Entrevista
Miguel Reale Jr. concede entrevista à revista Época
Da Redação
segunda-feira, 2 de fevereiro de 2004
Atualizado às 09:03
Entrevista
A revista Época traz com destaque entrevista com o jurista Miguel Reale Jr., do escritório Reale Advogados Associados. Veja abaixo:
O senhor acha que o governo vai conseguir fazer a reforma do Judiciário agora?
Miguel Reale Júnior - Acho. Diante das diversas denúncias de irregularidades que vão da Primeira Instância até o Superior Tribunal de Justiça, seja na Justiça Federal, seja nas estaduais, fica claro que a reforma é essencial. Tudo isso criou a necessidade de estabelecer um controle, de reconstruir a confiança do público na Justiça.
Os magistrados não gostam nem de ouvir falar em reforma, especialmente em controle externo de sua atividade. Sentem-se tolhidos. Como isso poderia ser feito sem afetar o trabalho do juiz?
Reale Júnior - O Conselho Nacional de Justiça é uma boa idéia. Da maneira como ele está proposto no projeto, com uma maioria de membros do Judiciário, não levaria a nenhuma diminuição da importância do juiz: daria transparência e ä imparcialidade à apuração das faltas disciplinares. Deveria haver conselhos superiores de Justiça nos Estados e um conselho federal para apurar ações dos membros dos tribunais junto ao Supremo Tribunal Federal. Os conselhos deveriam ser compostos de membros do MP, de advogados, além de pessoas indicadas pelo Congresso e pelas Assembléias Legislativas. Por outro lado, o Conselho de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) deveria ter magistrados e advogados. Tem de ser uma via de mão dupla: se os advogados requerem participação nos órgãos de controle da magistratura e do Ministério Público, deve haver representação da magistratura e do Ministério Público na comissão de ética dos advogados.
Nunca se viram tantas denúncias de corrupção no Judiciário. Mesmo assim, os juízes resistem ao controle externo. Por quê?
Reale Júnior - Porque os juízes não perceberam quanto cresceriam se existisse o controle externo. Eles teriam transparência, autoridade e não seriam acusados de corporativismo. Se houvesse desconfiança, haveria mecanismos para afrontar essa desconfiança. Acho que isso não é nenhuma diminuição. Quem tem poder tem de estar sob controle.
O senhor acha que eles aceitariam esse modelo?
Reale Júnior - Tem de haver mudança na mentalidade do Judiciário. A reforma tem de começar, a meu ver, pela quebra dessa estrutura encastelada, dessa visão clânica dos juízes. Deve mexer com a forma de escolha dos juízes: ela não deve ser feita apenas pelo saber dos manuais de Direito de segunda linha que pululam pelo país, que são objeto de elaboração de perguntas de concursos para a magistratura. É preciso dar mais atenção à teoria geral do Direito, à filosofia do Direito, à sociologia do Direito. O problema maior é nesse campo: os juízes não têm esse conhecimento. O nível caiu muito. O juiz hoje é um especialista de manuais porque os bacharéis são assim, as faculdades têm formado gente assim. O juiz não pode apenas fazer concurso. É fundamental que ele tenha, a meu ver, um tempo anterior de prática na área jurídica, como advogado, promotor, defensor público, para sentir o que é a defesa dos interesses desatendidos pretendidos à Justiça. Até para baixar um pouco a crista do jovem, sabedor dos alfarrábios, que acaba de assumir o posto de juiz. Seria interessante que os juízes aprovados num primeiro concurso fizessem um curso de juiz, como acontece com os diplomatas no Itamaraty. Para quebrar a noção de que o juiz é Deus. Especialmente os jovens têm essa arrogância de ditar a justiça. Ao longo do tempo, o juiz vai vendo que também está sujeito a problemas, e vai quebrando a sensação de onipotência. Isso é fundamental.
Esta formação ruim contribui para a corrupção?
Reale Júnior - Também, mas não é só isso. O clima espiritual de nosso tempo, de consumismo desenfreado, a constante convicção da impunidade no Brasil, apesar de tantos escândalos denunciados e apurados, contribuem mais. Está sendo esquecido também o problema dos advogados. Onde existe juiz corrupto, existe um advogado corruptor. Deve haver uma atuação mais rígida da OAB nesse campo. O exame de ingresso na ordem tem de ser cada vez mais rigoroso para barrar essas coisas. A reforma do Judiciário tem de passar por isso também.
Falta firmeza da OAB para lidar com os advogados bandidos?
Reale Júnior - Em alguns casos, sim. O rigor tem de ser exemplar na apuração e na aplicação das punições. O advogado é, sem dúvida nenhuma, o nascedouro do processo de corrupção do Judiciário. A parte interessada não tem acesso fácil ao juiz corrupto. A ligação ao juiz corrupto, ao policial corrupto se faz sempre por meio do advogado corrupto.
Alguns advogados foram presos por colaborar com traficantes. O que o senhor acha de estabelecer maior controle sobre o acesso dos advogados aos clientes presos?
