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Feminicídio

Moraes diz que legítima defesa da honra é "naturalização da violência"

Para o ministro a tese é inconstitucional, pois legitima a consideração da honra masculina como bem jurídico de maior valor que a vida da mulher.

Da Redação

quinta-feira, 11 de março de 2021

Atualizado em 12 de março de 2021 07:16

De acordo com Alexandre de Moraes, ministro do STF, a tese de legítima defesa da honra remete à época do Brasil colonial. De acordo com S. Exa, foi disseminada, erroneamente, ao longo do tempo, a ideia de que a honra masculina se sobrepõe ao direito à vida da mulher e, por isso, o ato de matar esposa infiel se tornou verdadeiro mérito. Moraes destacou que o Estado não pode continuar omisso frente à naturalização da violência contra o gênero feminino.

Até o momento votaram os ministros Dias Toffoli (relator), Gilmar Mendes, Edson Fachin, Marco Aurélio, Rosa Weber e Alexandre de Moraes, todos no sentido de declarar a inconstitucionaldiade da tese. A votação, que acontece em plenário virtual, está prevista para terminar sexta-feira, 12. 

 (Imagem: Nelson Jr./SCO/STF)

(Imagem: Nelson Jr./SCO/STF)

O caso 

O PDT - Partido Democrático Trabalhista acionou o STF para questionar a constitucionalidade da tese jurídica da "legítima defesa da honra". Na ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, com pedido de liminar, a legenda argumenta que, com base na interpretação de dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal, Tribunais do Júri têm aplicado a tese e absolvido feminicidas.

O partido alegou que a garantia constitucional de soberania dos veredictos do tribunal do júri, por vezes, acaba legitimando julgamentos contrários aos elementos fático-probatórios produzidos à luz do devido processo legal, passando a mensagem de que legítimo absolver réus que comprovadamente praticaram feminicídio, se o crime houver ocorrido em defesa da sua honra.

Honra x Vida

Para S. Exa., o emprego da tese com o objetivo de convencer os jurados e os magistrados no sentido da existência de um suposto e inexistente direito de legítima defesa da honra, leva à nulidade do ato e do julgamento, impondo que leve a realização de outro.

"A origem do discurso jurídico e social que sustenta o argumento da legítima defesa da honra remonta ao Brasil colonial, tendo sido construído, ao longo de séculos, como salvo-conduto para a prática de crimes violentos contra mulheres."

O ministro lembrou, ainda, que o que se vê até os dias de hoje é o uso indiscriminado da tese como estratégia jurídica para justificar e legitimar homicídios perpetrados por homens contra suas companheiras, "colocando o país como um dos líderes de casos registrados entre as nações mundiais."

S. Exa. destacou que é cultural o fato da honra do homem ser de tão grande valor, que o ato de matar esposa infiel se tornou, ao longo do tempo, verdadeiro mérito do marido que vinga sua desonra. "Legitimou-se, com isso, a consideração da honra masculina como bem jurídico de maior valor que a vida da mulher".

Moraes suscitou que o argumento de legítima defesa da honra, apesar de obsoleto, e não mais expresso em qualquer texto legal, continuou sendo acolhido pela jurisprudência brasileira. De acordo com o ministro, apesar dos avanços legais no tocante à defesa da mulher, ainda existe a subsistência de um discurso e uma prática que tentam reduzir o gênero feminino na sociedade e naturalizar preconceitos de gênero existentes até os dias atuais.

"Não pode o Estado permanecer omisso perante essa naturalização da violência contra a mulher, sob pena de ofensa ao princípio da vedação da proteção insuficiente e do descumprimento ao compromisso adotado pelo Brasil de coibir a violência no âmbito das relações familiares."

Por todo exposto, o ministro acompanhou entendimento do relator, Dias Toffoli, no sentido de conferir interpretação conforme à CF/88 aos artigos 23, II, e 25, caput e parágrafo único, do CP, bem como ao artigo 64 do CPP para excluir do âmbito de proteção dos permissivos legais de legitima defesa, enquanto excludente de ilicitude, quaisquer interpretações que admitam a invocação da tese jurídica da legítima defesa da honra.

Leia o voto na íntegra. 

Relator

Em decisão cautelar, o relator, ministro Dias Toffoli, afirmou que a tese da legítima defesa da honra constitui recurso argumentativo e retórico "odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil". 

O relator havia proposto que a limitação argumentativa da tese de legítima defesa da honra se aplicasse apenas à defesa. Após o voto do ministro Gilmar Mendes sugerindo que seja aplicável a todas as partes processuais, o relator aderiu à proposta. As teses após a alteração de Toffoli foram: 

"i - firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero;

ii - conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência,

"iii - obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento."

Relações patriarcalistas

O ministro Gilmar Mendes destacou em seu voto que, "sem dúvidas, vivemos em uma sociedade marcada por relações patriarcalistas, que tenta justificar com os argumentos mais absurdos e inadmissíveis as agressões e as mortes de mulheres, cis ou trans, em casos de violência doméstica e de gênero".

S. Exa. esclareceu que neste cenário, a tese de legítima defesa da honra aflora nas discussões e em alguns casos de julgamentos por jurados para justificar, manifestamente de modo absurdo e inadmissível, atos aberrantes de homens que se sentem traídos e se julgam legitimados a defender sua honra ao agredir, matar e abusar de outras pessoas.

Sociedade machista

Fachin destacou que é absolutamente contrária à Constituição a interpretação do quesito genérico formulado ao Júri que implique a repristinação da odiosa figura da legítima defesa da honra. O ministro disse, ainda, que os avanços na legislação no combate à violência contra a mulher, como a Lei Maria da Penha e a tipificação do feminicídio não podem ser desconsiderados pela interpretação sem limites da formulação de quesitos genéricos.

"É parte da missão constitucional deste Tribunal honrar a luta pela afirmação histórica dos direitos das minorias, não se podendo permitir que, a pretexto de interpretar o direito democrático da cláusula do Júri, sejam revigoradas manifestações discriminatórias."

Para o ministro, ainda que fundada em eventual clemência, a decisão do Júri não pode implicar a concessão de perdão a crimes que nem mesmo o Congresso Nacional teria competência para perdoar, e o homicídio qualificado é considerado crime hediondo.

  • Processo: ADPF 779

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