Entrevista com Professor Goffredo
Para professor emérito da USP, que faz 90 anos hoje, abuso de MPs é maior exemplo do desrespeito à ordem constitucional
Da Redação
segunda-feira, 16 de maio de 2005
Atualizado às 08:16
Goffredo da Silva Telles Junior
A edição de hoje (16/5/05) do jornal Folha de S. Paulo traz entrevista com o professor Goffredo da Silva Telles Junior, que comemora neste dia seus 90 anos. Confira a entrevista abaixo.
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Para professor emérito da USP, que faz 90 anos hoje, abuso de MPs é maior exemplo do desrespeito à ordem constitucional
País não vive democracia plena, diz jurista
UIRÁ MACHADO
Quando participou como coadjuvante da Revolução Constitucionalista de 1932, Goffredo da Silva Telles Junior não tinha como imaginar que iria protagonizar, 45 anos depois, a leitura da Carta aos Brasileiros, manifesto de crítica à ditadura militar (1964-1985) e em defesa dos princípios da democracia.
Aquela era a primeira das muitas batalhas em nome das liberdades democráticas que haveria de travar contra as formas autoritárias de governo ao longo de sua vida. Tinha então apenas 16 anos. Goffredo, porém, não hesita em declarar que sabia perfeitamente por que estava combatendo: "Lutava pela Constituição".
Hoje, no dia em que completa 90 anos, o professor emérito da Universidade de São Paulo é considerado um dos juristas mais importantes do país.
Sem esconder certa decepção, avalia que vivemos um momento muito sério de "incerteza institucional", afirma que a nossa democracia não é verdadeira e diz que os responsáveis pela "condução dos negócios políticos no país" parecem não ler a Constituição Federal.
Para Goffredo, o abuso das medidas provisórias que "entopem o Legislativo" é o maior exemplo do desrespeito à ordem constitucional e a marca mais clara da intromissão de um Poder no outro. A conseqüência, segundo o jurista, é a descrença popular nas leis e no sistema representativo.
Com a mesma ênfase com que declara ter sido advogado a vida inteira por vocação e por amor, lamenta a falta de coerência ideológica dos políticos e vê na infidelidade partidária o início da destruição do sistema democrático.
"Eu não vou citar exemplos, mas tenho certeza de que, no mesmo momento em que eu digo essas coisas, muita gente sabe perfeitamente quais são os partidos que mudaram de idéia, que traíram os seus programas."
A seguir, leia a entrevista concedida à Folha, por telefone, na última quarta-feira.
Folha - Como o senhor avalia a democracia brasileira pós-ditadura militar?
Goffredo da Silva Telles Junior - Esse é um assunto que merece uma atenção muito especial. De um modo geral, podemos dizer que o país está em relativa ordem, que estamos em paz. Porém o pensador, a pessoa que observa os fatos com muito cuidado não pode deixar de sentir que estamos em uma situação de incerteza institucional no nosso país. Digo isso porque eu vejo que temos uma Constituição que parece não ser nem sequer lida por aqueles que têm a responsabilidade da condução dos negócios políticos no nosso país. Isso me impressiona extraordinariamente. É espantoso que não se leia a Constituição, que é o fundamento da disciplina da convivência humana. Digo isso porque, veja só, os Poderes se intrometem uns nos outros indevidamente, como se a Constituição não existisse, como se fosse um farrapo de papel esquecido, posto de lado sem a menor importância.
Folha - Um exemplo...
Goffredo - Vou dar um exemplo simples, de fácil compreensão. O Poder Executivo legisla no lugar do Legislativo. E como faz isso? Por intermédio de uma medida que tomou o nome de medida provisória. Dizem que essas medidas provisórias acodem a necessidade do país. Que o governo não pode esperar que as leis sejam aprovadas e sancionadas, que precisa de soluções rápidas... Acontece que as medidas provisórias entopem o andamento dos trabalhos do Legislativo. As medidas provisórias constituem um exemplo curioso. A mesma Constituição que as criou estabeleceu condições bem nítidas para seu uso, que estão enumeradas com absoluta clareza: necessidade e urgência. E as medidas provisórias, que entopem o Parlamento, não atendem a essas condições essenciais.
Folha - A conseqüência dessa anomalia é "apenas" de ordem legislativa?
Goffredo - Aos poucos, vai acontecendo em nosso país a descrença no Poder Legislativo, a descrença nas leis. As leis não resolvem, o Legislativo não resolve... Eu acho séria essa situação. Muito séria. O povo aos poucos vai se sentido mal representado por seu órgão de representação política. Onde fica a representação política? O que é um partido político hoje em dia? As leis aos poucos vão caindo em descrença, os legisladores vão deixando aos poucos de ser autênticos representantes do povo. Ora, a democracia é um regime de representação popular. Onde é que estão os nossos representantes? O que eles estão fazendo?
Folha - Mas os partidos...
Goffredo - Veja, o que é um partido político? Um partido político é um conjunto de seres humanos que se reúnem para ver cumprido um programa, programa este que está registrado no tribunal eleitoral. Tem-se a impressão hoje de que os partidos nem sequer conhecem o seu programa. Onde estão os programas? Eles são completamente ignorados. Mas o partido não se formou para defender as idéias que estão no seu programa? O partido não é isso? Para que o partido surgiu? Surgiu para lutar por determinadas idéias -é para isso que o partido existe.
