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Aborto

Myrthes Campos defendia o aborto em 1915

Pioneira na luta pelos direitos femininos, a advogada publicou artigo intitulado "O direito ao aborto".

Da Redação

terça-feira, 17 de julho de 2018

Atualizado às 09:28

Em 1915, Myrthes Campos, primeira mulher a exercer a advocacia no Brasil, defendia "O direito ao aborto" em artigo publicado no Jornal O Paiz. Em uma época em que a mulher quase não contava com direitos consolidados em sociedade, Myrthes foi pioneira na luta pelos direitos femininos, como o exercício da advocacia pela mulher, o voto feminino e a defesa da emancipação jurídica feminina.

"Não se pode, enfim, consentir que o exagero na defesa dos direitos de uma existência em formação apenas, chegue ao ponto de preterir todos os direitos da mulher, impondo-lhe as consequências de uma maternidade ignominiosa, oriunda do delito de que foi ela vítima, não sendo nem possível a punição do autor do atentado como acontece na situação anormal que atravessam os povos em guerra."

(clique aqui, na imagem ou confira abaixo o artigo na íntegra)

O direito ao aborto

É licito provocar o aborto nas mulheres violadas na guerra? Eis a complicada questão que, a propósito de lamentáveis fatos ocorridos durante a atual conflagração europeia, apresentou La Chronique Medicale, de Paris, aos seus leitores, tem tido repercussão na imprensa daqui e dando ainda ensejo a exibição de pareceres de médicos ilustres. Não pretendia me envolver no debate, mas tendo resolvido, ultimamente, acudir ao apelo do distinto 5º anista de medicina Leonídio Ribeiro Filho, que, aconselhado pelo meu preclaro professor e amigo Doutor Souza Lima, procurou saber minha opinião no assunto, tracei os comentários que se seguem e que se algum valor tem, é simplesmente o da sinceridade:

Discordando da doutrina da maior parte dos preopinantes, cometo a ousadia de me ocupar da tese proposta que, ao meu ver pode apenas ser discutida sob o ponto de vista moral ou do direito a constituir-se, visto todas as legislações modernas só deixarem impune o aborto provocado, quando necessário para salvar a vida da gestante (abordo terapêutico). Perante o direito penal vigente, portanto, uma questão já resolvida de modo negativo.

Documentos históricos fornecem notícia de prática corrente do aborto na Grécia, e das teorias de Hypocrates e de Aristóteles sobre a suposta época de animação do feto, podendo-se até interromper livremente a gravidez. Plena liberdade reinou por muito tempo em Roma, onde, considerando o produto de concepção - pars viscerum matriz, ficava a inteira disposição da mãe que, não raro inutilizava. Tão frequentes foram, porém, os atestados dessa natureza, que, influindo, afinal, no problema da população, e sendo considerados perigosos para a conservação do Estado, deram lugar a uma verdadeira inovação legislativa.

Vieram as leis sobre a propagação das espécies, salientando-se a Julia e Papa Popae, que conferia vantagens aos casados com filhos e libertava da tutela dos agnados as mulheres que tivessem três ou mais filhos, criaram-se, por fim, penas contra os autores do aborto, e tão profundamente se modificaram as doutrinas jurídicas nos últimos tempos que foi garantida a existência humana desde a concepção (infans conceptus, pro nato habetur, quoties de commodis egus agitur) e estabeleceu-se até incertos casos a curadoria ao ventre, instituição que persiste no direito civil moderno.

Também se ocuparam largamente da questão teólogos notáveis, discutindo qual o momento que deveria começar a existência da alma, para que se pudesse determinar quando constituiria pecado a provocação do aborto. Parece que se disparam as dúvidas a respeito, ficando reconhecido o dever de proteção ao ser humano, desde o seu início, o que está de acordo com princípios biológicos que demonstram ser "o seu óvulo fecundado uma vida em evolução".

Todavia, acontece ainda o que notava Montesquieu, com o seu admirável espírito observador: "na espécie humana, a maneira de pensar, o caráter, as paixões, a ideia de conservar a beleza, o embaraço da gravidez, o de uma família excessivamente numerosa perturbam a propagação de mil formas" (Esprit des Lois, livro XXIII, cap. I).

"Presentemente, entre quase todos os povos, salvos os chineses e os japoneses, e nas diferentes classes sociais há um argumento cada vez mais acentuado do aborto criminoso. Dir-se-ia que hoje há antagonismo entre a excitação manifesta das necessidades sexuais e das preocupações de ordem econômica" (Lacassagne - Peine de mort e criminalité, pag. 91).

