Terras em litígio não podem ser reintegradas antes que haja demarcação de território
O ministro Ari Pargendler, presidente do STJ, sustou os efeitos de decisões judiciais em oito ações de reintegração de posse de áreas no sul da Bahia enquanto processo demarcatório não é concluído.
Da Redação
quinta-feira, 5 de janeiro de 2012
Atualizado às 08:39
Disputa
Terras em litígio não podem ser reintegradas antes que haja demarcação de território
A pedido da Funai - Fundação Nacional do Índio, o ministro Ari Pargendler, presidente do STJ, sustou os efeitos de decisões judiciais em oito ações de reintegração de posse de áreas no sul da Bahia. O juiz Federal havia suspendido um processo administrativo de 2008 destinado à demarcação da terra da tribo Tupinambás, enquanto perdurasse a permanência dos índios na área em litígio.
Pargendler considerou que as decisões causam grave lesão à ordem pública, porque interferem em atividade própria da administração. O ministro destacou que não se desconsidera a autoridade do juiz, mas afirmou que a decisão de desocupação das áreas disputadas por índios nos municípios de Ilhéus, Buerarema e Una deve ser cumprida "com os meios que o Estado lhe põe à disposição".
Histórico
No curso de ações possessórias ajuizadas por proprietários e possuidores de terras no sul da Bahia contra a tribo Tupinambás, o juiz Federal concedeu liminar determinando que os índios desocupassem a área litigiosa ou se abstivessem de causar perturbações. O mandado de reintegração foi cumprido em março de 2010.
No entanto, os indígenas teriam voltado a invadir uma fazenda, o que, para o juiz, demonstrou descaso com a decisão. Foi quando houve a determinação de suspender o processo administrativo de demarcação da terra indígena, considerando "a resistência ao cumprimento das decisões" por parte da tribo.
Houve pedido de suspensão da decisão ao TRF da 1ª região, mas foi negado. No STJ, a Funai defendeu que a suspensão do processo demarcatório extrapolou os limites do pedido da ação de reintegração de posse, sendo "extra petita". Por isso, a decisão seria "teratológica, desarrazoada e extremamente gravosa".
A autarquia alegou, também, que a decisão paralisaria a atividade administrativa, representando risco de lesão à ordem pública. "A administração pública, portanto, fica impossibilitada de atuar, o que compromete inexoravelmente a ordem pública", afirmou no pedido.
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Processo relacionado: SLS 1493
Veja a íntegra da decisão.
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SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA Nº 1.493 - BA (2011/0307247-9)
REQUERENTE: FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI
PROCURADOR: MÁRCIA SOUSA DE SÃO PAULO E OUTRO(S)
REQUERIDO: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO
INTERES.: E.F.N.
INTERES.: A.S.S. E OUTROS
INTERES.: M.D.C.
INTERES.: E.N.L.
INTERES.: I.C.A.M.F. E OUTROS
INTERES.: E.P.F. - ESPÓLIO
INTERES.: J.C.O.
DECISÃO
1. Os autos dão conta de que em ações possessórias, ajuizadas por proprietários e possuidores de terras no sul da Bahia contra índios da Tribo Tupinambás, o MM. Juiz Federal da Vara Única da Justiça Federal em Ilhéus, BA, Dr. Pedro Alberto Calmon deferiu as respectivas medidas liminares - e, à vista "da recorrente recalcitrância da Comunidade Indígena Tupinambá em desocupar as áreas invadidas, mesmo com a presente força policial e dos oficiais de justiça" (fl. 180) - determinou "a suspensão do andamento do Processo Administrativo nº 08620.001523/2008, referente à demarcação e delimitação da terra indígena tupinambá de Olivença nos Municípios de Ilhéus, Buerarema e Una, enquanto perdurar a permanência da Comunidade Indígena na área em litígio" (fl. 180).
