Pescaria probatória: Judiciário é conivente com mecanismo ilegal
O "fishing expedition" é uma ilegal prospecção investigatória e invasiva de patrimônio e registros que não têm relação com a investigação. De origem no direito anglo-saxão e norte americano, o instrumento também tem sido utilizado no Brasil, ao arrepio da lei.
Da Redação
quinta-feira, 13 de maio de 2021
Atualizado em 17 de maio de 2021 09:32
Imagine que você, migalheiro, defenda um investigado em operação da Polícia Federal que foi alvo de interceptação de mensagens no WhatsApp.
Coisa ordinária. Mas pense agora que a interceptação, em vez de se limitar às conversas relativas à investigação, abrangeu toda a lista de contatos, sendo fuxicadas, até mesmo, conversas de foro íntimo com esposa, filhos, José da Farmácia, grupo do futebol, etc.
Tal conduta, que é ilegal, tem nome e sobrenome: fishing expedition.
O termo significa "expedição de pesca" ou, em tradução livre, "pescaria probatória". Em resumo, a acusação "lança as redes" para "pescar" qualquer prova que eventualmente venha a ser útil em meios e ambientes que nada têm a ver com o caso investigado.
Origem: common law, pretrial e outras coisas...
Antes de esmiuçarmos o significado do fishing expedition é bem o momento de entendermos suas origens. Para isso, é necessário relembrar a disciplina de "Introdução ao Direito" que você, leitor migalheiro, provavelmente cursou no início de sua graduação.
O fishing expedition foi cunhado no modelo jurídico "common law", adotado no direito anglo-saxão e no direito norte-americano. Neste modelo, basicamente, os juízes são criadores de regras (diferentemente do Brasil, que adota o modelo "civil law", aquele no qual a lei é a principal fonte para as decisões judiciais).
No common law estadunidense, o processo judicial é dividido em duas partes:
- Pretrial (pré-julgamento);
- Trial (julgamento).
É no pré-julgamento que o fishing expediton entra. Para a Justiça norte-americana, só existe um caso para ser julgado após a fase pretrial, pois é nesse momento em que se determina a solidez das provas, os riscos envolvidos, o procedimento adotado e o tamanho da questão1.
Ao lançar mão dos mecanismos para levantamento das provas, alguns advogados utilizam-se de instrumentos processuais probatórios disponíveis nas Cortes para tentar encontrar informações que não seriam consideradas relevantes para um julgamento2 - isto é o fishing expedition.
De acordo com o desembargador aposentado Amado Faria, do TJ/SP, essa tese ganhou corpo na década de 1980, no curso de procedimentos investigatórios das atividades ilícitas próprias de organizações criminosas, nos Estados Unidos, particularmente com a instauração de processos criminais de envergadura como a ação penal "United States versus Gaetano Badalamenti et 101 defendants".
A Suprema Corte ianque entendeu que existe justa causa para a diligência se houver notícia ou razoável suspeita da prática de um crime, sendo desnecessária a certeza de sua efetiva ocorrência.
Acontece que até mesmo no país do Tio Sam o fishing expedition é alvo de controvérsia. No Estado do Kansas, o Tribunal daquela localidade anulou decisão anterior sob o fundamento do fishing expedition. Naquela oportunidade, os julgadores observaram que ficou caracterizada a tentativa das partes em se aproveitar da antecipação da prova para fins diversos.
Há anotações na doutrina do direito americano que assim conceituam o fishing expedition:
"Fishing expedition é um termo jurídico informal usado pela defesa para referir-se à tentativa da acusação de realizar buscas mais intrusivas das instalações, pessoa ou bens de um réu quando (na opinião da defesa) não há causa provável suficiente para realizar tal busca. O termo é, às vezes, também usado em litígios civis quando o advogado de uma das partes ordena ampla descoberta, o que pode atrasar a resolução do caso e aumentar o custo de litigar o assunto.
Também conhecido como "viagem de pesca". É uma forma de usar os tribunais para obter informações além do escopo justo da ação. O questionamento vago, e sem foco de uma testemunha ou o uso excessivamente amplo do processo de descoberta. Descoberta procurada em alegações gerais, vagas, ou sob suspeita, suposição ou vagas suposições. O escopo da descoberta pode ser restrito por ordens de proteção como previsto pelas Regras Federais de Processo Civil."
De acordo com o pesquisador Rafael Gomiero Pitta, o desafio atual dos desenvolvedores do sistema processual americano é manter a possibilidade de algum nível de fishing sem que os resultados obtidos sejam superados por consequências negativas, como o abuso no direito de privacidade.
No Brasil
Em 2019, a 2ª turma do STF declarou ilícitas provas obtidas em busca e apreensão realizadas durante diligências da operação Publicano, que apurou suposto esquema de propina e sonegação no âmbito da Receita Estadual do Paraná. O caso foi um exemplo modelo de fishing expedition.
