Gazeta do Povo se envolve em batalha judicial após reportagem sobre salário de juízes do PR
Mais de 30 juízes ajuizaram ação indenizatória contra repórteres e jornal. Os pedidos já somariam mais de R$ 1,12 mi.
Da Redação
sexta-feira, 10 de junho de 2016
Atualizado em 9 de junho de 2016 16:03
Repórteres do jornal Gazeta do Povo, do Paraná, se envolveram recentemente em um complexo imbróglio jurídico. Após a publicação no começo deste ano de uma reportagem sobre a remuneração de membros do Judiciário e do MP estadual, mais de 30 juízes de diversas partes do Estado ajuizaram ações indenizatórias em JECs contra os profissionais e o periódico.
Os magistrados alegam que houve prática de atos ilícitos na veiculação da reportagem sobre valores recebidos de forma supostamente ilegal. Os réus, por sua vez, sustentam a existência de "abuso do direito de ação", exercido como forma de intimidação da imprensa. Os pedidos já somariam mais de R$ 1,12 mi.
"Supersalários"
A reportagem, assinada por Chico Marés, Euclides Lucas Garcia, Rogerio Waldrigues Galindo, Evandro Balmant e Guilherme Storck, foi publicada no dia 15 de fevereiro. Sob o título "TJ e MP pagam supersalários que superam em 20% o teto previsto em lei", o texto informava que, "na média, em 2015 procuradores e promotores ganharam 23% a mais. Juízes e desembargadores ficaram com 28% além do máximo legal".
De acordo com pesquisa realizada pelos jornalistas - que analisaram o período compreendido entre janeiro e dezembro de 2015 - cada magistrado paranaense teria recebido, em média, R$ 527,5 mil (28% acima do teto), e cada membro do MP, R$ 507 mil (23% acima).
A matéria ainda apresenta recurso de infográfico, por meio do qual é possível pesquisar os rendimentos individualizados de todos os membros do Judiciário e do parquet estadual, e uma charge, na qual um homem de toga abraça um saco de dinheiro, com notas caindo sobre sua cabeça.
Os jornalistas alegam que a reportagem teve como objetivo expor e debater o sentido do "teto constitucional", e que foi esclarecido na matéria que as cifras se referiam a indenizações, acréscimos, abonos e adicionais de diversas naturezas, que "multiplicariam muitas vezes o limite de remuneração, justificando a discussão pública do tema".
(I)mobilização
Conforme alegação dos repórteres da Gazeta, há um áudio comprovando que, após publicadas as reportagens, o presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Paraná teria iniciado um movimento de mobilização, conclamando os juízes para ingressarem com ações individuais em diferentes juízos do Estado.
Os magistrados teriam protocolado petições iniciais "idênticas em sua descrição dos fatos, nos fundamentos jurídicos e nos pedidos, diferindo apenas quanto à qualificação das partes", de acordo com a defesa dos jornalistas.
Para o advogado do periódico e dos profissionais, Marcelo Vieira, do escritório Alexandre K. Jobim Advogados Associados - que faz parte da equipe que atua no caso perante o STF -, a propositura de ações simultâneas em mais de uma localidade implica embaraço ao direito de defesa, tendo de se deslocar diversas vezes na semana para comarcas remotas do interior.
Reclamação
No mês passado, a empresa ajuizou reclamação (Rcl 23.899) no STF, na tentativa de barrar a movimentação. A equipe jurídica que atua no caso perante o Tribunal formulou a defesa sobre dois pontos centrais: usurpação da competência do Supremo prevista no art. 102, "n", da CF, e afronta à autoridade das decisões proferidas na ADPF 130 e na ADIn 4.451.
"Ao invés de uma pauta jornalística, passaram a responder por uma pauta de audiências espalhadas pelo Estado do Paraná", destacaram na inicial.
Segundo os advogados, a demanda envolve interesse de toda a magistratura local, estadual, merecendo ser julgada por juízes não envolvidos na controvérsia.
"O mero fato de absolutamente todos os juízes de direito responsáveis pelas varas e juizados especiais cíveis terem aceitado o processamento dos litígios como se não houvesse nenhuma questão de competência em jogo é um sinal suficiente da usurpação da competência constitucional."
Ainda de acordo com a defesa, a Suprema Corte, ao declarar não recepcionada a lei de imprensa (lei 5.250/67), trouxe o balizamento da preservação das garantias constitucionais da liberdade de expressão, "justamente contrária à 'estratégia' conclamada pelo presidente da Amapar, de dispersão de demandas individuais indenizatórias contra a Gazeta do Povo". Acrescentam, ainda:
"A relação entre o exercício abusivo do direito de demandar indenização e o menoscabo à liberdade de imprensa encontra-se expressa ao longo do acórdão que julgou a ADPF 130/DF e é ressaltada, desde logo, na ementa deste julgado: '(...) a excessividade indenizatória é, em si mesma, poderoso fator de inibição da liberdade de imprensa, em violação ao princípio constitucional da proporcionalidade'."
