De dívidas a consignado: Consumidor e a nova lei de superendividamento
Especialistas abordam principais pontos da nova lei que busca a prevenção e o tratamento do endividamento de risco.
Da Redação
segunda-feira, 12 de julho de 2021
Atualizado às 16:58
A impossibilidade manifesta de o consumidor, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo sem comprometer seu mínimo existencial. Essa é a definição de "superendividamento" segundo a nova lei, que trata do problema no país. A lei 14.181/21 altera o CDC para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do endividamento de risco.
Segundo o Banco Central, pelo menos 4,6 milhões de pessoas empregadas se encontram na situação de endividamento de risco. Segundo dados do Endividamento de Risco no Brasil, em 2019, 7,2 milhões de pessoas permaneceram ao menos seis meses com comprometimento de sua renda acima de 50%.
Em resumo, a lei determina que bancos, financiadoras e empresas avaliem de forma responsável se o consumidor tem condições ou não de fazer determinada transação e informar todas as condições do crédito de maneira clara e ostensiva. A norma ainda permite a renegociação de dívidas sem novos juros e proíbe propagandas abusivas.
1. Repactuação da dívida
Ao Migalhas, Fernando Capez, presidente do Procon/SP e procurador de Justiça, destacou os principais pontos da nova lei. Para ele, um ponto forte é a possibilidade de o juiz ou os órgãos de defesa do consumidor convocarem os credores do consumidor superendividado para fazer a repactuação da dívida.
Segundo Capez, o juiz ou os órgão poderão suspender as ações em andamento ou mesmo extinguir as ações de cobrança em andamento, obtendo a dilação dos prazos de pagamento e a redução dos encargos da dívida, tudo por meio de uma conciliação.
Quando a conciliação é feita em juízo, na presença do juiz, todos os credores são obrigados a comparecer. Aquele que faltar terá suspensa a exigibilidade de seu crédito, até que venha à mesa de negociação. E, quando não for obtido o acordo, o juiz poderá nomear um administrador para fazer o planejamento compulsório da repactuação das dívidas, que poderão ser pagas em até 5 anos. Não se admite a redução do principal, mas é possível a retirada de todos os encargos, salvo a atualização monetária do valor.
O procurador explicou que a primeira parcela é paga depois de 6 meses da repactuação e, em seguida, parcelas mensais em até 5 anos. "Sem dúvida, esse é o ponto que mais chama a atenção da nova lei do superendividamento", frisou.
A advogada Laís Gomes Bergstein, do Escritório Professor René Dotti, ressaltou que até a atualização o consumidor que precisasse renegociar uma dívida precisava contatar e negociar com cada um dos seus credores.
"Agora já é possível uma negociação em bloco de todas as dívidas de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada. Para possibilitar o pagamento todos os credores contribuem com a elaboração de um plano consensual que preserve uma renda mínima necessária para a subsistência do consumidor superendividado e sua família."
2. Créditos consignados
Capez explicou ainda que a lei exige, agora, para os créditos consignados, que a instituição financeira antes de conceder o empréstimo, consulte a fonte pagadora do consumidor, ou seja, o tomador do empréstimo, para saber se ele já está onerado em mais de 30% do seu holerite. "Caso em que, não poderá proceder ao empréstimo. Trata-se de uma questão de exigibilidade, sob pena de nulidade do contrato."
O presidente do Procon/SP ressaltou outro ponto positivo: a obrigação do fornecedor de crédito avaliar de forma responsável se o consumidor tem condições ou não de fazer aquele empréstimo.
Para isso, explicou, o fornecedor do crédito deve consultar informações disponíveis em bancos de dados, órgãos de proteção de crédito etc., sendo, inclusive, proibido fazer oferta de crédito sem essa pesquisa prévia.
3. Bloqueio de compra
Fernando Capez salientou que, especialmente nessa época de pandemia em que se multiplicam os golpes aplicados em cartão de crédito, outra inovação que merece destaque da nova lei é que qualquer dificuldade para bloqueio imediato da compra implica, além do dever de indenização, configura prática abusiva, sujeita à aplicação de multa pelo Procon/SP.
4. Condições de crédito
O art. 54-B da lei do superendividamento prevê que, no fornecimento de crédito e na venda a prazo, o fornecedor ou o intermediário deverá informar o consumidor, prévia e adequadamente, no momento da oferta, sobre custo total, taxa mensal de juros, montante das prestações, prazo de validade, entre outros.
Para Capez, o artigo merece destaque pois obriga o fornecedor do crédito a informar todas as condições de maneira clara e ostensiva.
O que muda para os consumidores?
Fernando Capez opinou ainda que, para os consumidores, haverá a possibilidade de recomeçarem suas vidas sem a decretação da insolvência civil, que seria a falência da pessoa física. Para o procurador, os pontos irão, sem dúvida, proteger o consumidor.
"Além disso, não só a solução para aqueles que já estão superendividados, mas, muda, também, a prevenção para que outros não se tornem superendividados, impondo-se ao fornecedor a obrigação de informar detalhadamente todos os riscos daquele contrato e, ainda, no caso do crédito consignado, de consultar a fonte pagadora para proteger o consumidor que já está comprometido além do razoável."
Laís Bergstein ressaltou que não há proteção ao consumidor que contrai dívidas mediante fraude ou má-fé, oriundas de contratos celebrados dolosamente ou relativos a produtos e serviços de luxo de alto valor.
A advogada explicou que a atualização do CDC segue as diretrizes da OCDE, do Banco Mundial e de outras organizações internacionais.
"Essa nova legislação, que tem sido chamada de lei Claudia Lima Marques, devolve ao superendividado a possibilidade de gestão do seu patrimônio, a dignidade de saldar as suas dívidas e reingressar no mercado de consumo, beneficiando a todos."
Veto - Consignado
O dispositivo vetado que mais impacta a lei e os consumidores é unânime entre os especialistas. Se trata do art. 54-E, que determinava que, nos contratos para pagamento da dívida com autorização prévia do consumidor para consignação em folha de pagamento, a soma das parcelas reservadas a esse pagamento não poderia ser superior a 30% de sua remuneração mensal, como definido em legislação especial.
O descumprimento daria causa imediata à revisão ou renegociação do contrato. Além disso, o consumidor poderia desistir da contratação de crédito no prazo de sete dias. Para Capez, seria muito importante que se mantivesse o direito de arrependimento para que o empréstimo consignado fosse invalidado.
"A regra que permitia, em caso de desobediência dos limites para o crédito consignado, a imediata revisão e renegociação contratual, também deveria ter sido mantida, pois sem essa regra explícita, a questão pode sempre se tornar mais polêmica."
Segundo Lais, o veto ao art. 54-E foi lamentável, não apenas porque o dispositivo não obstava a manutenção da margem consignável mais elevada durante a pandemia, mas principalmente pela previsão do direito de arrependimento da contratação.
"No direito da União Europeia, por exemplo, há muitos anos se assegura um direito de arrependimento aos consumidores de crédito, em prazo bastante superior, inclusive. Essa proteção é importante principalmente pela forma célere que esses contratos são geralmente celebrados."
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