Programa de repatriação no limbo?
Receita Federal está indo atrás da comprovação da origem dos recursos - uma exigência que não estava prevista na lei do programa.
Da Redação
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019
Atualizado em 1 de fevereiro de 2019 15:51
Do fim do ano para cá, as novidades tributárias não têm sido agradáveis para os contribuintes que aderiram ao programa de repatriação de valores dos governos Dilma/Temer, o Rerct - Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária.
Antes mesmo do ministro da Justiça Sérgio Moro declarar que pretende investigar a origem dos R$ 175 bilhões regularizados, a Receita Federal tratou de comunicar os contribuintes que deveriam apresentar documentos de abertura da conta mantida no exterior, extratos bancários e a comprovação da origem dos recursos - uma exigência que não estava prevista na lei do programa.
Diante da novidade, muitas dúvidas surgiram: pode a Receita avançar no que a lei formalmente negou? Há violação da segurança jurídica? É possível aos contribuintes conseguirem reunir os documentos necessários? Quais as consequências para quem não o fizer?
Acerca do tema, o advogado Luiz Gustavo A. S. Bichara, do escritório Bichara Advogados, esclareceu estes pontos. Confira na entrevista abaixo.
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1. Há ilegalidade na nova orientação da Receita com relação à comprovação da origem dos valores?
Sim. Primeiro, porque a lei 13.254/16 não traz essa exigência de que o contribuinte tem que comprovar a origem de seus recursos. Pelo contrário, a lei determina que o contribuinte deve prestar uma declaração de que os recursos têm origem lícita e prevê penalidades caso a Receita Federal prove que tal declaração é falsa, estabelecendo assim, de forma clara, que cabe à autoridade fiscal o ônus da prova de que tal declaração é falsa.
Portanto, se a lei não colocou a exigência de comprovação da origem por parte do contribuinte, a Receita Federal não pode fazê-lo por meio de um ato administrativo, pois tal ato seria ilegal, exatamente, da sua falta de suporte em lei.
O segundo ponto que demonstra a ilegalidade e a inconstitucionalidade da exigência da comprovação da origem dos recursos por parte do contribuinte é a violação à segurança jurídica. Isto porque ao tempo em que o contribuinte deveria decidir por aderir ou não ao RERCT o cenário jurídico existente na ocasião, claramente, indicava que não seria necessário que ele (o contribuinte) teria que comprovar a origem dos recursos.
De fato, de um lado tínhamos a circunstância de que a primeira versão do projeto de lei que resultou na lei 13.254/16 (PLS 298/15) trazia disposição expressa para que os contribuintes se munissem de documentos suficientes para comprovar a origem dos recursos regularizados. No entanto, tal exigência foi retirada do projeto de lei aprovado, pois não fazia qualquer sentido lógico, o que endossava o entendimento de que não seria necessário que o contribuinte fizesse a prova da origem dos recursos.
De outro lado, a Receita Federal expressamente reconhecia ao tempo da adesão ao RERCT, num ato com efeitos de norma jurídica, que esta interpretação de que não cabia ao contribuinte a prova da origem dos recursos era a interpretação correta. Tal posicionamento do fisco estava na pergunta 40 do 'Perguntas e Respostas' a respeito do programa de repatriação, publicado pela própria Receita Federal.
Assim, alterar, agora, o entendimento sobre a quem cabe a prova da origem dos recursos representa uma violação à segurança jurídica, que é um valor protegido pela Constituição da República.
2. Quais as dificuldades nessa comprovação?
A dificuldade é enorme. Os contribuintes fizeram esforços ao tempo da ocorrência dos fatos que deram origem aos recursos regularizados para que não houvesse qualquer documento relacionado àquele fato. Não seria possível, mesmo que quisessem, levantar agora documentos que demonstrem a origem dos recursos.
Veja-se, por exemplo, o caso de recursos regularizados que são decorrentes do recebimento 'por fora' de parte do preço de venda de um imóvel. Como poderia o contribuinte comprovar que os recursos têm origem naquela venda? Uma foto da mala de dinheiro? Confissão do comprador? É uma questão até de lógica ...
Outro fator de dificuldade é que os fatos que deram origem aos recursos geralmente ocorreram há muito tempo, quando a inflação era extremamente volátil (início dos anos 90) ou nossa moeda e cenário político eram muito instáveis (anos 80).
3. Quais as prováveis consequências em caso de inconsistência alegada pela Receita?
Caso a Receita Federal prove que o contribuinte prestou declaração falsa ao afirmar que os recursos regularizados têm origem lícita, o contribuinte poderá ser expulso do RERCT e perderá todos os benefícios que lhe foram concedidos. Assim, terá que recolher os tributos sobre os recursos regularizados de acordo com a operação que os gerou, acrescido de multa (que pode chegar a 150% do imposto) e de juros calculados pela Selic, o que certamente resultará num valor maior do que foi recolhido dentro do RERCT.
Outra consequência é que o contribuinte perderá o perdão criminal. Dessa forma, caso existam outros indícios (que não sejam a própria declaração do contribuinte sobre os fatos que deram origem aos recursos) ele pode vir a ser investigado criminalmente. Este ponto é importante porque mostra que a persecução criminal na hipótese de o contribuinte ser excluído do RERCT não é uma consequência automática. Para que as autoridades possam iniciar uma investigação criminal sobre o sujeito que foi expulso do RERCT é que preciso que tenham outros indícios (que não sejam apenas as declarações prestadas pelo contribuinte na adesão ao regime) da ocorrência do crime.
4. É possível esperar outras mudanças de postura do Fisco, considerando agora essa inversão do ônus de demonstrar a veracidade das informações?
É difícil fazer essa previsão. Espera-se que não venham novas surpresas como essa. Decisões da Receita Federal como esta de alterar seu entendimento sobre a comprovação da origem dos recursos acabam por causar muito inquietude nos contribuintes que acreditavam que cumpriram sua parte no acordo de repatriação (tendo declarado os recursos e recolhido o imposto e a multa) e estavam totalmente seguros, com o assunto encerrado. Adicionalmente, deve-se lembrar que comportamentos como este do Fisco levam sempre o contribuinte a ter gastos extras (que em geral não lhe são reembolsados depois) , pois é preciso que se defendam, com participação de um advogado, contra a investida da autoridade fiscal.