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José Arthur Giannotti x Marilena Chaui, confira o debate

Da Redação

segunda-feira, 21 de novembro de 2005

Atualizado às 10:42


José Arthur Giannotti x Marilena Chaui, confira o debate

Confira abaixo debate travado entre os filósofos José Arthur Giannotti e Marilena Chaui e veja como, depois de quase 5 anos, houve uma inversão dos fatos.

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O dedo em riste do jornalismo moral
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José Arthur Giannotti**

Mais do que moral, acusar de imoral publicamente uma pessoa pública é ato político. Na medida em que a política, entre muitas coisas, consiste numa luta entre amigos e inimigos, ela pressupõe a manipulação do outro, desde logo suporta, portanto, certa dose de amoralidade. Não há política entre santos, mas já existe entre sábios, pois, embora devam discutir até o convencimento de todos, até chegar ao consenso e pronunciar uma verdade relativa, para isso precisam disputar recursos escassos, de sorte que alguns ficam privilegiados no processo de provar suas teses.

No entanto, é particularmente na democracia, quando os interesses gerais e comuns são discutidos até que se decida pela maioria, tornando legítima a ação executiva, que se percebe com nitidez sua zona cinzenta da amoralidade.

Na impossibilidade do consenso, a decisão se dá pelo voto. Isso implica obedecer a determinadas regras que asseguram a legitimidade do procedimento, tais como eleger representantes, garantir que a minoria possa vir a ser maioria, determinar prazos, ordem na apresentação das propostas, indicação de comissões e assim por diante.

Não há, porém, como impedir a manipulação desse regulamento, pois somente dessa maneira a regulamentação da criação de regras pode funcionar para regular a disputa entre amigos e adversários. Seria inútil se tudo pudesse ser decidido por consenso, mas no dissenso a regra que regula o exercício de outra regra necessariamente possui sua zona de indefinição.

O poder só se torna necessário quando se distribuem recursos escassos. Exerce poder o médico que, não tendo AZT suficiente, precisa eleger aqueles cujas vidas poderão ser prolongadas. Numa situação de abundância, isso seria desnecessário. Exerce poder quem distribui recursos escolhendo quais os primeiros e os últimos a receber verbas já aprovadas, mas que não podem ser liberadas no primeiro dia do ano orçamentário. Como não está administrando uma loja, mas exercendo o poder de contemplar alguns antes de outros (condição para que o benefício seja de fato distribuído), é insensato exercê-lo beneficiando o inimigo.

As leis guardiãs das leis que regem a "polis", para serem praticadas, requerem uma zona de amoralidade sem a qual não poderiam funcionar. Isso já no seu princípio, pois seus executores só podem existir a partir de uma particularidade. O deputado ou senador, prefeito ou governador, enfim o representante político encarregado de tomar decisões gerais, ele é um ser social particular cujas necessidades devem ser satisfeitas.

Por isso, se um indivíduo só vem a ser político mediante uma votação, não existiria política se os políticos não tratassem de vencer eleições, usando recursos disponíveis, inclusive manipulando as indecisões e falhas do regulamento. A efetivação de qualquer jogo competitivo sempre requer um espaço de tolerância para certas faltas.

Essa indeterminação é condição para o exercício de qualquer regra. Lembrando uma imagem usada por Wittgenstein: se o êmbolo fosse rigorosamente ajustado ao oco do pistão, não haveria movimento possível. Isso faz com que, na política, não se possa regulamentar um órgão qualquer do Executivo, do Legislativo e do Judiciário sem que se arme um sistema de regras cujas zonas indefinidas não sejam usadas na luta pelo poder. São conhecidas as manobras de pedido de vistas, a disputa pela ordenação da pauta, as pressões para nomear um relator e assim por diante.

Numa democracia o eleitor está diante do dilema: ou deixa para outro escolher seu representante, que vai se imiscuir no jogo do poder, ou aceita a escolha com os riscos a ela inerentes. Mas ambos estão praticando a democracia como processo de decisão aceito pela maioria.

Sabe-se o preço a ser pago pela tentativa de abolir essa zona de indefinição, ela resulta na ditadura ou no jacobinismo. Ser democrático é, pois, conviver com esse risco. Mas querer a democracia implica admitir que o jogo democrático é tanto deliberativo quanto decisionista; de um lado, reconhecer a necessidade da discussão procurando o consenso, de outro, o exercício do poder antes do saber, correr o risco de que o representado como sendo válido e bom para todos se mostre inválido e prejudicial.

