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Abolição inconclusa

Abolição inconclusa é acompanhada por negação de direitos

A professora Roberta Eugênio, coordenadora da pós-graduação em Relações Étnico-Raciais e Gênero no Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito da Uerj, fala sobre abolição inconclusa e o extermínio da juventude negra no Rio de Janeiro.

Da Redação

terça-feira, 24 de maio de 2022

Atualizado às 14:04

Em entrevista à Tônica Mídia, a professora Roberta Eugênio, coordenadora da pós-graduação em Relações Étnico-Raciais e Gênero no Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito da Uerj, fala sobre abolição inconclusa e o extermínio da juventude negra no Rio de Janeiro. Ela aponta "negação de direitos fundamentais" como um dos principais problemas da atualidade e destaca os desafios enfrentados pelas mulheres negras. Leia na íntegra:  

 (Imagem: Divulgação)

(Imagem: Divulgação)

Brasil enfrenta crise humanitária: "falta água, comida e moradia", diz professora do Ceped

 

1) Por qual motivo o termo abolição inconclusa tem sido usado para falar sobre escravidão no Brasil?

A abolição formal da escravidão negra no Brasil, em 1.888, não significou uma tomada de consciência humanitária por parte Governo, tampouco uma vitória que possa ser atribuída a apenas um fator, como o avanço entre as elites intelectuais dos ideais abolicionistas. A assinatura da Lei Áurea é o símbolo de um processo complexo, fruto de pressões econômicas e políticas exteriores, a impossibilidade de conter o avanço e força das insurreições, claro, somadas, às lutas e disseminação dos ideais abolicionistas. De tal forma, o temor à escravidão, por si, não era (e não foi) o mesmo que constituir uma política que integrasse e reparasse os negros brasileiros pelos três séculos de violência colonial, e que agora, iria tomar novas feições, sob o bojo de uma pseudo liberdade - cerceada pelas limitações do acesso a um trabalho com remuneração digna, acesso à educação e moradia, dentre outros. Denunciar que a abolição foi uma farsa, com interesses outros que não a proteção e reparação da população negra é um convite à responsabilidade contínua desta nação com seu maior grupo populacional.

2) Os direitos civis da população negra ainda não são garantidos de forma plena no Brasil. Qual direito ou lei é mais urgente nesse momento da história para a população negra brasileira?

Os direitos sociais sempre devem ser entendidos em conjunto quando tratamos de grupos historicamente minorizados, ou seja, aqueles que fruto de processos sociais de violência, negação de acessos e oportunidades, foram tratados como o contingente descartável nesse país. Assim, pensar naquilo que se apresenta como mais urgente é um desafio, dado que para o fortalecimento das condições de dignidade que todos merecem, o acesso a bens e direitos, a fruição e a proteção da dignidade humana devem estar amparadas por todos aqueles direitos fundamentais constitucionalizados. Contudo, estamos em um momento de tamanha precariedade que retornamos às lutas pelo mínimo para a manutenção da vida: falo da garantia de comida, água potável, emprego e moradia. O direito mais urgente para a vida das pessoas negras em um estado de negação das suas vidas é todo aquele que garanta essa existência, passando pela garantia de renda mínima para acesso à alimentação e moradia até a proibição da continuidade do genocídio da juventude negra promovido pelas forças estatais.

3) As mulheres negras foram as mais atingidas durante a pandemia. Por qual motivo a vulnerabilidade social atinge mais a esse grupo social?

