva e não tenham desejos de vingança. O universo se encarrega dos maus."
Entrevista
Em recente entrevista concedida à TV Migalhas, o ministro declarou que, para o Brasil voltar aos eixos, deve priorizar o enfrentamento à pobreza, porque a fome voltou a rondar muitos lares. Ele também destacou que o país precisa restabelecer a ideia de que pessoas que pensam diferente não são inimigas. Assista aqui.
Leia a íntegra do emocionante discurso:
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O PAÍS QUE QUEREMOS
Luís Roberto Barroso
I. Introdução
Há muitos anos na minha vida eu escolhi ser professor, sobretudo um professor. Fiz mestrado, doutorado, livre-docência, pós-doutorado, dou aulas na graduação e na pós-graduação, oriento trabalhos, participo de bancas, escrevo e publico regularmente. Eu também atuei como advogado e estou ministro do Supremo há nove anos. Mas sou professor há 40. Essa é a minha profissão.
Por essa razão, eu tenho imensa alegria de estar aqui, recebendo essa homenagem como patrono de uma turma em uma das principais escolas de direito do país. É entre jovens idealistas e empreendedores começando a vida que eu renovo a minha fé no Brasil. Momentos como esse fazem, também, com que a juventude me fuja um pouco mais devagar. E como poder agradecer é uma bênção, sou grato de coração por esse momento de felicidade que me proporcionam.
Eu sou, como alguns podem saber, um defensor da revolução da simplicidade e da brevidade no mundo do Direito. Falar com clareza, objetividade, sem linguagem empolada e sem precisar exibir erudição é uma importante transformação em curso. A linguagem não deve ser um instrumento de poder, mas de distribuição generosa do conhecimento. Nas palavras de Leonardo da Vinci, "a simplicidade é o máximo da sofisticação".
A brevidade também se tornou muito importante. Num mundo inundado por informações, por todos os meios de comunicação - dos veículos tradicionais às mídias sociais -, o tempo se tornou uma das mercadorias mais escassas e cobiçadas das nossas vidas. O jurista prolixo, verborrágico, apaixonado pela própria voz é incompatível com o mundo contemporâneo.
Por isso mesmo, como sempre faço, trago-lhes uma mensagem em cinco páginas. Falo um pouco do momento que vivemos, o país que queremos e algumas reflexões sobre a felicidade e o sucesso.
II. Um retrato do momento brasileiro atual
Eu sou um ator institucional, não um ator político. Meu papel é defender a Constituição, a democracia, as instituições. Minha lógica não é amigo/inimigo, mas certo ou errado, justo ou injusto, legítimo ou ilegítimo. Em meio a todas as incompreensões, eu não me desvio desse caminho. Além disso, eu lido com fatos. Fatos objetivos, e não opiniões pessoais. Isso se tornou um pouco raro no Brasil, onde as pessoas escolhem lado e inventam as próprias narrativas. É sob essa dupla perspectiva - de defesa das instituições e de exposição da realidade objetiva - que faço as reflexões que se seguem.
O Brasil se defronta nesse momento com dificuldades diversas, que incluem: falta de civilidade, fanatismo, baixa autoestima, naturalização da mentira, negacionismo ambiental e culto à ignorância.
A falta de civilidade se manifesta na agressividade, na grosseria, nas ofensas, na linguagem chula. O país vai precisar passar por um processo profundo de reeducação, para reaprender que pessoas que pensam de maneira diferente não são inimigas, que todos merecem respeito e consideração, que quem tem um bom argumento não precisa desqualificar o outro, bastando colocar as suas razões na mesa.
O fanatismo se expressa por meio da intolerância, da incapacidade de aceitar o outro, nas suas diferenças, sejam elas políticas, religiosas, étnicas, de orientação sexual ou qualquer outra. O fanatismo defende a violência, o autoritarismo, o ataque às instituições, as ameaças às pessoas. Trata-se de uma derrota do espírito, de um retrocesso civilizatório. De Hitler a Stalin, o fanatismo sempre custou caro à humanidade.
A baixa autoestima se deve a muitos anos de recessão ou crescimento pífio, marcados pelo desemprego, pelo desinvestimento, pela queda na renda, pela fuga de cérebros para o exterior. É impressionante a quantidade de pessoas cujo sonho é emigrar, ir embora. Precisamos de um projeto ambicioso de país, que afaste o baixo astral e restitua a esperança.
A naturalização da mentira é uma marca decadente do nosso tempo. É preciso fazer com que mentir seja errado de novo. As redes sociais são frequentemente utilizadas para semear a desinformação, a calúnia, as teorias conspiratórias, os vídeos editados desonestamente. Pós verdade e fatos alternativos são expressões que procuram disfarçar as notícias deliberadamente fraudulentas. Atenção: uma causa que precise de ódio, de mentiras, de agressões e de teorias da conspiração não pode ser uma causa boa.
O negacionismo ambiental é um dos grandes problemas do nosso tempo, assombrado pela mudança climática e pelo aquecimento global. Nossos diferentes biomas estão sendo destruídos pela ignorância e pela indiferença, com extração ilegal de madeira, mineração ilegal, invasão de terras indígenas e grilagem de terras públicas. Corremos o risco de perder a soberania da Amazônia, não para outros países, mas para o crime organizado.
