Questão Capistrano
Em janeiro de 1876, a cidade do Rio de Janeiro foi assolada pela notícia de um crime envolvendo dois amigos. A história, que tomou ares de novela ao dividir opiniões, suscitar debates e causar comoção, ficou conhecida como Questão Capistrano, devido ao sobrenome de um dos jovens envolvidos na tragédia.
Da Redação
quinta-feira, 2 de junho de 2011
Atualizado em 31 de maio de 2011 13:04
Questão Capistrano
Notório crime passional ocupou as manchetes dos jornais cariocas e foi inspiração para o enredo do romance "Casa de Pensão"
Em janeiro de 1876, a cidade do Rio de Janeiro foi assolada pela notícia de um crime envolvendo dois amigos. A história, que tomou ares de novela ao dividir opiniões, suscitar debates e causar comoção, ficou conhecida como Questão Capistrano, devido ao sobrenome de um dos jovens envolvidos na tragédia.
Pode-se considerar que o caso de polícia, protagonizado pelos inseparáveis amigos João Capistrano da Cunha e Antônio Alexandre Pereira, foi popularizado porque continha todos os ingredientes de uma boa trama: romance, amizade, honra, vingança e assassinato. Assim, a opinião pública envolveu-se nos acontecimentos, dividiu-se em juízos, mas, sobretudo, polemizou.
O tema mereceu destaque na biografia de Aluísio Azevedo escrita por Raimundo de Menezes que, no capítulo "O crime do estudante Capistrano", relata as minúcias do acontecido. Eis como o enredo que inspirou o romance "Casa de Pensão", de Aluísio Azevedo, principia...
A viúva baiana Júlia Clara Pereira, com dificuldades para sustentar as despesas da família somente com a quantia advinda das aulas de piano, delibera alugar outra casa, maior e mais confortável, que lhe possibilitaria alugar alguns quartos e, com isso, prosperar sua renda mensal. Assim, muda-se com os filhos Antônio Alexandre Pereira e Júlia Pereira para a rua do Alcântara, sob o número 71, local em que estabelece uma casa de pensão.
Entre os primeiros pensionistas encontra-se o paranaense João Capistrano da Cunha, colega de Antônio Alexandre na Escola Politécnica, considerado confiável e, portanto, acolhido carinhosamente no seio da família Pereira.
Com o convívio cotidiano, Capistrano e Júlia enlaçam um namoro, no qual a concupiscência leva o desventurado jovem a adentrar o quarto da moça, em uma madrugada de janeiro de 1876, e no ímpeto violentá-la.
Após a filha relatar o acontecido na noite anterior, Dona Júlia exige explicações do estudante que, com pretextos, intenta adiar o matrimônio, compromisso que repararia o dano causado. Feita a promessa, João Capistrano atravessa semanas e meses sem movimentar-se no sentido do cumprimento de sua palavra até que desaparece de vez, sem deixar notícias. Com isso, a família apresenta queixa-crime na delegacia mais próxima, acompanhados do causídico dr. Jansen de Castro Júnior, para pleitear uma indenização de 50 contos pelo prejuízo à honra da menina Júlia.
O julgamento tem início e a imprensa não tarda em estampar seus desdobramentos nas colunas diárias sobre o caso, inflamando a opinião pública a se manifestar ora a favor do casamento reparador dos danos causados ora a favor da imputação de uma severa pena ao jovem sedutor.
No Tribunal, João Capistrano da Cunha tem como defensores os advogados Busch Varela e Duque Estrada Teixeira, além do conselheiro Saldanha Marinho. Figura como promotor público interino o dr. Ferreira de Oliveira, que produz vigorosa acusação. Completando o cenário, tem-se uma agigantada massa popular desejosa de acompanhar os detalhes do julgamento.
Após a contestação do dr. Bush Varela, há a réplica do promotor, seguida pelos dizeres de Duque Estrada Teixeira e Saldanha Marinho. O resultado dos enérgicos debates é a absolvição do jovem Capistrano que, para festejar o veredicto favorável, reúne os amigos no Hotel Paris, em festança exuberante comentada por toda sociedade fluminense.
Para Antônio Alexandre, a irresignável sentença demandaria que ele próprio tomasse uma atitude para restaurar a honra de sua família e, principalmente, de sua irmã, cujo incessante choro denota a vergonha e a profunda prostração. Deste modo, articula por três dias uma possível solução que impusesse ao ex-amigo uma lição.