Seguiram-se agravos de instrumento, processados sem efeito suspensivo, e pedido de suspensão, indeferido pelo Presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Juiz Olindo Menezes, à base da seguinte fundamentação:
"A discussão acerca da disputa de terras localizadas ao sul do Estado da Bahia entre índios e não-índios não é nova nesta Corte. Também é de conhecimento público e notório a resistência ao cumprimento das decisões judiciais proferidas em tais assuntos, mormente por parte da comunidade indígena. Não raro, uma área é desocupada e, logo depois, novamente ocupada.
As decisões em causa, ao determinar a suspensão do citado processo administrativo, assim se manifestaram (cf. trecho da decisão proferida nos autos do processo 2805-97.2010.4.01.3301):
'Tratando-se ação executiva lato sensu, destinada ao cumprimento de obrigação específica, o juiz pode e deve utilizar-se dos poderes que lhe conferem o art. 461, § 5º, do CPC para dar efetividade à ordem judicial.
Assim, para obtenção do resultado prático da sentença, o juiz poderá adotar todas as medidas necessárias que se mostrem eficazes ao cumprimento da obrigação, inclusive com requisição de força policial.
Tal possibilidade encontra-se prevista expressamente no art. 461, §§ 1º a 6º, aplicável à ação possessória (entrega de coisa) por expressa previsão no 461-A, §3º do CPC.
Sendo assim, uma vez que em diversas demandas idênticas a esta as multas aplicadas ao agente invasor e FUNAI se tornaram inócuas, bem como foram infrutíferos os meios pacíficos para dirimir o conflito, não resta alternativa, senão utilizar-se dos instrumentos processuais postos à disposição do juiz para tornar efetivo o provimento judicial.
(...)
A dificuldade em se fazerem cumprir as decisões judiciais também se mostra evidente no relatório da decisão proferida nos autos do processo 2010.33.01.000173-4:
(...)
O Autor obteve inicialmente a tutela liminar interdital, confirmada por sentença, e posteriormente convertida em mandado reintegratório, tendo em vista que a comunidade indígena, não só desrespeitou a ordem de interdito possessório, como invadiu novamente a área após cumprido o mandado de reintegração.
Com efeito, o mandado de reintegração foi cumprido no dia 30/03/2010, com auxílio da força policial, tendo sido relatado na certidão do Oficial de Justiça (fls. 182/183) o comportamento ameaçador e agressivo com que foram recebidos no momento em que davam cumprimento ao mandado reintegratório.
Tão-logo os oficiais justiça deixaram a área, os indígenas voltaram a invadir a Fazenda Palmeira, demonstrando mais uma vez o descaso com a determinação judicial.
Diante da dificuldade no efetivo cumprimento da sentença, foi determinado à FUNAI para que, juntamente com o MPF e os representantes da comunidade indígena, promovessem a desocupação pacífica e definitiva da propriedade, conforme despacho de fls 189, mas tal resolução não teve qualquer resultado prático até presente data'.
Vê-se, portanto, que a suspensão do Processo Administrativo 08620.001523/2008 foi utilizada pelo magistrado, nas decisões impugnadas, como forma de forçar a Comunidade Indígena Tupinambás de Olivença ao cumprimento das reintegrações de posse.
Pode-se afirmar que a medida não se relaciona por nenhuma conexão com os pedidos das possessórias, pelo que seria extra petita e, portanto, eivada de nulidade no ponto, certo que o processo administrativo não se integra no objeto das possessórias. Mas, tendo ela por objeto a identificação e delimitação de áreas da chamada Terra Indígena Tupinambá, em cujo polígono estão as terras disputadas pelos não índios, não se revela desassisada a decisão do magistrado, já cansado de ver as suas decisões descumpridas pela comunidade indígena. A decisão invoca, como visto, o art. 461, § 5º do Código de Processo Civil, que contém um rol exemplificativo de medidas que podem ser tomadas pelo juiz, mesmo de natureza diferente, para tornar efetiva a tutela específica concedida.