Somente assim a decisão é tomada e o adversário, derrotado, pois, se a política é jogo, a partida não está determinada de antemão. Daí ser preciso diferenciar o juízo moral na esfera pública do juízo moral na intimidade, pois são diferentes suas zonas de indefinição. No primeiro caso, o juízo moral se torna inevitavelmente arma política para acuar o adversário e enaltecer o aliado, de tal modo que a investigação da verdade fica determinada por essa luta visando a vitória de um sobre o outro.

Desde Platão o político é acusado de ser camaleão, de viver da aparência, de precisar mais aparecer do que ser. Quando o aparecer é mero reflexo do ser, não existe política possível. Por isso Platão, adversário da democracia, imaginava a "polis" sendo regida por um filósofo. Mas é totalmente imoral ao mesmo tempo querer a democracia e igualmente querer a transparência de todas as manifestações da ação coletiva, posto que age imoralmente quem, sabendo que a ação resulta em consequências indesejáveis, acusa o outro como responsável por essa situação.

É possível, todavia, contra-argumentar: o político precisa ser crível, não posso votar em quem vai me enganar. Essa contradição se resolve no processo da democracia, em primeiro lugar porque a aparência de credibilidade vai sendo testada pela coerência da ação do político e da reação do representado. A mulher de César há de ser e de aparecer honesta, mas se não for honesta do ponto de vista da aparência não terá credibilidade política; vale dizer, deixará de ser representante política.

Em segundo lugar, porque acusar o inimigo de imoral é arma política, instrumento para anular o ser político do adversário. Mas a moeda política se gasta caso usada indiscriminadamente; também ela deixa de ser crível. Daí a importância da mobilização da opinião pública na determinação da linha de tolerância entre o que o político deve e não deve fazer.

No Brasil, tempos atrás, era possível aceitar um político que roubava mas fazia. Graças à melhoria de nossa democracia isso não é mais possível. Cada vez mais tendemos a aceitar a regra de que o político, devendo se aventurar na zona da amoralidade, pague quando ultrapasse os limites sociais da tolerância.

Compreende-se a responsabilidade da mídia nesse processo. Ela deve enunciar os fatos do ponto de vista de sua diferença e de sua verdade. Mas, como isso se faz por meio de empresas capitalistas, cuja existência depende da obtenção de lucros, deve ainda corresponder a certas expectativas de seus leitores.

Sob esse aspecto, a função crítica do jornalista também é contraditória, pois visa o público necessitando garantir o interesse privado. Mas, enquanto o político se arrisca para fazer da matéria social amorfa um fato verdadeiro, o jornalista se arrisca para fazer da verdade uma crença social. A mídia, se de um lado é guardiã da moralidade pública, de outro, por ser empresa, tende a imaginar que seu ponto de vista privativo se identifique com o ponto de vista geral.

Um partido, ao negar-se como particular, é levado a minar a existência legítima de outros e, por isso, se identifica com o Estado; por sua vez, um órgão da mídia que se pensa como único instrumento da moralidade pública tende a virar partido. Na distância entre o que ela é empresa particular e guardiã da normatividade pública, entre sua particularidade e sua universalidade, infiltra-se uma contradição, que também se resolve no processo.

O leitor e o telespectador devem crer na possível universalidade da informação, isto é, sua capacidade de resistir a contraprovas. Se um jornal não mais aparecer crível deixará de existir como empresa, embora possa estar tão correto como uma revista científica. Em contrapartida, se tender a enunciar juízos morais fora da realidade de risco onde se move o objeto julgado, torna-se igreja, pois atos políticos lhe aparecem marcados pelo pecado original.

É obrigação da mídia informar os fatos no seu nível de realidade. Não cabe contar o enredo de uma peça como se fosse fato real, muito menos um fato político como se fosse obra de santos. Por certo, cabe-lhe o dever de zelar pela moralidade pública; deixa, porém, de ser democrática quando recusa ao fato político sua necessária aura de amoralidade. Quando um jornalista o expõe do ponto de vista de sua total transparência, destrói o caráter político desse fato e transforma sua informação em arma política a serviço de interesses totalitários.

Quem dá uma informação não é responsável pela imoralidade dela, mas se responsabiliza pelo tipo de realidade que empresta ao fato descrito. Perde credibilidade ao confundir os níveis do real. Comporta-se como o paciente que, depois de consultar seu urologista, ou a paciente seu ginecologista, se sentisse violado e saísse denunciando a imoralidade da medicina.