Nos últimos tempos, na Alemanha, e, com especialidade na França, fez carreira, apoiada por literários e cientistas de mérito, perigosa propaganda em prol do suposto "direito ao aborto", que, em tese, não acho aceitável, considerando, conforme o define Grasset "um crime que suprime o ser vivo e constitui muitas vezes um perigo para a mãe".

Muito se tem debatido o assunto, esgotando-se argumentos biológicos e jurídicos. Em França, desde 1882, foi agitado a questão por Spiral, atualmente, juiz de instrução em Peronne, que publicou um opúsculo intitulado - Essai d'ume étude sur l' avortment.

Corroborando a defesa de Urirol, são dignos de nota, pela habilidade da argumentação a serviço de uma causa ingrata, o trabalho científico de Dr. Klotz - Forest - De l' avortment, est-ce un crime? - E o romance do Dr. Carricarrére - Le droit à Pavortement.

O Dr. Klotz - Forest e a Dr. Magdalena Pelletier (L' education sexuelle de la femme) entre muitos outros argumentos com o que amparam sua doutrina escabrosa, fazem do pretenso direito ao aborto um recurso feminista, como meio de completa emancipação da mulher, pela absurda supressão da maternidade. A ousadia da medida francesa chega ao ponto de, depois de comentar cenas trágicas de suicídio e de aborto criminoso, motivadas pela vergonha da maternidade legitima e pelas dificuldades econômicas, afirmar que ''graças ao aborto estes desfechos diminuem de frequência; deixarão de existir, quando a lei, cessando de fazer do aborto um crime, reconhecer o direito da mulher, só ser mãe quando o quiser. (Op. Cit.,pag. 54.)

O Dr. Klotz - Forest escreve, à pag. 9, do seu livro revolucionário, que "colocando a consciência acima da lei, certo número de feministas afirmam que o aborto não é um crime, nem mesmo um delito, é, portanto, perfeitamente lícito". Ainda mais longe vai, proclamando (pags. 232 - 235) que compete à mulher defender na imprensa o que é antes de tudo uma causa feminista e animando-a com a citação do exemplo de Severino, que "o fez com talento, a propósito de uma questão que apaixonou outra hora a opinião". (Affaire Touroux, de Toulon.) Entretanto, a reprodução do parecer de Paulo Réboux (pag. 235), demonstra que o aparente e mal entendido pela liberdade sexual absoluta da mulher e acima de tudo em benefício dos interesses do homem..."Par lá (por meio do aborto) les unions libres deviendrarent sans inconvénients. Et l'union libre est le meilleur état qui, pour un jeune homme, puisse précéder l'union définitive."

Assombrosa defesa dos direitos da mulher! Contraproducente argumentação, de onde se conclui que o triunfo de uma causa social depende do aniquilamento da espécie humana e por consequência da própria causa! Assim aconteceria ao feminismo, uma vez reconhecido o ilimitado direito ao aborto e feita a recusa geral da mulher à maternidade.

Entendo que a mulher, como todo ser consciente, deve assumir a responsabilidade dos seus atos, praticados livremente, aceitando as consequências naturais do amor, a despeito das dificuldades econômicas que lhe possam acarretar a existência do filho, mesmo no casamento, e afrontando os obstáculos pessoais à maternidade ilegítima. É contra o preconceito que rebaixa a mãe e o filho natural que se deve dirigir a campanha emancipadora.

Aplaudo o zelo dos moralistas e dos legisladores, pelo nascituro, mas, faço exceção aos princípios até aqui exarados convictamente em favor da maternidade e da proteção à vida inter-uterina, quando são as mesmas resultantes do estupro que é sem contestação possível ofensivo à dignidade e à liberdade individual da mulher virgem, ou não, e que, proporcionando-lhe um filho, lhe impõe encargos a que não pode ser obrigada, visto decorrerem de ato dependente exclusivamente de uma violência sofrida.

Diversos códigos, entre os quais está o brasileiro (art. 301, parágrafo único) reconhecendo sem dúvida a situação precária da mulher, reduzem a pena que lhe deveria ser imposta, quando o aborto é praticado para ocultar a desonra. Neste caso também admitem atenuante os códigos da Itália, Portugal, Espanha, S. Marino, Equador, República Argentina e Chile (S. Du Moriez-L'Avortement, pag. 134).

Adotando o sistema de deixar as circunstâncias atenuantes "consideradas por natureza indefiníveis e iluminadas". (Garrand - Précis de Droit Criminel 207) à apreciação do juiz, nenhuma disposição especial, nesse sentido contém o código penal francês, na parte referente ao aborto, o que não tem perturbado as decisões do júri, mais propenso, na hipótese, a absolver, do que a proporcionar ensejo à graduação da pena (Amblard La Seduction pag. 162).