Assim, o irmão inconformado sai à procura do estudante, encontrando-o à rua da Quitanda, quando caminhava para casa de um negociante. Empunhando uma arma de 25 cápsulas, atira em João Capistrano pelas costas, ceifando-lhe a vida em plena luz do dia. E, após tentar sem sucesso a fuga, é preso em flagrante e entregue à Justiça.
Os alunos da Politécnica, comovidos pelo crime e enlutados, homenageiam o falecido, tornando o enterro praticamente uma glorificação pública. Até o próprio Visconde do Rio Branco, diretor da Escola, suspende as aulas por dois dias.
Pelo assassinato, Antônio Alexandre é levado a julgamento a 20 de janeiro de 1877 e tem a defesa elaborada pelo já conhecido dr. Jansen de Castro Jr. Neste momento, o público que alimentava antipatias pela família Pereira, compadece-se pelo irmão que agiu em defesa da honra. Com isso, o mesmo júri que remiu Capistrano também absolveu seu assassino... por unanimidade de votos! E, por paradoxal que pareça, aqueles que na véspera homenageavam o colega morto foram quem também ovacionaram o amigo que ganhava a liberdade.
Na pena de Machado
A Questão Capistrano também foi relatada por Machado de Assis.
O escritor, sob o pseudônimo de Manassés, em "Histórias de Quinze Dias", destina uma crônica para discorrer sobre o episódio que "moveu a cidade inteira".
Na pena de Machado, embebida em lirismo, assim encontramos a narrativa dos estudantes João Capistrano da Cunha e Antônio Alexandre Pereira:
"E, tu, musa das lágrimas, que me queres tu? Passa, vai além, não te detenhas nestas páginas joviais. Eu não saberei dizer tudo o que inspira a lutuosa tragédia Capistrano, que moveu a cidade inteira. Volta depressa essa página escura e triste; não a sei ler; não a poderei ler nesta ocasião.Chorá-los sim; lastimar esses dois mancebos, que um fatal destino condenou a não saborear os frutos da juventude, isso é o que eu posso fazer, filha dos túmulos. Que mais? Julgá-los? Julgue-os quem já houver dominado a primeira comoção. Eu olho só, olho e lastimo, e pergunto a mim mesmo, no fundo do meu coração: tirania do destino, também os moços serão teus escravos?"
Jornais da época
Na Gazeta de Notícias, de 20 de novembro de 1876, lia-se:
"A população de nossa cidade foi ontem sobressaltada por um triste acontecimento, terrível desenlace de um drama, que há pouco, todos presenciamos e que além de duas famílias, veio encher de luto a mocidade acadêmica, roubando-lhe um de seus membros.
(...)
Às dez horas da manhã, na rua da Quitanda, o estudante da escola Politécnica João Capistrano da Cunha, que há três dias o júri absolveu da acusação de ter violentado D. Júlia, foi assassinado com dois tiros de revólver por Alexandre Pereira, irmão de D. Júlia."
Já o conservador Jornal do Commercio, sob o título ASSASSINATO CAPISTRANO, assim mesmo, em caixa alta, estampava em suas páginas do dia 21 de novembro:
"Ontem, logo depois do meio-dia, algumas ruas das mais centrais, e com especialidade a da Quitanda..."
E segue o relato, em linguagem esmerada, que lembra a da ficção, para finalmente fechar o texto informando que os advogados que cuidaram da defesa e absolvição de Capistrano levaram-no ao cemitério:
"Carregaram a princípio o caixão os Srs. conselheiro Saldanha Marinho, Drs. Duque Estrada Teixeira, Busch Varela, Pinto Júnior e os Srs. Matos Cruz e Nunes de Sá. Era na verdade uma cena bem comovente aquele féretro, rodeado de mancebos que, trajados de preto e com a tristeza estampada no rosto iam levar à última morada o companheiro de todos os dias, tanto nas árduas lidas do estudo, como nos descuidosos prazeres da mocidade."
Da realidade à ficção
Observa-se, portanto, que o crime foi narrado por vários gêneros diferentes, mostrando-se arqueável e apto a transitar na convergente fronteira da realidade jornalística e da ficção literária. Assim, a Questão Capistrano resgata a dicotomia emblemática da factualidade e da ficção, exemplificada com maestria na trama naturalista de Aluísio Azevedo.
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