O sentido do gesto não reside no seu uso, por conseguinte, no foco visado por ele mas igualmente na zona cinzenta que permite a concentração da luz? A plenitude da luz não permite a visão.
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Acerca da moralidade pública

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Marilena Chaui***

A confusão entre moral privada e pública produz um obscurecimento acerca da essência da política, ou seja, faz aparecer o moralismo.

De fato, ao confundir os dois espaços, o moralismo suscita dois equívocos igualmente graves: o de tomar o espaço político segundo os critérios da vida familiar (regida pelo princípio da autoridade pessoal e da afeição) e das relações de mercado (regidas pelo princípio da propriedade privada dos meios de produção), quando, na verdade, a política nasce para responder aos problemas, conflitos e contradições dessas duas esferas privadas, não podendo ser regida pelas mesmas normas que as regem.

E, em segundo lugar, ao se supor que as normas e regras da moralidade privada devem estar em vigência na política, será preciso supor que o espaço político encontra-se definido antes da própria política e que esta é simplesmente, no nível público, a retomada de normas preexistentes, de sorte que perdemos o essencial da política, isto é, a diferença entre o privado e o público, fundadora da política, que a faz ser uma ação nova produzida por uma relação nova; novidade que a faz ser sempre indeterminada quanto ao seu curso, mas não indefinida quanto às suas regras.

É isso que a palavra "república" sinaliza e significa. Por isso mesmo o Estado não é nem pode ser uma grande família nem uma grande empresa: se for, não há política possível. Em outras palavras, a moralidade política se define pelas ações e pelo curso das ações numa lógica nova que não é a da autoridade (como na família) nem a da força (como no mercado), mas a do poder.

Pelo mesmo motivo, não se pode falar em "zonas de amoralidade" na política, uma vez que isso significa que estamos supondo uma moralidade externa e heterogênea à política, moralidade puramente íntima, que fica em suspenso para que a ação política se realize com eficácia. Distinguir o público e o privado, afastar o moralismo, admitir a dimensão fundante da ação política e a indeterminação de seu curso não pode significar "vale-tudo", e sim que nos cabe saber como é construída a moralidade propriamente política no curso de ações das quais não temos controle pleno.

Tomemos dois exemplos aparentemente sem ligação, mas que podem nos auxiliar a compreender o que é a moralidade política: o caso da "vaca louca", na Europa, e o caso do "apagão", no Brasil. Ambos têm um primeiro traço comum: a ausência do Estado como responsável pelo bem-estar dos cidadãos, pelo direito à saúde e pelo direito ao mínimo trazido pela tecnologia moderna.

No caso do gado europeu, o abandono das políticas estatais de saúde pública e sua privatização acarretaram a ausência prolongada de fiscalização das condições sanitárias; no caso do apagão, a submissão às imposições do FMI de solução do "déficit público" pelo não-investimento em áreas de serviços à população acarretou um abandono da política energética, cujas consequências só poderemos avaliar quando, em futuro próximo, pudermos medir a queda da produção e o aumento do desemprego, para não mencionarmos o desrespeito a todos os direitos dos cidadãos, contido nas medidas governamentais.

Nos dois casos vemos o que se passa quando a lógica do poder deixa de estar referida aos direitos dos cidadãos e à instância generalizadora da lei para tornar-se um jogo de forças em competição no qual sempre sabemos quem será o perdedor.

Mas esses dois casos indicam também e sobretudo que o poder político não se define pela distribuição de recursos escassos. Se assim fosse, toda instituição de benemerência e de filantropia exerceria poder político. É bem verdade que o modelo neoliberal, ao destruir a institucionalidade estatal e alijar os direitos sociais da esfera política, não poderá pensar o poder senão como distribuição filantrópica de bens escassos (escassos para quem, cara pálida?), mas esse pensamento, exatamente, indica a morte da política por sua perfeita confusão com os princípios da propriedade privada dos meios de produção e com a lógica da força, que define o mercado, assinalando a presença difusa do despotismo (em geral, não esclarecido).

Por onde passa a moralidade política? Desde Aristóteles, o pensamento político aprendeu a distinguir a justiça distributiva e comutativa e a justiça política. A justiça distributiva se refere aos bens partilháveis (é a economia), a justiça comutativa se refere às penas e recompensas legais que reparam danos cometidos contra cidadãos (o tribunal); mas a justiça fundante se refere a um bem que não pode ser partilhado e distribuído, somente participado: o poder político.

