Erro judicial: STJ absolve preso por reconhecimento fotográfico ilegal
Flávio Silva Santos foi supostamente identificado por uma foto antiga do Facebook, e condenado sem outras provas.
Da Redação
segunda-feira, 23 de maio de 2022
Atualizado às 10:39
Um inocente ficou preso por 2 anos e meio após ser condenado por integrar um grupo de 10 criminosos envolvidos em um assalto a um sítio. Flávio Silva Santos não tinha antecedentes criminais, e foi condenado a 13 anos de prisão após supostamente ter sido reconhecido pela vítima, por meio de uma foto antiga do Facebook.
A identificação fotográfica foi permeada por uma série de irregularidades, em inobservância do CPP, as quais foram agora reconhecidas pela Justiça. Ministro Ribeiro Dantas, do STJ, concedeu habeas corpus de ofício, e Flávio foi solto e absolvido Para o ministro, "é flagrante a escassez e a fragilidade dos elementos de prova acerca da autoria do acusado".
A advogada criminalista Flávia Guth soube do caso pelo irmão do acusado, Tarcísio. Embora não seja a patrona, se sensibilizou e atuou de forma gratuita para ajudar Flávio a ser inocentado. Nós conversamos com a criminalista.
Assista:
A advogada explica que tudo começou em novembro de 2019, quando a polícia foi até a casa de Flávio procurá-lo, sem citar seu nome, mas sim um apelido, e questionaram se era ele que tinha dois filhos. A esposa disse que ele estava trabalhando, e que não tinham filhos. O policial disse, então, que invadiu a casa errada e foram embora.
Naquela operação, outras pessoas do bairro foram presas. Um destes conhecidos, após ser solto, teria avisado Flávio que havia uma foto dele na delegacia.
Assustado com a invasão e a suposta foto, Flávio buscou a delegacia a fim de esclarecer os fatos. Ele foi acompanhado da esposa, da irmã e do irmão, mas não achou que seria necessária a presença de um advogado. Ele foi preso naquele dia.
Condenação
Em agosto de 2020, foi informado que ele havia sido reconhecido pela vítima por uma foto apresentada a ela. A foto em questão era de 2016 e foi retirada de uma rede social.
Segundo o relato, teria sido apresentada à vítima uma única foto, em desconformidade com o que diz o CPP, que determina que a foto do acusado seja colocada ao lado de outros com descrição semelhante. Teriam, ainda, exposto o nome do acusado: é ele mesmo? É o Flávio que o senhor reconhece? A resposta teria sido afirmativa.
Também havia divergências sobre a descrição. Enquanto o criminoso foi descrito como tendo olhos bem grandes, os de Flávio são pequenos.
Por fim, e mais absurdo - segundo a advogada Flávia Guth, posteriormente a vítima teria negado que fez o reconhecimento. Segundo Flávia, a assinatura do reconhecimento por parte da vítima pode ter sido falsificada.
Absolvição
No dia 11 de maio, o ministro Ribeiro Dantas reconheceu as irregularidades. Para ele, a condenação, proferida em 1º grau e mantida no Tribunal, não observou o devido regramento legal, visto que não foi amparada por outros elementos probatórios.
O ministro citou jurisprudência no sentido de que o reconhecimento pessoal, em juízo, se realizado sem respeito ao procedimento do art. 226 do CPP, não convalida o vício do reconhecimento fotográfico ocorrido em solo policial, sendo insuficiente para um decreto condenatório. Apontou, ainda, que o reconhecimento na fase do inquérito policial apenas é apto a identificar o réu, e fixar autoria quando observadas as formalidades do Código e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial.
Em precedente ainda mais recente, o STF decidiu que a desconformidade ao procedimento do art. 226 do CPP deve acarretar a nulidade do ato e sua desconsideração para fins decisórios., justificando-se condenação apenas se houver elementos para superar a presunção de inocência.
Segundo Ribeiro Dantas, nas decisões de 1º e 2º graus fica claro que a autoria do paciente foi ancorada em apenas um elemento de prova, qual seja, o reconhecimento por uma das vítimas, sem observância do CPP.
Sobre questão processual, o ministro pontuou que há orientação no sentido de que não cabe HC substitutivo de recurso legalmente previsto, impondo-se o não conhecimento da impetração. Mas, de ofício, concedeu a ordem, para reconhecer a nulidade ocorrida em relação ao reconhecimento do paciente e, por consequência, absolvê-lo dos crimes de roubo nos autos de ação penal oriunda da vara de Itapecerica da Serra/SP.
Flávio foi solto na última segunda-feira, 16.
Erro judicial - Prejuízos
Agora, Flávio teme não conseguir trabalho por ter uma "passagem" criminal.
Ao final da entrevista, a criminalista Flávia Guth lamentou a prisão de um inocente por tantos anos, e destacou os danos irreparáveis na vida do acusado. "Tiraram uma fração importante da vida dele."
Ela destaca que, embora possa buscar reparação pecuniária, alguns danos, sobretudo o psicológico, podem permanecer por anos.
"Por mais que ele tenha uma reparação pecuniária, a gente não sabe o que isso causou na vida dele. As marcas que ele vai ter na vida, os efeitos psicológicos, estresse pós-traumático."
A criminalista Flávia Guth destacou que há, neste caso, um problema grave de precedente. Para ela, enquanto o STJ não estabelecer que decisão em HC forma precedente judicial, os tribunais não vão aceitar.
- Processo: HC 669.987
Leia a decisão.