Reale Júnior - Algumas medidas podem ser tomadas. Não dá para gravar a conversa entre o advogado e o cliente, por exemplo. Mas que o advogado deve passar por detector de metais, ser revistado, não há dúvida. Eu não vejo mal algum nisso. Eu viajo de avião e passo pelo detector de metais. Vou me arrogar a condição de advogado para não passar no controle de bagagem? Não.
É legítimo um advogado receber dinheiro sujo de traficantes?
Reale Júnior - Ele deve se resguardar para receber seus honorários de fonte legítima. Ele não precisa estudar de onde vem o dinheiro, mas tem de dar recibo e declarar no Imposto de Renda. Tem de ter transparência, mas não precisa investigar de onde veio o dinheiro, senão não há lógica comercial que resista. Se fosse assim, um sujeito acusado de corrupção não poderia comprar um tubo de pasta de dente no supermercado. Advocacia é uma prestação de serviço. Se fosse assim, um dentista também não poderia receber honorários de um corrupto. O que ele não pode é deixar de dar recibo, nem cobrar menos por fora.
A Lei da Mordaça, que restringe os poderes do Ministério Público, está em discussão no Congresso. Não é ruim para o país engessar o MP e restringir a divulgação de informações sobre crimes?
Reale Júnior - É preciso analisar com serenidade. O Ministério Público tem utilizado a imprensa para dar força a suas investigações. É certo que os promotores atuam com vistas ao interesse público, a uma necessidade geral, mas muitas vezes alguns deles são movidos também pela vaidade. Essa vaidade e os holofotes levam a precipitações de manifestações, de informações que depois não se constatam. O MP quer agora realizar investigações por conta própria, independentemente da atuação policial, através do que eles chamam de procedimentos administrativos criminais. O erro de o MP fazer investigação por conta própria é que muitas vezes ele não investiga para apurar o fato, mas para comprovar o que ele quer ver comprovado. Deturpam-se fatos para acomodar a prova à necessidade da acusação que se tem na cabeça. Isso é deformação do processo apuratório.
Mas a solução para isso é impedir que o Ministério Público divulgue dados de investigações? Manter crimes em segredo não seria pior para a democracia?
Reale Júnior - A versão original da Lei da Mordaça, elaborada pelo ministro Nélson Jobim, proibia os procuradores de dar opinião sobre um processo, não de revelar dados. O substitutivo que está hoje no Congresso modificou isso e fala em proibir a revelação de dados. Eu prefiro o original, que proibia apenas a opinião. Não vejo mal nenhum em revelar dados que não sejam objeto de segredo de Justiça, relativos a um inquérito em que foram apuradas responsabilidades. Ruim é lançar opinião que prevaleça sobre a objetividade.
A apuração da morte do prefeito de Santo André, Celso Daniel, motivou o ministro da Casa Civil, José Dirceu, a defender essa lei. Houve excesso do Ministério Público nesse caso?
Reale Júnior - Em algumas manifestações, sim. Mas, em geral, este caso tem investigações importantes que merecem atenção. Eu sei também que o PT tem essa investigação em Santo André como um calcanhar-de-aquiles. Aí entra interesse político e eu não estou pensando nesse aspecto. Não estou pensando em situação e oposição. Estou pensando nos casos em que o sujeito é acusado de ser chefe de quadrilha de roubo de carros, tudo é revelado precipitadamente, e depois se descobre que não é nada disso.
A Justiça brasileira é lenta demais. Dar mais velocidade a ela não deveria ser a prioridade da reforma do Judiciário?
Reale Júnior - Tenho dúvidas de que a celeridade deva ser o principal valor da reforma. A meu ver, nada pior que a injustiça célere. Tentou-se fazer uma justiça célere através dos juizados especiais criminais, mas tem sido um desastre. Vou contar uma história: uma senhora ficou presa na porta giratória do banco e fez um boletim de ocorrência de constrangimento ilegal. O banco mandou uma estagiária à delegacia para verificar. Tempo depois, ela foi convocada para ir ao tribunal como se fosse autora do fato! Amedrontada, ela aceitou imposição de pagamento de cestas básicas e a proibição de sair da cidade por determinado prazo! O promotor mal leu os autos: pegou o primeiro nome que viu e convocou para tentar um acordo, para terminar logo o processo e esvaziar a prateleira! Em geral, essa rapidez tem significado injustiça, não justiça. O problema não é só acelerar os processos de quem tem acesso à Justiça, é levar a Justiça à maioria da população que não tem acesso a ela.
Mas como fazer isso se a maioria não tem nem noção de como recorrer à Justiça?
Reale Júnior - Um caminho é implantar ouvidorias populares. Na periferia de São Paulo existem quatro Centros Integrados de Cidadania, onde ficam juízes, delegados e policiais para atender a população. Eles funcionam muito bem. Um magistrado que eu conheço foi designado para um desses centros. No começo ele disse que não trabalharia lá porque não tinha tapete vermelho e estrado para sua mesa, como manda o regimento. O responsável pela obra pediu 15 dias para providenciar. Durante os 15 dias ele percebeu que, se tivesse tapete vermelho e estrado, ninguém entraria lá. Ele estava com a idéia errada, de solenidade, de distância do povo. Aproximar-se do povo, rasgar os tapetes vermelhos e jogar fora os estrados é o que falta para a Justiça brasileira.
* Fonte: Revista Época
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