Diferença entre o dano moral e o mero aborrecimento na "Ditadura do Consumidor"
Sem dúvida um dos grandes desafios do direito é estabelecer a distinção entre o dano moral e o mero aborrecimento. Uma descortesia com um cliente, um atraso aéreo, a existência de um cadastro indevido para aqueles que já possuem outras restrições contemporâneas junto aos cadastros de proteção ao crédito, por exemplo, causariam abalo moral?
segunda-feira, 9 de novembro de 2009
Atualizado em 6 de novembro de 2009 10:47
Diferença entre o dano moral e o mero aborrecimento na "Ditadura do Consumidor"
Fabrício Sicchierolli Posocco*
Sem dúvida um dos grandes desafios do direito é estabelecer a distinção entre o dano moral e o mero aborrecimento. Uma descortesia com um cliente, um atraso aéreo, a existência de um cadastro indevido para aqueles que já possuem outras restrições contemporâneas junto aos cadastros de proteção ao crédito, por exemplo, causariam abalo moral?
Não há uma fórmula mágica que responda, de forma segura, a esse tipo de questão. A avaliação inevitavelmente passa pelo exame do caso concreto. E é aí que os problemas começam, posto que muitos (clientes e advogados), ávidos por alguns trocados mágicos na "Loteria Judicial", passaram a banalizar o instituto do dano moral em situações que até então não passariam sequer percebidas afora do "Fantástico Mundo de Bob" que ocorre nos Fóruns de inúmeras comarcas do país.
Na fixação de indenizações por dano moral, tanto a Doutrina quanto a Jurisprudência são incansáveis em afirmar que o magistrado deverá apelar para o que lhe parecer equitativo ou justo, agindo sempre com um prudente arbítrio, ouvindo as razões das partes, verificando os elementos probatórios, fixando moderadamente uma indenização. O valor do dano moral deve ser estabelecido com base em parâmetros razoáveis, não podendo ensejar uma fonte de enriquecimento nem mesmo se irrisório ou simbólico. A reparação deve ser justa e digna.
Portanto, ao fixar o quantum da indenização, o juiz não procederá a seu bel prazer, mas como um homem de responsabilidade, examinando as circunstâncias de cada caso, decidindo com fundamento e moderação.
Salvo melhor juízo, tais lições não estão sendo compreendidas ou aplicadas devidamente. Atualmente, existe uma forte tendência dos juízes de primeiro grau (principalmente daqueles atuantes junto aos Juizados Especiais Cíveis) em transformar "meros aborrecimentos" em "evidentes danos morais", sugerindo indenizações abusivas e até mesmo inconsequentes em suas sentenças, criando uma verdadeira e terrorista "Ditadura do Consumidor". Definitivamente, sob pena de banalização do instituto, os magistrados não podem considerar meros aborrecimentos do dia a dia como problemas jurídicos sérios, sob pena de transformar o princípio da hipossuficiência do consumidor, no princípio genérico do "in dúbio pau no réu'.
Nesse contexto, é certo que quem viaja de avião está sujeito a atrasos aéreos.
Concordamos, inclusive, que na hipótese desses atrasos serem significativos, resta frustrada a expectativa do consumidor, haja vista que ele espera, em relação a essa modalidade de transporte, a própria rapidez. Mas qual será o atraso que admite indenização? Quantas horas são necessárias para isso? Existem regras no jogo que todo passageiro quando adquire sua passagem deveria saber. Mas se não sabe, o advogado que patrocina a causa tem obrigação de saber.
Conquanto regida pelas normas de proteção ao consumidor, a hipótese de atraso de vôo rege-se também pela legislação própria da aviação, eis que as normas do Código Brasileiro da Aeronáutica (clique aqui) somente não se aplicam quando incompatíveis com a Constituição Federal (clique aqui) e com o CDC (clique aqui). Assim, a lei 7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica) dispõe, em seu art. 231 que "quando o transporte sofrer interrupção ou atraso em aeroporto de escala por período superior a 4 (quatro) horas, qualquer que seja o motivo, o passageiro poderá optar pelo endosso do bilhete de passagem ou pela imediata devolução do preço e que todas as despesas decorrentes da interrupção ou atraso da viagem, inclusive transporte de qualquer espécie, alimentação e hospedagem, correrão por conta do transportador contratual, sem prejuízo da responsabilidade civil."