O poder se refere ao governo e este se refere à maneira como a totalidade dos cidadãos participa do poder, definindo para a sociedade a justiça distributiva e a comutativa. Por isso mesmo há indeterminação do curso da ação (pois todos dela participam), mas não há amoralidade (pois há regras definidas pelos cidadãos). E há imoralidade política quando um governo opera não só ferindo a justiça distributiva e a comutativa, mas sobretudo quando exerce o poder não em nome dos cidadãos e sim em nome de um grupo poderoso de cidadãos. Não se pode falar em "bens escassos" distribuídos ao banco Marka nem de "bens escassos" distribuídos a parlamentares em momentos cruciais de votação nem de "bens escassos" na parte de dinheiro público que sempre comparece para garantir uma privatização.

Todavia não podemos pensar apenas com a idéia de justiça política entendida como o direito de participação de todos os cidadãos no poder. O pensamento político moderno, exatamente ao propor a distinção entre virtudes privadas e poder político, afirmou dois princípios nucleares da lógica do poder com os quais podemos nos acercar da moralidade propriamente política. Em primeiro lugar, a compreensão de que toda sociedade está dividida originariamente entre o desejo dos grandes de comandar e oprimir e o desejo do povo de não ser comandado nem oprimido, definindo o lugar do governante não acima das classes e sim como aliança necessária com o desejo do povo e como contenção do desejo dos grandes (pois o desejo destes aniquila a instância pública da política).

Em segundo, a compreensão de que a moralidade pública não depende do caráter dos indivíduos e sim da qualidade das instituições como expressões concretas do lugar e do sentido da lei. A lei é o pólo da universalidade numa sociedade dividida em classes (ou cindida em particularidades conflitantes e contraditórias); pólo no qual se definem a cidadania e as formas de seu exercício.

Se observamos esses dois princípios, podemos dizer que, neste momento, reina a mais completa imoralidade política no Brasil, o governo é dos grandes para os grandes (a propalada "governabilidade") e as instituições públicas estão corroídas porque a instância da lei foi substituída pela idéia publicitária de "credibilidade".

Examinemos brevemente o modo de aparecer dessa imoralidade nos últimos tempos. Ela tem aparecido sob a forma do embuste, isto é, como a decisão de impedir que os cidadãos possam deliberar, decidir e formar uma opinião consistente sobre as ações políticas porque estão impedidos de demarcar fato e versão, verdade e mentira.

Se nos recordarmos do clássico estudo de Hannah Arendt sobre a mentira política, haveremos de lembrar que ela aponta os dois instrumentos empregados pelo governante para realizar o embuste. Um deles são os "relações públicas", que operam com os recursos da publicidade e têm como princípio a idéia de que os cidadãos são inteiramente manipuláveis pelas opiniões vendidas no mercado político; são os agentes da propaganda do governo.

O outro instrumento são os "resolvedores de problemas", caracterizados pela autoconfiança extrema e pela certeza de sempre prevalecerem porque sabem se livrar dos fatos, tanto destruindo documentos, memórias e testemunhos, como produzindo uma irrealidade que vem à existência, por meio de discursos, chantagens, coações, distribuição de benesses, ameaças veladas ou diretas e sobretudo pela desqualificação sumária dos opositores; são os assessores do governo. Juntos, relações públicas e resolvedores de problemas criam as condições para que o governo nunca possa ser desmentido, pois toda contraprova é invalidada por princípio, graças ao ocultamento da realidade sob a imagem irreal e graças à desqualificação prévia dos oponentes.

S
e essas observações estiverem corretas, podemos fazer alguns reparos severos no artigo escrito por meu colega José Arthur Giannotti, publicado nesta página (17/5).

Depois de definir o poder como distribuição de bens escassos e de concebê-lo como uma competição cujas regras devem comportar espaço de tolerância para certas faltas (embora o autor não nos diga quais faltas devem ser toleradas nem por que o devem), é dito que a opinião pública deve ser mobilizada na determinação da linha de tolerância entre o que o político deve ou não fazer.

A questão, portanto, é saber quem mobiliza a opinião pública para isso. Os partidos de oposição? Não, diz o autor, pois o fazem como ditadores ou jacobinos, uma vez que não reconhecem que o poder democrático é um misto de deliberação e decisionismo e que empregam o juízo moral como arma para acuar o adversário, submetendo a investigação da verdade à sua própria vitória.