STF
Apesar da argumentação, a relatora do processo, ministra Rosa Weber, negou seguimento à reclamação. Conforme destacou, ainda não foi proferida nenhuma decisão - interlocutória ou definitiva -, nas ações apontadas, e, não existindo qualquer pronunciamento quanto aos temas tratados na ADPF 130 e na ADIn 4.451, "não há falar em afronta às decisões desta Suprema Corte".
Com relação ao segundo ponto destacado pela defesa, a ministra ponderou que o art. 102, "n", da Carta Magna, apresenta duas hipóteses distintas de deslocamento da competência judicante originária para o STF: (i) existência de interesse - direto ou indireto - de todos os membros da magistratura no julgamento da causa; e (ii) impedimento ou suspeição de mais da metade dos membros do tribunal de origem.
No caso da primeira hipótese, Rosa Weber concluiu que não se está diante de controvérsia ajuizada por magistrados para discussão de algum interesse qualificado como privativo - peculiar e exclusivo - da magistratura, decorrente do seu estatuto funcional ou instituída no âmbito da magistratura nacional.
Com relação à segunda, inscrita na parte final do dispositivo - relativa ao impedimento ou suspeição -, a relatora destacou que ela somente se verifica quando é formalmente manifestada na ação.
"De todo insuficiente, portanto, eventual alegação meramente teórica de que mais da metade dos membros do Tribunal Regional podem vir a estar impedidos de julgar a apelação interposta das decisões a serem proferidas na presente reclamação. Ante o exposto, nego seguimento à reclamação, prejudicado, por conseguinte, o exame da liminar pleiteada."
Reincidência
Apesar de inusitado, o movimento não é inédito no Judiciário brasileiro. Em 2008, diversos fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus ajuizaram uma enxurrada de ações contra uma jornalista e a Folha de S.Paulo se dizendo ofendidos pela reportagem "Universal chega aos 30 anos com império empresarial", publicada no fim de 2007. No texto, a repórter relata que durante os anos de existência, a igreja teria construído um conglomerado empresarial em torno do grupo.
Impondo empecilhos à defesa da empresa de comunicação, as ações foram ajuizadas em distintas comarcas do país, obrigando-a a desenvolver uma verdadeira logística de defesa. À época, falou-se em "atentado à liberdade de imprensa". O Judiciário, por fim, baldou as tentativas, impondo, inclusive, condenação a alguns fiéis por litigância de má-fé.
Repercussão geral
A discussão a respeito do local onde a ação deve ser ajuizada, quando há um suposto dano moral em texto jornalístico publicado na internet - se no foro do domicílio do autor ou do réu -, teve repercussão geral reconhecida pelo STF, em outubro de 2009.
O recurso extraordinário (RE 601.220), afetado à análise dos ministros por meio do plenário virtual da Corte, foi interposto pelo advogado Miguel Nagib, de Brasília. O profissional, que mantém o blog Escola Sem Partido, foi acusado de causar danos a uma escola em uma de suas publicações em ação ajuizada em Ribeirão Preto/SP.
Na inicial, Nagib cita como exemplo o caso referente à Igreja Universal e à Folha de S.Paulo e afirma que a possibilidade de o autor escolher entre o foro do seu próprio domicílio e o do local do fato, no caso, não poderia ser aceito, sob pena de violação ao art. 220, § 1º, da CF.
"Não há dúvida de que, confrontado com a possibilidade de ser processado fora do seu domicílio - repita-se: em qualquer comarca de um país de dimensões continentais -, o indivíduo refreará o impulso de exercer em sua plenitude a liberdade de informação jornalística. E quem perde com isto é a coletividade."
O relator da matéria à época, ministro Eros Grau (aposentado), consignou que "a questão posta nos autos ultrapassa, nitidamente, os interesses subjetivos da causa". "Manifesto-me pela existência de repercussão geral da questão."
"Indago: lei que viabilize o ajuizamento de reparação de dano decorrente da veiculação de ideias no local de domicílio do autor implica cerceio à liberdade de expressão no que o responsável pelas notícias fica sujeito a responder a processo nas mais diversas comarcas desse continental Brasil? Ao Supremo incumbirá a resposta", consignou o ministro Marco Aurélio em seu voto, seguindo o relator.
O caso, entretanto, ainda aguarda julgamento no STF.