Vivemos, também, um momento de culto à ignorância, com desprezo à educação básica, sucateamento das universidades públicas, negacionismo científico e o discurso de que armas são mais importantes do que livros e bibliotecas. No mundo da economia do conhecimento, da inovação, da revolução digital, não investimos mais do que alguns trocados em pesquisa de qualidade. Se não revertermos isso, vamos nos atrasar na história.
Como consequência de tudo o que estou narrando, atravessamos, também, um momento de constrangedor desprestígio internacional.
III. O país que queremos
Para construirmos o país que queremos, será preciso criar uma agenda de consensos, que incluem:
1. Derrotar a pobreza. Essa continua a ser a grande causa da humanidade e a grande causa brasileira. Interrompendo uma trajetória histórica de inclusão social, hoje temos 47,3 milhões de pessoas nessa situação, correspondendo a 22,3% da população.
2. Integridade. A integridade vem antes da ideologia. Honestidade não é virtude, mas dever moral e cívico. Simplificando um tema complexo, proponho duas regras simples: no espaço público, não desviar dinheiro; no espaço privado, não passar os outros para trás. Será uma revolução. Não há como nos tornarmos verdadeiramente desenvolvidos sem a elevação da ética pública e privada no Brasil.
3. Educação básica. Em 1960, o Brasil tinha 2,5 vezes o PIB per capita da Coreia do Sul. Hoje, nosso PIB per capita é 1/3 do da Coreia do Sul. Principal causa: a deficiência na educação básica, que produz vidas menos iluminadas, trabalhadores menos produtivos e elites menos preparadas para enfrentar os grandes desafios de qualquer país.
4. Desenvolvimento sustentável. Para enfrentar a pobreza e promover desenvolvimento, o país precisa voltar a crescer economicamente. Sem aumento de riqueza não há o que distribuir. Incentivo ao empreendedorismo e reforma tributária têm que estar na agenda. E, claro, com respeito ao meio ambiente e à justiça intergeracional, para não comprometermos a qualidade de vida das próximas gerações.
5. Investimento em ciência e tecnologia. Vivemos o tempo da economia do conhecimento, da inovação, da revolução digital, da inteligência artificial. Precisamos investir em pesquisa, na criação de instituições de ponta, nos cientistas nacionais e na importação de cérebros para revitalizar a pesquisa, a ciência e a tecnologia no Brasil.
IV. Sucesso, felicidade pessoal e solidariedade
Não existe uma fórmula da felicidade. Cada um é feliz à sua maneira. Mas da minha observação da vida, um dos segredos para viver uma vida boa é ser bom. Simples assim: ser uma pessoa boa. Controlar os próprios pensamentos, palavras e ações e direcioná-los para o bem. Ter respeito, consideração e um sentimento fraterno por todas as pessoas. Mesmo as que pareçam não merecer. E jamais dar reciprocidade a maus sentimentos. O mal consome a si mesmo. O ódio só prejudica quem o sente. Evitem a raiva e não tenham desejos de vingança. O universo se encarrega dos maus. É muito importante não ser como eles. Enfim, a vida é muito simples: o que a gente dá, a gente recebe.
Já o sucesso tem uma dupla face, uma dimensão exterior e outra interior. Para sua dimensão exterior, para a vida lá fora, o segredo também é simples: fazer as coisas bem-feitas. Estudar, alargar o conhecimento, praticar, insistir, recomeçar. Em três palavras: organização, preparação e treino. Sempre com humildade. Fujam da vaidade fútil e da arrogância. A gente nunca sabe demais. Há pessoas melhores e piores do que a gente em toda parte. A decisão essencial aqui é procurar ser o melhor que se pode ser, e não melhor do que os outros. Mas, por paradoxal que possa parecer, o sucesso é, acima de tudo, uma realização interior. É estar de bem com a vida, com o universo, transformando-se na melhor versão de si mesmo. Viver em paz e harmonia, sem permitir que qualquer força externa mude a sua natureza.
Por fim, tenham a consciência do privilégio que é ter chegado aonde chegaram e da responsabilidade social que vem com ele. Sejam solidários com as pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades e trabalhem para que chegue um tempo em que não haja privilegiados e desfavorecidos. Na frase feliz de Nelson Mandela, "É a diferença que fazemos nas vidas dos outros que determinará a importância da vida que levamos".
Uma última palavra a pais, mães e familiares, de sangue e de afeto. É justo o orgulho e merecida a alegria que sentem nesse momento. Sem o apoio, o carinho e muitas vezes o sacrifício de vocês essa conquista não teria sido possível. Como disse ao início, poder agradecer e ter o que agradecer é uma bênção. De modo que, como patrono da turma, expresso em nome dos formandos a gratidão perene por terem proporcionado a eles a celebração desse momento. E me despeço de todos vocês com uma passagem que se atribui a Michelangelo e que sugiro que tenham na mente e no coração:
"O maior perigo, para a maioria de nós
não é que o alvo seja muito alto
E não se consiga alcançá-lo.
É que ele seja muito baixo
E a gente consiga".
Sonhem alto. Pensem grande. Ajudem a fazer um país melhor e maior. Sejam felizes e abençoados.