O juízo da 2ª vara da Fazenda Pública de Londrina/PR expediu mandado de busca e apreensão no endereço de pessoa jurídica, mas a busca foi feita em endereço de pessoa física. Ou seja, os agentes valeram-se de mandado judicial para ir além daquilo que foi delimitado. Ao analisar o caso, a 2ª turma do STF considerou que a diligência foi ilegal, por ter sido realizada em local diverso do especificado no mandado judicial. O caso aconteceu no âmbito do HC 144.159.
Um exemplo mais recente mostra, novamente, a vedação expressa do fishing expedition pelo Supremo. Quando foi analisar as diligências da PGR em inquérito sobre declarações de Sergio Moro envolvendo Bolsonaro, o ministro Celso de Mello delimitou expressamente até onde o parquet poderia ir.
Naquele inquérito, Celso de Mello não acolheu o pedido de elaboração de laudo pericial pelo setor técnico-científico da PF sobre os dados informáticos da mídia do celular de Sergio Moro e de relatório de análise das mensagens de texto e áudio, imagens e vídeos. Segundo o ministro, a medida seria explorativa e deveria se limitar aos arquivos que guardem conexão com os fatos investigados.
O então decano da Corte lembrou que o ordenamento jurídico repele atividades probatórias que caracterizem verdadeiras e lesivas "fishing expeditions", ou seja, a lei brasileira repudia medidas de obtenção de prova que se traduzam em ilícitas investigações meramente especulativas ou randômicas, de caráter exploratório, também conhecidas como diligências de prospecção.
- Leia a íntegra do voto de Celso de Mello no Inq. 4.831.
Recentemente, o TJ/SP apreciou recurso em ação de produção antecipada de provas e acatou argumento da parte que alegou o fishing expedition. No caso, a parte afirmou:
"é como se o autor jogasse com a sorte: apresenta uma situação fática a partir de um relato fantasioso, pede a realização de todos os meios de provas possíveis e espera 'pescar' algo por meio do procedimento de antecipação de prova. Caso não encontre, porém, não haverá consequências para si, já que não formulou, propriamente, pretensão a respeito."
Neste julgamento acima mencionado, o Tribunal bandeirante assentou que a produção de provas deve obedecer aos requisitos do artigo 381 e 382, do Código de Processo Civil.
- Veja a íntegra do acórdão. (2188216-13.2020.8.26.0000)
De quem é a culpa?
De acordo com o juiz de Direito Alexandre Morais da Rosa, de SC, o Judiciário, em especial a magistratura, é condescendente com esta prática ilegal. Morais aponta, por exemplo, mandados vagos e genéricos de busca e apreensão que abrem brechas para o fishing expedition acontecer.
O magistrado explica que é uma regra do CPP a obrigação de fazer constar exatamente o que é para buscar, "mas, em geral, com uma magistratura, o ministério público e uma lógica autoritária, normalmente se faz um mandado para entrar e pegar tudo o que for relacionado ao crime, e aí se abre um campo enorme para se fazer o fishing expedition".
"Normalmente o poder Judiciário não cumpre com a obrigação de criar os limites da diligência e abre espaço para que outras teorias prevaleçam."
O juiz exemplifica: se o mandado judicial manda pegar os CDs, a polícia não precisa ficar vasculhando mais nada.
Fishing expedition: ostensiva x silenciosa
Alexandre Morais da Rosa classificou a prática de fishing expedition de duas formas: a ostensiva, quando é verificada e discutida; e uma segunda prática, "pior ainda", que é a fishing expedition silenciosa.
Neste último tipo, entram em ação as unidades de inteligência do Brasil. O juiz ressaltou que estas unidades podem, por exemplo, monitorar o cidadão de forma silenciosa e, posteriormente, fazer uma armadilha ou "esquentar" a prova obtida via denúncia anônima.
1 - CAMBI, Eduardo; PITTA, Rafael. Discovery no processo civil norte-americano e efetividade da justiça brasileira. Revista de Processo - RePro vol. 245 (Julho 2015). Para acessar a íntegra do trabalho, clique aqui.
2 - PITTA, Rafael. Pre-suit e Pretrial: as lições do sistema anglo-americano para as necessárias reformas do procedimento probatório brasileiro. Tese (Doutorado em Ciência Jurídica.) - Universidade Estadual do Norte do Paraná. Jacarezinho. 2019. Para acessar a íntegra do trabalho, clique aqui.
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Sorteio de livro
Agora que o leitor está inteirado deste importante assunto, Migalhas sorteará duas edições da obra "Fishing expedition e encontro Fortuito na busca e na apreensão: um dilema oculto do Processo Penal", dos autores Viviani Ghizoni da Silva, Philipe Benoni Melo e Silva e Alexandre Morais da Rosa.
O livro apresenta os institutos nas duas matrizes (EUA e Brasil), dialogando de modo coerente e, ao final, aponta a confusão de sentido que paira tanto na doutrina como na jurisprudência e indicam alguns caminhos práticos.
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Ganhadores:
Miguel Roberto Roige Latorre, de Presidente Prudente/SP; e
Luiza Alcântara Farinassi, de Goiânia/GO