Teoria Integral do Direito
José é dono de um imóvel. O que ele tem? A faculdade exclusiva de definir a destinação do seu bem. Isto é propriedade. O município de São Paulo tem o domínio da rua pública. O que ele tem? O dever de assegurar a afetação do bem público à sua destinação. Isto é domínio. Na primeira hipótese, faculdade que tem origem na exclusividade do bem. Na segunda hipótese, dever de assegurar a afetação do bem à sua destinação que tem origem na necessidade de compartilhamento de uso do imóvel.
terça-feira, 8 de dezembro de 2009
Atualizado em 7 de dezembro de 2009 13:10
Teoria Integral do Direito
Propriedade e domínio como faculdade e dever
Luiz Walter Coelho Filho*
José é dono de um imóvel. O que ele tem? A faculdade exclusiva de definir a destinação do seu bem. Isto é propriedade. O município de São Paulo tem o domínio da rua pública. O que ele tem? O dever de assegurar a afetação do bem público à sua destinação. Isto é domínio. Na primeira hipótese, faculdade que tem origem na exclusividade do bem. Na segunda hipótese, dever de assegurar a afetação do bem à sua destinação que tem origem na necessidade de compartilhamento de uso do imóvel. O dever se transforma em poder. Esta relação entre faculdade e dever parece ser determinante na compreensão e distinção entre bem imóvel privado e bem imóvel público (dominical, de uso especial e de uso comum do povo).
O Código Civil1 classifica e define o que são bens particulares e bens públicos. O Quadro 1 organiza a classificação adotada e sua relação jurídica com o objeto, limitando-se esta análise aos bens imóveis.
Quadro 1. Relação sujeito e objeto na propriedade e domínio.
O sujeito de direito privado é proprietário de um imóvel. Ele tem a faculdade exclusiva para definir a destinação do objeto. Se dois sujeitos de direito privado são proprietários da mesma coisa, opera-se a co-propriedade, e eles dividirão esta comunhão, segundo regras próprias. Eles terão a faculdade exclusiva compartilhada para definir a destinação do bem.
A terceira hipótese relaciona sujeito de direito público e bem imóvel dominical. Neste caso, se pode admitir a propriedade, ainda que regida por regras de Direito Público. Se o ente público tem a faculdade exclusiva para definir a destinação do bem, admite-se por lógica o conceito de propriedade com o acréscimo de qualificação pública. Um exemplo: terreno de marinha, bem dominical da União. O Serviço do Patrimônio da União outorga arrendamento, autoriza ocupação ou uso, celebra contratos de cessão. Múltiplas operações sempre nos parâmetros da lei, mas essencialmente a União atua como proprietária, inclusive com enorme zelo na obtenção de rendas associadas à cobrança de laudêmios e taxas, o que significa direito de fruição.
A quarta hipótese relaciona sujeito de direito público com bem imóvel de uso especial. Neste caso, a destinação ou afetação do bem predomina sobre a faculdade de definir a destinação do bem imóvel. É possível afirmar que o titular tem pouca autonomia para definir a destinação do bem, o que exclui tecnicamente a exclusividade. A afetação do bem imóvel à sua finalidade é tão relevante que gera até mesmo proteção especial, ainda que o titular não seja sujeito de direito público. É o que se discute acerca da impenhorabilidade de bens de sociedades de economia mista aplicados em serviços públicos. Esta polêmica, por si só, revela o destaque que o bem de uso especial adquire a partir da sua afetação.
Na última hipótese, o bem de uso comum do povo. Nesta categoria, ingressa também o mar, apesar de não constituir bem imóvel. É uma categoria mais abrangente. O que se percebe pelo uso da praia, das praças e das ruas é que todos podem utilizar e ninguém pode avocar para si a exclusividade para definir a destinação. Estes bens são totalmente afetados ao uso coletivo, sendo dever do poder público assegurar o compartilhamento do uso.