Note-se que a presente medida de contracautela ataca pura e simplesmente a parte das decisões que tratou da suspensão do citado processo administrativo de remarcação da reserva indígena. Nada questiona acerca das reintegrações de posse dos imóveis, supostamente invadidos por grupos de indígenas pertencentes à Comunidade Tupinambás de Olivença. Também não há, nos autos, notícia de reforma das referidas determinações.
O fato de os comandos judiciais de reintegração terem sido expedidos, na sua maioria, há praticamente seis meses e, até o presente momento, não terem sido cumpridos - ao menos é o que se depreende dos autos, pois a suspensão do processo administrativo de remarcação foi determinada apenas enquanto perdurasse a permanência da Comunidade Indígena na área em litígio -, deixa clara a relutância no cumprimento das decisões judiciais. É exatamente isso que pode causar grave lesão à ordem e à segurança públicas".
2. Daí o presente pedido de suspensão, articulado pela Fundação Nacional do Índio - Funai, destacando-se nas respectivas razões os seguintes trechos:
"... a ordem pública está sendo claramente vilipendiada pela decisão interlocutória do juízo a quo, a qual determinou, em sede de ação possessória, a paralisação de processo administrativo de regularização fundiária, que não guarda qualquer relação com o pedido inicial.
A determinação de suspensão do processo administrativo, demarcatório reveste-se de caráter teratológico, extrapolando-se os limites da lide, de maneira desarrazoada e extremamente gravosa. Vejamos.
Conforme asseverado em linhas anteriores, os demandantes ingressaram com ação possessória, com a finalidade única de obter mandato reintegratório/proibitório para se resguardar de suposta invasão dos índios da Tribo Tupinambá ao imóvel rural do qual alegam ser possuidores.
Inicialmente, cumpre rememorar que nas ações possessórias se discutem apenas aspectos relativos à proteção do exercício dos direitos advindos da posse, não cabendo discussão acerca de quaisquer direitos referentes ao domínio. A ação de reintegração de posse tem por objetivo evitar a turbação ou esbulho iminente da posse, sendo claro que extrapola os limites do pedido da ação a suspensão do processo demarcatório.
Conforme cediço, o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73) veda expressamente a utilização de interditos possessórios contra a demarcação das terras indígenas, devendo os interessados recorrer à ação petitória ou demarcatória. É o que se depreende do seu art. 19:
'Art. 19 - As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em Decreto do Poder Executivo.
(...)
§ 2º - Contra a demarcação processada nos termos deste artigo não caberá a concessão do interdito possessório, facultado aos interessados contra ela recorrer à ação petitória ou à demarcatória'.
No caso em apreço, a liminar proferida nos autos determinou que os índios da Tribo dos Tupinambás desocupassem a área litigiosa individualizada na petição inicial ou se abstivessem de turbá-la, pedido esse formulado na peça exordial.
Desta forma, a decisão que ora se ataca, proferida em sede liminar, revela-se extra petita, extrapolando os limites da lide, a teor do que dispõe o art. 128 do Código de Processo Civil:
'Art. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte'.
Na hipótese, consoante já frisado, ao ajuizar a ação, o pedido do autor restringiu-se à obtenção da proteção possessória, sob pena de multa, não tendo sido posto fundamento diverso e nem pedido alternativo.
Ora, ao determinar a suspensão do processo demarcatório, questão que não havia sido sequer suscitado nos autos da ação de conhecimento, o magistrado a quo extrapolou os limites da lide, em frontal violação ao princípio da congruência.
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Percebe-se, portanto, que a decisão proferida pelo douto Magistrado ultrapassou os limites cognitivos estabelecidos, revelando-se extra petita, violando frontalmente o ordenamento jurídico, resultando em paralisação de atividade administrativa, razão pela qual deve ser suspensa.
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Ademais, a medida afasta-se da proporcionalidade em sentido estrito, tendo em vista que nela não se identifica qualquer vantagem, sendo o meio utilizado (suspensão do processo demarcatório) desproporcional em relação ao fim colimado.
