Carta aos Brasileiros: 40 anos da mensagem democrática de Goffredo Telles Junior
Subscrita por professores, advogados e juristas, a mensagem goffrediana ecoa com vigor nos atuais tempos estranhos.
Da Redação
terça-feira, 8 de agosto de 2017
Atualizado às 10:11
Era noite fria de agosto, mas o clima não importava. No Território Livre das Arcadas, uma multidão se reuniu em torno do Mestre dos Mestres: Goffredo Telles Junior.
Altivo, com voz e olhar firmes, o Professor leu a Carta aos Brasileiros, manifesto político-jurídico com os princípios do Estado de Direito. Ao fim, o brado: "Estado de Direito, já!".
A Carta foi subscrita por professores, advogados e juristas, e a mensagem goffrediana era de ordem social justa, liberdade e justiça.
"Os ideais do Estado de Direito, apesar da conjuntura da hora presente, vivem e atuam, hoje como ontem, no espírito vigilante da nacionalidade", anunciou Goffredo. Vigilante estava, de fato, a população: há menos de dois anos, nos porões do DOI-Codi, Waldimir Herzog foi morto sob tortura.
O Professor dá o testemunho da magnitude do fato: "A morte de Wladimir Herzog causou comoção enorme. Os estudantes da Academia deixaram as salas de aula, aglomeraram-se ruidosamente no Páteo. O Centro Acadêmico XI de Agosto improvisou um comício no Largo, e seus estupendos oradores vituperaram os horrores do regime."
O testemunho foi escrito para um momento especial: o número inaugural da Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo. O então presidente Cláudio Antonio Mesquita Pereira deu ao advogado Antonio Fernandes Ruiz Filho a missão de convidar o Professor. Era o ano de 1997.
Convite feito, o Mestre sugeriu escrever sobre os acontecimentos que o levaram a elaborar a Carta. Ruiz Filho afirmou, com nítida emoção, naquela edição inaugural: "Para mim, restou uma lição, entre tantas que o Professor pode proferir ao longo de sua profícua carreira jurídica: os homens realmente grandes são aqueles que se despojam da sua grandeza, destinando a todos, sem distinção, o melhor do que têm a oferecer."
Testemunho
No texto com a marca goffrediana da sensibilidade, o Mestre relembra a missa de 7º dia de Vlado, e em como mantinha em mente outros jovens idealistas que já haviam perecido sob o regime ditatorial.
"Meu Deus! Até quando, até quando aquilo ia continuar? (...) Para salvar o Brasil, as Forças Armadas submeteram o país a um regime de força. De força, pra quê? Para resgatar o país, libertá-lo dos demolidores das instituições; para aniquilar a subversão e restabelecer a ordem nacional. Que ordem? A ordem fundada na doutrina da segurança nacional, toda voltada para os objetivos nacionais permanentes: a ordem definida pelo supremo Conselho de Segurança Nacional, a ordem imperturbável das Forças Armadas."
Explicou o Professor, como pacientemente ensinava a centenas de alunos há anos, que "para nós, democratas, criados no respeito pela dignidade soberana das pessoas, alimentados com o ideal permanente da liberdade, aquela ordem discricional - ordem do arbítrio - nos feria e infelicitava. Era a ordem que não queríamos."
Tempos modernos?
Infelizmente, passados 40 anos, o relato tem a marca da contemporaneidade, com o Professor destacando os "efeitos sociais desastrosos" do "milagre brasileiro"; a "falta de fundos para o pagamento dos compromissos assumidos"; "a criação de quase duzentas grandes empresas estatais"; "as manobras de um capitalismo selvagem"; e "a consequente concentração progressiva da renda"; "víamos e sofríamos uma inflação galopante".
"Creio que o que mais nos preocupava era a redução assustadora do poder de compra dos salários, acarretando a crescente aflição dos trabalhadores."
A censura, tão rigorosa, era vista por Goffredo como a busca por "escamotear, dos olhos do povo, grande parte da realidade".
Estado de Direito, já!
A convite do jurista Miguel Reale Jr., então coordenador do Curso de Estudos dos Problemas Brasileiros, o Professor Goffredo proferiu preleção sobre "Os Roteiros da Democracia no Brasil". Era dezembro de 1976, e poucos dias depois três pessoas foram fuziladas dentro de casa por agentes do Exército, por serem "subversivos perigosos", conforme o comunicado oficial.
"Eu vinha sentindo em mim, desde meados de 1976, o fervilhar de uma multidão de ideias. Eu me perguntava: não poderia eu dar uma contribuição pessoal - e eficiente - para a restauração da Democracia em meu país?", questionava-se Goffredo.
Pois bem: veio o projeto. A Carta aos Brasileiros, embora não tenha sido a única, foi a contribuição goffrediana que marcou o início do fim. Era chegada a hora de destituir a ditadura.
A primeira versão da Carta, se assim podemos chamar, foi um discurso de improviso feito pelo Professor em abril de 1977, em ato dos estudantes contra o fechamento do Congresso Nacional - e no qual a Constituição foi enterrada. A ebulição dos estudantes e trabalhadores perdurou. Os atos do regime, tornaram-se mais repressivos. Era questão de tempo.
Mas o dia chegou: foi em 8 de agosto de 1977, às 20h. Noite fria de agosto, mas o clima não importava. No Território Livre das Arcadas, uma multidão se reuniu em torno do Mestre dos Mestres: Goffredo Telles Junior. Altivo, com voz e olhar firmes, o Professor leu a Carta aos Brasileiros, manifesto político-jurídico com os princípios do Estado de Direito. Ao fim, o brado: "Estado de Direito, já!".