STF: Dez anos do julgamento histórico que revogou lei de imprensa
Pesquisa recente do CNJ revela que mais da metade das ações judiciais sobre liberdade de imprensa são motivadas por difamação.
Da Redação
segunda-feira, 8 de abril de 2019
Atualizado em 2 de abril de 2019 08:01
Era abril de 2009 quando o STF decidiu tornar sem efeito uma das últimas legislações do governo militar que ainda estava em vigor: a lei de imprensa.
A lei 5.250/67 foi assinada pelo ex-presidente Castelo Branco meses depois da outorga da Constituição de 1967, quando o endurecimento do regime militar se iniciava.
Com o objetivo de controlar informações, de acordo com as previsões da norma, jornalistas e veículos de comunicação poderiam ser detidos ou multados caso publicassem algo que ofendesse a "moral e os bons costumes". A pena poderia ser aumentada se o conteúdo difamasse ou caluniasse alguma autoridade, como o presidente da República.
À época, o Estado de S. Paulo publicou editorial afirmando que na norma havia dispositívos lamentáveis.
Em 2009, após longo julgamento, 7 dos 11 ministros da Corte concluíram que a lei era incompatível com a atual Constituição, que é repleta de garantias à liberdade de expressão.
A partir da decisão, os juízes passaram a se basear na CF/88 e nos códigos Penal e Civil, para julgar ações contra jornalistas.
Julgamento histórico
Tudo começou quando o então deputado Miro Teixeira, ao entender que a lei de imprensa não se alinhava à CF/88, assinou a petição da ADPF 130, visando a revogação da lei.
Conforme argumentou Miro Teixeira, a lei havia sido imposta à sociedade pela ditadura militar e, por isso, continha dispositivos incompatíveis com o Estado Democrático de Direito inaugurado pela CF/88, como a pena de prisão para jornalistas condenados por calúnia, injúria e difamação.
A ação foi distribuída ao ministro Carlos Ayres Britto, que já em caráter liminar suspendeu uma série de dispositivos da antiga lei. No julgamento de mérito, o voto de S. Exa. foi celebrado pela imprensa e pela sociedade como símbolo das garantias da liberdade de expressão e de informação incutidas na Carta Magna. Ao votar totalmente procedente a ADPF 130, ministro Ayres Britto asseverou:
"A plena liberdade de imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado de evolução político-cultural de todo um povo. (..) Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados."
No voto, o ministro assentou a relação de inerência entre o pensamento crítico e a imprensa livre:
"O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado. A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada.
(...) O Poder Público somente pode dispor sobre matérias lateral ou reflexamente de imprensa, respeitada sempre a ideia-força de que quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja. Logo, não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. "
Os ministros Eros Grau, Menezes Direito, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Cezar Peluso e Celso de Mello acompanharam integralmente o relator.
Com votos vencidos, os ministros Joaquim Barbosa, Ellen Gracie e Gilmar Mendes defenderam a extinção parcial da lei, com manutenção de alguns dispositivos como os que disciplinavam o direito de resposta e a proibição de publicar mensagens racistas.
Apenas o ministro Marco Aurélio defendeu que a lei continuasse em vigor.
À época, a Corte entendeu que a regularização da atividade jornalística e as punições por eventuais abusos, previstas na lei de imprensa, representavam tentativas de limitar a imprensa.
Com esse posicionamento, no dia 30 de abril de 2009, os 7 capítulos e os 77 artigos da lei de imprensa se tornaram, 42 anos depois, inconstitucionais.
O acórdão do julgamento entrou para a história do Supremo Tribunal Federal.
Direito de resposta
Um dos principais debates ao longo do julgamento que revogou a lei de imprensa foram atinentes ao direito de resposta.
Defendendo este direito, Gilmar Mendes, à época presidente do Supremo, argumentou que a falta de normas a esse respeito poderia deixar cidadãos e órgãos reféns de juízes:
"A desigualdade de armas entre a mídia e o indivíduo é patente. O direito de resposta é uma tentativa de estabelecer um mínimo de igualdade de armas. Vamos criar um vácuo jurídico numa matéria dessa sensibilidade? É a única forma de defesa do cidadão!"
A observação, no entanto, não convenceu os outros ministros. Um dos opositores, Cezar Peluso, defendeu que o Judiciário teria condições de garantir esse direito, mesmo sem legislação específica.
Segundo o acórdão do julgamento, o direito de resposta deveria se pautar no inciso V do art. 5º da CF, no qual "é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem".
Foram seis anos desde a decisão do Supremo em revogar a lei de imprensa até a criação de uma lei específica para normatizar o direito de resposta: a lei 13.188/15, sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff estabelece critérios para a busca de retificação ou direito de resposta a quem se sentir ofendido "em matéria divulgada, publicada ou transmitida por veículo de comunicação social".
A norma garante que os ofendidos por notícias possam responder ou retificar informações em espaços gratuitos e de forma proporcional.
Liberdade de imprensa em números
O CNJ lançou um relatório em 2018, divulgando a situação processual de liberdade de imprensa no Brasil.
Para isso, o Conselho contou com a colaboração da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Tv) e ANJ (Associação Nacional de Jornais), que encaminharam a relação de processos cadastrados nas respectivas associações.
Ao todo, foram 2.373 processos relacionados à liberdade de imprensa.
De acordo com a pesquisa, a maioria desses processos estão na Justiça Estadual e uma parcela significativa se encontra na Justiça Eleitoral.
Relatório estatístico: liberdade de imprensa, CNJ, 2018.
No que se refere a motivação dos processos, difamação é a causa mais frequente, ocorrendo em 59,5% das vezes. Violação à legislação eleitoral foi a segunda com maior frequência, totalizando 19,4%.
Violação à privacidade, aos direitos autorais e à marca vêm em seguida no ranking:
Relatório estatístico: liberdade de imprensa, CNJ, 2018.
O relatório alerta para o fato de os dados sobre esse tipo de processos serem dispersos, havendo inúmeras lacunas e imprecisões nos mecanismos de coletas das informações.
Ainda, o estudo aponta a tímida atuação do Poder Judiciário quanto à organização da gestão jurídica desses dados: "O Poder Judiciário precisa avançar e se preocupar com os dados que ele produz em seu dia a dia, ao cadastrar e movimentar processos judiciais, sejam eles de forma física ou eletrônica".
"Ctrl + X"
Percebendo um aumento nos casos judiciais contra veículos de comunicação e jornalistas, a ABRAJI (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) desenvolveu o projeto Ctrl+X, uma base de dados com o objetivo de mapear ações judiciais que tentam remover conteúdo da internet.
Quando o projeto foi iniciado, em 2014, seu nome era "Eleição Transparente" e o foco era mapear ações que tramitavam na Justiça Eleitoral. A partir de 2015, o projeto passou a ser chamado de "Ctrl+X" e começou a abranger os processos tramitando na Justiça Comum.
Os dados levantados pelo mapeamento do Ctrl+X confirmam o que diz o CNJ ao apontar a difamação como motivação principal para abertura de ações judiciais, totalizando 76% dos casos.
Em 2017, o projeto recebeu o prêmio "Data Journalism Awards", uma das maiores premiações internacionais de jornalismo de dados.