A imprensa? Não, pois embora os jornalistas aspirem pela universalidade e desejem ser guardiães da moralidade pública, trabalham para uma particularidade, a empresa capitalista de que são funcionários. Na medida em que insistem em fazê-lo, transformam a imprensa, no melhor dos casos, em igreja e, no pior, em servidora de interesses totalitários, uma vez que não reconhecem ao fato político "sua necessária aura de amoralidade" e "zonas de indefinição".

Se, portanto, nem os partidos políticos oposicionistas nem a imprensa são os instrumentos políticos de mobilização da opinião pública na definição da linha de tolerância política, quem é o agente dessa mobilização? Só pode ser o próprio governante! Com isso, caímos nas malhas dos relações públicas e dos resolvedores de problemas, isto é, da produção deliberada do embuste. E fazemos o jogo da chamada "tolerância passiva", em que toleramos o governante que nos engana porque é ele quem faz as regras da ausência de regras.

Qual o equívoco de Giannotti? Confundir a indeterminação própria da ação política com uma suposta indefinição de suas regras e deixar nas mãos do governante uma definição nômade, que varia segundo seus interesses. Por outro lado, ao desqualificar os partidos políticos e a imprensa, Giannotti desqualifica politicamente algo mais profundo: a sociedade civil e o conjunto dos cidadãos.

Se é o governante quem diz o que é moral, o que é imoral e o que é amoral na política, se é ele quem nos diz o que é e o que não é tolerável, resta indagar por que Giannotti coloca o totalitarismo como ameaça futura, vinda das oposições e da imprensa.
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Para a virtuosa Marilena*

José Arthur Giannotti**

O artigo "Acerca da moralidade pública", que Marilena Chaui, colega e amiga, publicou na Folha de 24 deste mês ("Tendências/Debates") me deixou muito contente. É tão caudaloso e complicado quanto o meu, indício de como esses assuntos não podem ser tratados irrefletidamente por meio de poucas palavras e pedem do leitor certa dose de esperteza.

Ambos concordamos que entre moral e política existe uma zona de indefinição a ser coberta pela prática, o que por sua vez abre novas zonas indefinidas. Não entendo, assim, os "reparos severos" que me faz. Nós dois partimos do princípio de que esse trabalho de costura deve ser feito pela opinião e instituições públicas. Quem as mobiliza no cumprimento dessa tarefa?

Marilena passa a enunciar vários institutos aos quais, segundo ela, recuso o direito de exercer essa função. E daí conclui ser meu equívoco "confundir a indeterminação própria da ação política com a suposta indefinição de suas regras e deixar nas mãos do governante uma definição nômade, que varia segundo seus interesses".

Essa é conclusão que merece severos reparos, pois me transforma, digamos cruamente, num puxa-saco do poder instituído presente ou futuro. Pergunto: não estando inscrita nas premissas de meu argumento, essa conclusão é moral ou política? É de esperar que minha argumentação seja mais refinada.

Não nego, de maneira nenhuma, o caráter definido da regra, no plano de sua formulação e de suas intenções. É imperativa a forma da lei moral, assim como é impositiva a intenção que a rege. Não posso desconhecer que muitos agem com os melhores propósitos. Todos nós sabemos, porém, depois de Marx e Freud, que ações, além de provocarem consequências involuntárias, ainda podem ter resultados contraditórios. Ora, de que ponto de vista é possível controlar a zona de indefinição da política?

Se as normas morais são imperativas, isso não acontece com aquelas que regulam o jogo da política, cuja regulamentação se tece ao longo do processo. Na medida em que deixamos de acreditar na existência de um ponto absoluto na história -a perspectiva do proletariado ou do Estado, por exemplo-, não convém começar a duvidar da validade da própria pergunta? Não existe o lugar desse controle pois, na democracia, como sabemos Marilena e eu, leitores de Claude Lefort, o poder não reside num lugar privilegiado.

Em resumo, esse controle é feito pelo próprio jogo democrático que, a despeito de seguir regras delineadas, se desenvolve numa prática cuja zona de indefinição, sempre existindo entre a regra e seu seguimento, possui a propriedade característica de se fechar na medida em que se abre um novo espaço de luta. O exercício da política caminha contra o vento, em ziguezague, fechando uma rota para abrir outra. Por isso, diferentemente do que me imputam, não estou preocupado com o fim da hegemonia tucana, mas com a nova hegemonia que se forma, a fim de que avanços sejam conservados e erros corrigidos.