Geralmente admitida a atenuação da pena, em casos, em que a maternidade é consequência de ato voluntário, não será sem dúvida absurdo que consagrem as legislações futuras a justificativa do crime de aborto quando a gestação interrompida for resultante de estupro. Será essa faculdade uma restrição à proteção de vida ao feto. Mas, de maiores garantias certa lei penal a vida do adulto, punindo com penas muito mais rigorosas o homicídio do que o aborto, e nem por isso deixa de estabelecer exceções que justificam o assassinato, chegando o Código Francez (art. 324) a admitir valiosa escusa em favor do marido que mata a esposa e seu cúmplice em flagrante de adultério. E "só é admitida a impunidade em favor do marido que mata a mulher e não da mulher que mata o marido", criando-se assim entre os cônjugues uma diferença de situação que na opinião de Garrand "é inexplicável".

Não se pode, enfim, consentir que o exagero na defesa dos direitos de uma existência em formação apenas, chegue ao ponto de preterir todos os direitos da mulher, impondo-lhe as consequências de uma maternidade ignominiosa, oriunda do delito de que foi ela vítima, não sendo nem possível a punição do autor do atentado como acontece na situação anormal que atravessam os povos em guerra.

Tão injusta seria a impunidade absoluta do aborto, como a sua punição, no caso em debate. Pelo lado individual, as condições excepcionais da mãe, sujeita à cruel depreciação social que lhe acarretaria a divulgação da gravidez e exposta a sofrer o ônus resultante de um ato para o qual moralmente não concorreu, justificam o recurso extremo de sacrificar a existência do ente procriado. Atendendo à feição social do delito, parece-me não existir a gravidade que se lhe pretende atribuir. Principalmente durante a guerra, penso que só em condições excepcionais se poderá provar o estupro, uma das formas menos frequentes do atentado ao pudor, e assim os casos justificáveis de aborto, pela sua raridade, não poderiam constituir prejuízos à sociedade, o que não aconteceria se fosse conferido à mãe amplo direito de dispor do produto da concepção.

Encarando a questão de modo geral, sem a comum prevenção dos latinos para com os germanos e sem cogitar até de que no momento, são estes os acusados, creio que em caso incontestável de estupro, não tem vantagem a sociedade em conservar vidas geradas nas piores condições, portadores de má fatores hereditários, revelados pela manifesta perversidade de quem se faz autor de atos brutais de crotismo, que é com o alcoolismo, no dizer de Lauessan "o hábito passional que representa maior papel como fonte particular da criminalidade". Nem se poderá estranhar esse argumento, quando, modernas legislações como a do Estado de Indiana e outros da União Americana tomaram já providências para evitar a propagação da hereditariedade criminal e mórbida (Maxwell - Le crime et la Société, pags. 266-271).

Muito antes da guerra europeia, já se haviam manifestado favoráveis ao direito ao aborto quando a gravidez fosse consequente ao estupro: o Dr. Torel em La question sexuelle exposéc aux adultes cultivés; o Dr. Radbruck, da Faculdade de Heidelberg, propondo a inclusão dessa nova justificativa no futuro Código Alemão (Dr. Hlotz Torest, op. cit. 229) e o Dr. Antoine Wylm que assim se expressa: La femme me parait avoir le droit de refuser la maternité du viol. La gronesse n'est em quelque sorte que la continuation de l'attentat, ele entraine pour la mére une foule d'obligations auxquelle ele n'a pas consenti de s'exposer; l'enfantement peut lui porter um prejudice materiel et moral qu'il serait injuste de lui faire subir malgré ele. L'embryon qu'elle porte né d'un crime, ocuvre d'um pére socialement mauvais, moralement malsaire, a des chances de ne paz être um produit de bon aloi. L'espéce pas plus que la Société n'a d'interêt certain a le sauvegarder...

Concluindo, entendo que deveria ser permitido provocar o aborto nas mulheres violentadas durante a guerra, o que não alteraria o altruísmo das que quisessem suportar as penosíssimas consequências de uma maternidade humilhante. E as que a tanto levarem a abnegação, que completem o sacrifício, poupando aos filhos, o abandono muitas vezes, pior que morte! Se assim não acontecer, terá de abrir as portas aos novos enjeitados a Assistência Pública, recebendo anonimamente esses infelizes, que sem direito à paternidade, perdem também as vantagens que pela maternidade, talvez futuramente lhes pudesse conferir a lei civil, regulando a sucessão.

Viverão como pupilos do Estado os que hoje passam por frutos da brutalidade do soldado inimigo e prudente foi a deliberação da França adotando esses espúrios a quem oxalá, não persiga sempre o ódio de raça! Enfim, qualquer outra medida seria perigosa e proporcionaria oportunidade a graves abusos em um país que se vai despovoando a custa da infame indústria do aborto criminoso, que o priva anualmente de cerca de 500.000 nascimentos.

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