Assim, o Código Brasileiro de Aeronáutica não prejudica o consumidor na hipótese de atraso do vôo, pois é razoável que se limite um período de tolerância para que a própria empresa dê prosseguimento à viagem, sob pena de se chancelar situações em que qualquer período de atraso, por menor que seja, autorize a aquisição, pelos passageiros, de bilhetes de outras companhias com direito a reembolso. Além disso, prevê a responsabilização civil por danos que decorram do atraso. Mas indenizar situações corriqueiras de atraso somente por conta da hipossuficiência do consumidor, relegando esse direito do fornecedor do serviço aéreo regulamentado por lei específica, não parece justo.
Que se dizer então daqueles que possuem inúmeras outras restrições já cadastradas junto aos cadastros de proteção ao crédito, e ingressam com ação pleiteando indenizações por novas inscrições? O que se falar do consumidor que não efetuou o pagamento de uma parcela de sua conta porque não recebeu o boleto bancário pelo correio e foi inscrito junto ao SPC/SERASA? Será que quem já tem o nome inscrito em órgãos de proteção ao crédito, tem direito a dano moral por nova inscrição? Será que aquele que não recebeu em sua casa o boleto bancário pode invocar, como álibi, esse motivo para deixar de pagar suas contas em dia, e ainda ser recompensado por isso?
Evidente que não. O bom senso diz que não. A lei diz que não. O princípio da boa-fé (art. 422 do CC - clique aqui) diz que não. Mas muitas vezes o Judiciário diz sim, chegando ao absurdo de imputar ao fornecedor o pagamento de indenização a tais pessoas, tudo em notório confronto face à própria súmula 385 do STJ, criada para moralizar situações dessa natureza. E apenas para argumentar, na "terra de ninguém chamada Juizado", o fornecedor se tornou um verdadeiro refém da Justiça, posto que não existe recurso para o STJ.
Apenas para argumentar, parece claro que muitas súmulas editadas pelos Tribunais Superiores vieram para corrigir injustiças que vinham sendo cometidas, porque, infelizmente, alguns julgadores ainda relutam em admitir tais situações como não caracterizadoras de um dano moral indenizável, e, por conseguinte, fixam indenizações abusivas. Definitivamente essas situações não configuram dano moral e não merecem indenização.
Mas o que fazer diante de uma situação como essa?
Não nos parece ser o caso de estabelecer distinção entre o dano moral e o mero aborrecimento por meio de súmulas ou leis para todas as situações práticas. A criação de uma tabela de valores e condutas também se mostra totalmente impertinente. Tais propostas muito comentadas e sugeridas pelos fornecedores é um verdadeiro absurdo e totalmente impossível de serem aplicadas ou admitidas, mormente porque cada caso é um caso.
Talvez seja preciso que o Judiciário, nas suas diferentes esferas, esteja mais atento não somente às agruras pelas quais passam os consumidores diuturnamente, mas principalmente pelas situações absurdas e abusivas deduzidas por esses consumidores, perante o judiciário, exigindo danos morais.
Importante deixar claro que não temos a intenção de defender, no presente artigo, os maus fornecedores, nem tampouco sugerir que diversas situações constrangedoras do dia a dia não possam ensejar a configuração do dano moral ou gerar o dever de reparação. Não estamos negando, inclusive, a importância do instituto quando devidamente utilizado. Não queremos estabelecer uma guerra entre os mais fortes e os mais fracos, nem tampouco discutir isso. Mas, definitivamente, aventuras jurídicas não podem ser recompensadas somente porque o consumidor é a parte mais fraca na relação de consumo. É necessário que perante o Poder Judiciário - principalmente nos Juizados Especiais Cíveis - os fornecedores também sejam ouvidos, suas defesas lidas, seus arrazoados percebidos, para que nos julgamentos a serem realizados pelos senhores magistrados não mais prevaleça a "Ditadura dos Consumidores", mas somente a insofismável e democrática Justiça!
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*Advogado do escritório Posocco & Associados - Advogados e Consultores
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