Não acredito mais na prática política tendo no horizonte sua abolição, como pretenderam Marx e seus seguidores, precisamente porque não vejo na história presente ponto capaz de fechar todo o seu curso. Por isso sou obrigado a voltar ao pensamento clássico que reconhecia a política como fato da existência humana que dispensa justificações.

Mas essa relativa autonomia do jogo político tem, no presente, que se confrontar com os resultados perversos da acumulação capitalista, com a cisão do corpo político entre exploradores e explorados diferencialmente desorganizados. Daí meu realismo, que a tantos escandaliza, e meu profundo interesse nas estratégias capazes de obter ganhos diferenciais. De outro modo, continuaria tratando de salvar minha alma ou minha reputação de pensador paulista-antipaulista, profetizando a "Dialética do Esclarecimento" debaixo do equador e ensaiando "O Crepúsculo dos Deuses" no fundo do quintal.

Se a política tal como é vem a ser necessária, não é por isso que as ações políticas estão fora do juízo moral. Apenas reconheço que, ao ser pronunciado publicamente, esse juízo se torna político antes de ser moral. Isto posto, somente peço que não haja confusão de gêneros, que a imprensa, ao noticiar o fato político, não o expurgue de seu caráter indefinido e o mesmo façam outras instituições governamentais e não-governamentais. Em particular, que o intelectual que se expõe na mídia não anule o adversário em nome da moralidade da qual ele pretende conhecer o segredo e, quando possível, contenha sua ira destrutiva ao lhe dizerem que está fazendo política.

Quem está se expondo para a opinião pública, para formá-la e se formar, tem o dever moral de reconhecer essa sua condição. Desse modo, ao dar razões também cria uma zona que escapa da racionalidade constituída, porquanto o exercício da razão, se de um lado traz eventos sob nossos domínios, de outro desenha no horizonte muita coisa a fugir de nosso controle. É nessa pregação pela tolerância que Marilena e eu nos irmanamos.

Não se confunda amoralidade, suspensão do juízo moral em certas circunstâncias, com imoralidade, a permissão de infringir qualquer regra.

Fico surpreso com essa confusão. Em artigo publicado n' "O Estado de S.Paulo" em 26 de maio e assinado por José Genoino lê-se: "não há "zona cinzenta de amoralidade" entre a política e a moral que justifique as caixas-pretas em que se constituíram o Proer, as privatizações..." (seguem-se os casos de sempre). Se uma zona é de amoralidade, ela não pode justificar nada do ponto de vista moral, pela simples razão de que nela os juízos ficam suspensos. Mas daí não se conclui que os casos não devam ser examinados na zona da razão em que outros juízos tenham cabimento.

Porém, como sou admirador da argúcia do deputado, prefiro imaginar que essa jóia argumentativa tenha sido lavrada por um "ghost writer". E, nessa minha suposição, não estou fazendo nenhuma restrição a Genoino, mas apontando um exemplo do que ele nega. Na academia em particular e em muitos casos na vida quotidiana, é imoral assinar o que não se escreve, mas isso é frequente e indispensável na política, pois nem todos os políticos têm talento ou tempo disponível para uma atividade que outros podem exercer, desde que esteja sob seu controle e responsabilidade.

Preocupo-me com os ares de moralismo irracional e desvairado que, em nome da moral, nega a legitimidade da política no seu caráter de jogo, pois já sabemos que essa negação leva ao terror. Temo qualquer programa político que se arme centrado na bandeira da moralidade. Nada mais pretendo do que resgatar uma política republicana, em que cada instituição há de agir dentro dos limites que lhe são próprios, respeitando cuidadosamente os limites das outras.

Exemplificando: que uma revista não construa uma informação na base do grampo de um telefone celular (procedimento tecnicamente impossível); que um promotor não inicie um processo a partir da suspeita que ele próprio transformou em notícia; que o Legislativo investigue a corrupção disto ou daquilo, mas nunca a corrupção em geral, que foi de tal forma generalizada que deveria começar investigando alguns corruptos que a requereram. É preciso dar mais exemplos da confusão reinante?
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*Textos publicados em maio de 2001, no jornal Folha de S. Paulo

**Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

***Professora de filosofia política e história da filosofia moderna da USP

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