Folha - Isso acontece na prática?
Goffredo - Na prática acontece que um candidato é eleito. Sua gloriosa missão é ser representante do povo. O que estamos vendo, e acontece freqüentemente -muito freqüentemente-, é que um representante, eleito para defender idéias e programas, muda de partido. Muda de partido! Ora, se mudou de partido, mudou de idéias. E o que acontece com o eleitor? O eleitor fica sem o representante que elegeu para a defesa daquele programa. Eu não vou citar exemplos, mas tenho certeza de que, no mesmo momento em que eu digo essas coisas, muita gente sabe perfeitamente quais são os partidos que mudaram de idéia, que traíram os seus programas.
Folha - O sr. mencionou uma incerteza institucional. O sr. receia a possibilidade de voltarmos a um estado de força?
Goffredo - Nós já sabemos claramente que, não existindo fidelidade partidária, a democracia não consegue se manter. O povo aos poucos se cansa disso, começa a sentir que os partidos não representam suas idéias, que o eleitor vai ficando sem representante. Onde estão os representantes? Representantes do quê? Representantes daqueles que coexistem em razão do partido? Ou é outra coisa qualquer? Estamos sentindo claramente que há uma desfeita total das leis elaboradas por representantes do povo. Eu me lembro da exclamação de Getúlio Vargas quando foram levar a ele um texto de lei, para mostrar que ele não estava cumprindo a lei. Getúlio respondeu irritado: "A lei? Ora a lei!". Isso na sua ditadura. Felizmente, Getúlio era um homem sensível e levava as coisas com uma certa sabedoria. Mas isso não basta. Não basta. Nós não queremos ditaduras. Nós somos inimigos da ditadura. Governo de um homem, não. Isso nos horroriza. Aqueles que viveram ditaduras em nosso país sabem perfeitamente que a ditadura é o pior dos regimes. E digo isso por conhecimento de causa.
Folha - O senhor viveu duas ditaduras?
Goffredo - Não, até mais. Depois da revolução de 30, foi instituída uma ditadura. Curta, é verdade. Porém isso porque, em 32, houve a Revolução Constitucionalista. A revolução de 32 é chamada de constitucionalista porque o povo queria respeito à Constituição. Foi uma revolução do povo, em nome da Constituição.
Folha - O senhor lutou nessa revolução?
Goffredo - Eu tinha 16 anos. Fui soldado dessa revolução. Como eu não podia usar fuzil, por não ter idade, me puseram como secretário -eu era estudante, sabia ler e escrever, estava no fim do ginásio- do hospital do sangue na frente norte. Eu assisti a diversas batalhas aéreas e acudi, no campo de batalha, os feridos, junto com os idealistas comuns comigo.
Folha - Com 16 anos o sr. já tinha uma clara idéia daquilo contra o que e por que estava lutando?
Goffredo - Nós tínhamos idéias muito claras. Eu era um ledor inveterado dos jornais. Lia dois, três jornais todos os dias. No meu tempo de ginásio, e mesmo antes, no primário, eu já lia jornais. Lia no bonde. Como o curso primário foi no Lyceu Franco-Brasileiro, no fim da Vila Mariana, que ainda era campo -a cidade não havia chegado lá-, a viagem de bonde levava muito tempo e eu ia lendo os jornais. Eu me lembro de chegar com aqueles jornais debaixo do braço e as pessoas me perguntavam: "Para que isso? Para que tanto jornal?". E eu dizia: "Porque eu quero ler". O pessoal achava curioso. De forma que eu sabia muito claramente que estava lutando pela Constituição. Pela Constituição. Nós não queríamos ditadura. Lutávamos pela Constituição. E realmente obtivemos a Constituição de 34, que não era grande coisa, mas, enfim, era uma tentativa de democratização. Um regime democrático, pseudo-democrático, que durou até 37, quando Getúlio fechou o Legislativo e instituiu uma ditadura, que durou até 45. Em 45, ele foi convidado a se retirar.
Folha - O senhor chamou a democracia de 34 a 37 de pseudo-democracia. Hoje pode-se dizer que estamos em uma pseudo-democracia?
Goffredo - Olha... [pausa] Estamos em uma pseudo-democracia porque os nossos representantes mudam de partido e, portanto, onde é que ficaram os ideais que estão nos programas? Onde é que está a fidelidade partidária? Como é que pode existir democracia sem fidelidade partidária?
Folha - Não é uma democracia de verdade, então?
Goffredo - Não. Não é uma democracia de verdade porque o eleitor se sente abandonado por seu candidato que mudou de partido. Olha, a democracia não é isso. De maneira que, evidentemente, não estamos em uma democracia plena. Agora, eu devo dizer: o remédio não é mudar a Constituição. Não, não! Em absoluto, não é isso. O remédio é cumprir a Constituição. É preciso que a Constituição seja respeitada como a Lei Maior, a Lei Magna da disciplina da convivência humana.
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