A pandemia atingiu de forma distinta as populações. Não porque o vírus agia de modo seletivo, mas devido às condições sociais e econômicas acumuladas fruto das desigualdades estruturais e estruturantes do Estado brasileiro. E, para entender este quadro, é necessário partir da formatação desse estado, que tem em suas bases o racismo, o sexismo, influenciando na distribuição desigual das oportunidades e violências. As mulheres negras encontram-se submetidas às discriminações odiosas fruto desses pilares, mas não apenas. Esses pilares interseccionados impõe a este grupo além de piores condições tanto pela discriminação racial quanto pelo machismo, também geram um apagamento das demandas específicas dessas, que encontram-se na base da pirâmide social brasileira, sendo aquelas que não puderam parar de trabalhar em empregos informais ao longo de toda a pandemia, estiveram na linha de frente nas ações comunitárias de combate à Covid, diante da necessidade de defesa de suas comunidades além de acumularem o trabalho reprodutivo, que são todas aquelas atividades essenciais para a manutenção dos cuidados com aquelas que precisam (crianças e idosos) e da vida doméstica e familiar. Não sem sentido, a primeira morte que tivemos no Brasil foi de uma mulher negra, idosa, empregada doméstica. Aqui estão todos os fatores daquelas que não puderam parar, mesmo sendo o grupo mais vulnerabilizado.

4) A participação política de mulheres negras nos espaços de poder tem crescido ultimamente, porém essa participação é ainda muito pequena. Quais providências a justiça brasileira tem tomado para fazer essa reparação social?

As ações para reversão do quadro da sub-representação de mulheres negras na política ainda são poucas e tímidas, considerando as ações da justiça brasileira. Diversas organizações da sociedade civil e parlamentares tem se mobilizado e obtido relevantes conquistas para que mulheres negras possam estar devidamente representadas na política. Com certeza uma das ações de maior destaque se refere a decisão do TSE que determinou a destinação de recursos de campanha para candidaturas negras de forma proporcional em 2020. A lei eleitoral já determina que as mulheres recebam recursos do fundo eleitoral em no mínimo 30 %, mesmo percentual mínimo de representação de candidaturas por gênero, segundo a lei eleitoral. Contudo, é possível perceber por este breve apontamento que as mulheres negras integram ambos os grupos mas não estão expressas como um grupo diante do qual qualquer reserva de candidatura ou recurso encontra-se expressa. Assim, ainda é necessário que haja controle social da população, cobrança aos partidos e fortalecimento daquelas mulheres negras que colocam seus nomes à disposição do processo eleitoral.

5) O extermínio da juventude negra em favelas do Rio de Janeiro é uma questão social que tem sido observada pelo mundo todo. Qual é o principal causador da alta letalidade contra crianças e adolescentes no Rio?

O genocídio da juventude negra acontece antes do tiro dado, da bala que não é perdida. Reitero a indisponibilidade das políticas sociais serem pautadas em conjunto. Em algumas partes da cidade é normal a ausência de creches públicas, de vagas naquelas que existem, de serviços de saneamento, de escolas públicas de qualidade, de aparelhos culturais, de oportunidades de emprego. E nesses territórios, historicamente empobrecidos e no qual há negação de direitos, com a ausência do poder público para fomentar políticas públicas sólidas, é evidente a autorização inaudita para o uso de armamento de guerra, em qualquer horário e dia da semana, sem cobranças sobre o impacto disso na vida e, por consequência, nas mortes. A discussão sobre o genocídio da juventude negra é uma discussão que remete ao início dessas perguntas: como falar sobre abolição quando a mortalidade de jovens negros tem como ator de maior impacto (já que é o de maior responsabilidade) o próprio estado? A abolição inconclusa se expressa nos índices que apresentam desigualdade nos acessos aos espaços de decisão, na probabilidade de morte por um vírus e no genocídio da juventude que tem CEP, cor e não tem nome nos jornais.

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Roberta Eugênio é coordenadora da pós-graduação em Relações Étnico-Raciais e Gênero no Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito (CEPED) da Uerj. Mestre em Direito pela UFRJ, tem experiência profissional nas áreas de Direitos Humanos, Teoria das Relações Raciais, Políticas Públicas, Gênero e Violência Política. Foi advogada de organizações do terceiro setor, como a Redes da Maré e o Instituto de Defesa dos Direitos Humanos, assessora parlamentar, pesquisadora e consultora em politicas públicas com enfoque em gênero e raça.   

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