Como já dito, a exclusividade na relação com o bem apropriado se manifesta como faculdade de definir a destinação. Enquanto esta faculdade predomina, pode-se afirmar que existe propriedade. Quando esta faculdade cede e se torna subordinada à afetação do bem, surge uma relação de dever e poder, aqui denominada domínio. O sujeito de direito público que tem domínio sobre ruas e praças exerce relação de dever e por tal conta lhe é assegurado poder. Parece nítido que o poder público está a serviço da comunidade, relação de dever, e como tal esta lhe confere poder para administrar o bem.
No plano lógico, duas proposições podem ser declaradas:
a) propriedade é a relação jurídica entre sujeito de direito e objeto em que predomina a faculdade exclusiva para definir a destinação do bem imóvel;
b) domínio é a relação jurídica entre sujeito e objeto em que predomina o dever de assegurar determinada destinação ao bem imóvel. Percebe-se que os conceitos são estruturados a partir da carga predominante: na propriedade, faculdade para definir a destinação; no domínio, dever e poder para assegurar a destinação.
Como se poderá perceber, as duas variáveis - faculdade para definir a destinação e dever de assegurar a destinação ou afetação - atuam combinadas em todas as cinco categorias de bens, o que acaba determinando níveis de proteção especial ao bem imóvel. O quadro 2 estrutura com mais clareza a combinação das duas variáveis.
Quadro 2. Variáveis de faculdade e dever na relação entre sujeito e imóvel.
Hipótese de relação sujeito e objeto (imóvel) |
Variável 1 faculdade para definir a destinação (exclusividade) |
Variável 2 dever de assegurar a destinação (afetação) |
Proteção legal |
1. Imóvel privado. Propriedade de um sujeito |
Faculdade ampla com as limitações da lei. |
Observância da regra da função social da propriedade. |
Nenhuma proteção diferenciada em relação aos bens públicos. |
2. Imóvel privado. Propriedade de mais de um sujeito |
Faculdade ampla com as limitações impostas pela co-propriedade e pela lei. |
Observância da regra da função social da propriedade. |
|
3. Imóvel dominical. Pessoa jurídica de direito público |
Faculdade ampla vinculada às definições da lei. |
Observância da regra da função social da propriedade. |
Imprescritíveis, impenhoráveis. |
4. Imóvel de uso especial. Pessoa jurídica de direito público |
Faculdade restrita. |
Total afetação à finalidade |
Inalienáveis, imprescritíveis, impenhoráveis. Existem outras proteções que serão oportunamente referidas. |
5. Bem de uso comum. |
Faculdade restrita. Incompatibilidade com o uso exclusivo |
Total afetação à finalidade |
O Quadro 2 permite a seguinte compreensão: o arbítrio para definir a destinação, aqui denominada exclusividade, e o dever de assegurar a destinação, aqui denominada afetação, materializam-se como atos em dois verbos: posso fazer e devo fazer. Parece claro que na propriedade a carga predominante é a faculdade, ainda que exista algum dever de subordinar esta faculdade à função social definida para a propriedade. No extremo oposto, a carga dominante é o dever de assegurar a afetação do bem, ainda que possa ser identificada alguma faculdade para definir a destinação de parte do bem, por exemplo. A relação combinada das duas variáveis deve ser ajustada ao caso concreto, pois, não é possível definir categorias rígidas. Relevante nesta análise é a estruturação lógica das categorias para adequada aplicação das variáveis como vetores.
Outro aspecto merece ser referido e pode ser observado no Quadro 2. Trata-se da proteção legal assegurada à propriedade e ao domínio. Este regime de proteção legal apresenta variação por categoria de bem imóvel, o que em certa medida decorre da aplicação combinada das variáveis. Este aspecto é muito interessante e será objeto do próximo artigo.
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1 Código Civil, arts. 98 e 99.
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*Advogado e sócio do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Advogados S/C
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