Liberdade de imprensa? Juiz bloqueia R$ 1,8 milhão da Editora Globo
A determinação do bloqueio aconteceu em ação ajuizada pela rede de hospitais Samel, do Amazonas, após a publicação de reportagens sobre pesquisa de droga no tratamento da covid-19.
Da Redação
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022
Atualizado em 8 de fevereiro de 2022 13:55
Na última semana, o juiz de Direito Manuel Amaro de Lima, da 3ª vara Cível e de Acidentes de Trabalho de Manaus, determinou o bloqueio de R$ 1,8 milhão, via SISBAJUD, da Editora Globo. A decisão se deu no âmbito de ação na qual a rede de hospitais Samel diz que O GLOBO manchou sua imagem após reportagens.
O caso acende discussões sobre liberdade de imprensa, razoabilidade, interesse público e uso dos mecanismos judiciais contra veículos de comunicação. Sem censura, siga na leitura.
Na origem, a rede de hospitais Samel processou a Editora Globo em razão da publicação de reportagens que falavam em indícios de fraude e violações éticas em um ensaio clínico com a droga "proxalutamida" em pessoas acometidas pela covid-19. As matérias indicavam que a pesquisa (fato que parece ser incontroverso) era realizada em unidades da Samel e outros hospitais amazonenses.
Na Justiça, a rede de hospitais afirma que sofreu acusações "graves e inverídicas, sem observância dos limites constitucionais à liberdade de expressão e de imprensa". Nos autos, a rede disse que
"As matérias veiculadas, pelo seu viés, evidentemente denegriram a imagem dos autores, com o intuito de causar constrangimento público, sem que avulte nelas o interesse de informar a população com fidelidade aos fatos."
Censura, Direito de resposta, STF...
Em outubro do ano passado, juiz de Direito Manuel Amaro de Lima, da 3ª vara Cível e de Acidentes de Trabalho de Manaus, determinou que o velho matutino se abstivesse de publicar qualquer outra matéria atrelando a rede de hospitais "a referidos fatos inverídicos e não comprovados, sob pena de multa".
Tal decisão, de cunho nitidamente censório, fez com que o matutino fosse ao Supremo Tribunal Federal. E, com efeito, o caso foi distribuído ao ministro Gilmar Mendes, por meio de uma reclamação. A editora Globo alegou que a decisão caracterizou ato de censura, pois seriam matérias jornalíticas legítimas, "que veiculam conteúdo relevante e de interesse público". Gilmar Mendes concordou. Para S. Exa., a veiculação das referidas matérias jornalísticas ocorreu dentro de parâmetros normais, "de modo que a ordem judicial reclamada afigura-se injustificável à luz do direito fundamental à liberdade de expressão e de imprensa".
Posteriormente, após "resolvida" a questão da censura, o juiz Manuel Amaro de Lima decidiu sobre o direito de resposta. Em dezembro, o magistrado concedeu liminar para determinar que a Editora Globo publicasse, em 48h, a resposta apresentada pela rede, "com o mesmo destaque, publicidade e dimensão da matéria impugnada, e no mesmo espaço (página inicial) de seu sítio eletrônico no qual divulgada; sob pena de sob pena de multa diária no valor de R$ 50 mil".
A Editora Globo fez uma publicação com o posicionamento da Samel. Todavia, para a rede de hospitais, a publicação não bastou, pois não foi feita sob os moldes de divulgação estabelecidos. Fez-se, então, um novo pedido à Justiça.
Dessa vez, o requerimento foi mais incisivo: além do direito de resposta, pediu-se a aplicação de todas as medidas necessárias à efetivação das tutelas provisórias, "especialmente à determinação de prisão, apreensão de passaporte e CNH" do diretor-Geral da Globo e de Malu Gaspar, colunista do jornal que assinou as referidas reportagens.
Bloqueio de R$ 1,8 milhão
A Editora Globo, então, novamente recorreu ao STF contra qualquer retaliação (de censura ou multa) por parte de determinação da Justiça do AM. Dessa vez, no entanto, o ministro negou o pedido sob o fundamento de que apenas havia decidido acerca da obstaculização da publicação das reportagens e, não, do prosseguimento normal do feito: "não há qualquer indicação que impeça o Poder Judiciário, na origem, de apreciar as provas produzidas nos autos e, eventualmente, reconhecer o direito de resposta e o cabimento de indenização por danos morais".
No dia 2 de fevereiro (quarta-feira passada) - curiosamente um dia após a última decisão do ministro Gilmar Mendes - o juiz de Direito Manuel Amaro de Lima atendeu ao pedido da Samel e deu um prazo de 24h para que a Editora publicasse o direito de resposta, seguindo os moldes estabelecidos.
Por entender que a Editora não cumpriu a decisão anterior, o juiz aplicou a multa de descumprimento no valor de R$ 1,8 milhão. O magistrado, então, determinou a realização imediata de bloqueio de valores via SISBAJUD, "no montante relativo as astreintes advindas do descumprimento do direito de resposta aqui declarado, o que perfaz na presente data o montante de R$1.850.000".
- Processo: 0750082-71.2021.8.04.0001
- Processo: 0677610-72.2021.8.04.0001
No direito de resposta exercido no matutino, a Samel Serviço de Assistência Médico Hospitalar Ltda conta que em fevereiro do ano passado, "o Grupo Samel recebeu o convite de uma equipe médica de Brasília e dos Estados Unidos da América (EUA) para participar, na condição de campo de estudo, de uma pesquisa científica em torno da teoria antiandrogênica, nos testes com o medicamento Proxalutamida".
Disse a empresa que o "uso da Proxalutamida dentro dos Hospitais do Grupo Samel ocorreu apenas como terapia adicional, ou seja, de modo complementar ao tratamento médico padrão em pacientes infectados por covid-19". Acrescentou a empresa "que a participação no estudo jamais negligenciou qualquer atendimento médico, pelo contrário, teve como objetivo somar novo método de tratamento".
Liberdade de imprensa
Por óbvio, a censura contra O Globo repercutiu negativamente. Associações como ANJ - Associação Nacional de Jornais; a Fenaj - Federação Nacional dos Jornalistas; a ABI - Associação Brasileira de Imprensa e a Abraji - Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo criticaram, tanto as ações promovidas pela rede de hospitais Samel contra O Globo, como as decisões judiciais.
Recentemente, Migalhas mostrou que o Brasil caiu 4 posições no Ranking Mundial de Liberdade de Imprensa, publicado anualmente pela ONG Repórteres sem Fronteiras. O país aparece no 111º lugar na edição 2021, na zona vermelha.
O advogado André Cid de Oliveira, do escritório Affonso Ferreira Advogados, atuou no caso pela Editora Globo.
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