Resta inequívoca a desproporcionalidade da restrição, que impõe sérios prejuízos a toda a comunidade indígena interessada na conclusão do processo demarcatório, especialmente aos índios que se fixaram nos Municípios de Ilhéus, Buerarema e Una, sob pretexto de coibir atos supostamente ilegítimos de um grupo reduzido de índios.
Além disto, paralisa a atividade administrativa, solução da questão fundiária da região, implementando um verdadeiro círculo vicioso: os índios retomam as áreas que entendem serem de ocupação tradicional, sob a alegação de que o Estado não as demarca, e o Estado não as demarca porque está impedido por ordem judicial concedida devido à suposta invasão da área pelos indígenas.
Na hipótese sub examine, deve-se privilegiar o direito de toda a comunidade indígena de ter reconhecido seu direito sobre as terras tradicionalmente ocupadas, o da União Federal e da Funai em ver concluído o processo de regularização fundiária, e o da própria sociedade, que anseia pela solução definitiva e a pacificação do conflito.
Assim, sobreleva nota que o risco de lesão à ordem pública decorrente da eficácia da liminar está ínsito à ideia de manutenção e continuidade da regular atividade da Administração Pública. A Administração Pública, portanto, resta impossibilitada de atuar, o que compromete inexoravelmente a ordem pública.
Por outro lado, insta frisar que a obrigação de fazer não é dirigida à coletividade indígena, nem à Funai, nem à União, mas a um determinado grupo de índios que atualmente ocupam a área litigiosa.
Desta forma, questionamos: como se justifica a paralisação da atividade da Funai e da União para forçar um determinado grupo de indivíduos a adimplir a ordem judicial?
A ordem judicial acabou por atingir não somente o grupo que se pretende ver retirado da área conflituosa, mas atingiu diretamente a Funai, a União e as demais comunidades indígenas Tupinambá que anseiam pela regularização fundiária da área.
Dessa forma, deve ser concedida a suspensão pleiteada, garantindo-se a ordem pública consubstanciada na regular atividade administrativa, qual seja, possibilitar a conclusão do processo administrativo de identificação e delimitação da Funai.
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No caso dos autos, o cumprimento da decisão interlocutória representa um grave risco de dano para toda a coletividade, ante a postergação, por prazo indefinido, da regularização fundiária da área, contribuindo para acirrar os ânimos da região, notadamente entre índios e não-índios, com risco de vida para as partes envolvidas e para os agentes públicos que tentam pacificar a área" (fl. 01/19).
3. A suspensão de medida liminar ou de sentença exige um juízo político a respeito dos valores jurídicos tutelados pela Lei nº 8.437, de 1992, no seu art. 4º: ordem, saúde, segurança e economia pública.
No caso dos autos, as decisões cujos efeitos se quer suspender causam grave lesão à ordem pública na medida em que, interferindo em atividade própria da Administração, determinam a suspensão de processo administrativo destinado à demarcação de terra indígena.
Não se desconsidera, com isso, a autoridade do MM. Juiz Federal da Vara Única de Ilhéus, BA; apenas se reconhece que sua decisão deve ser cumprida com os meios que o Estado lhe põe à disposição.
Ante o exposto, defiro o pedido para sustar os efeitos das decisões proferidas nos autos das Ações de Reintegração de Posse nº 2512-30.2010.4.01.3301, 2632-73.2010.4.01.3301, 2805-97.2010.4.01.3301, 2008.33.01.000694-9, 2010.33.01.000173-4, 853-49.2011.4.01.3301, 2627-51.2010.4.01.3301, 2662-11.2010.4.01.3301, todas em trâmite na Vara Única da Justiça Federal em Ilhéus, BA, no que dizem respeito à suspensão do Processo Administrativo nº 08620.001523/2008.
Comunique-se, com urgência.
Intimem-se.
Brasília, 02 de janeiro de 2012.
MINISTRO ARI PARGENDLER
Presidente