Norma jurídica e ontologia hermenêutica do direito
A manifestação mais explícita do Direito é a norma jurídica (Bobbio, 2003). Esta, pelas próprias características, pressupõe abstração e generalidade. Não é possível conceber a idéia da produção de uma norma em situação casuística.
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
Atualizado em 28 de outubro de 2009 10:11
Norma jurídica e ontologia hermenêutica do Direito
Alexandre Mendes*
A manifestação mais explícita do Direito é a norma jurídica (Bobbio, 2003). Esta, pelas próprias características, pressupõe abstração e generalidade. Não é possível conceber a idéia da produção de uma norma em situação casuística.
Sem a possibilidade de conhecer efetivamente a totalidade da situação concreta que pretende regular, que pode apresentar infinitas peculiaridades, em alguns casos a aplicação da norma jurídica abstratamente enunciada pode levar a uma situação de injustiça ou, em outras palavras, a uma violação do consenso. Pense-se em um exemplo já bem conhecido de todos. Uma cidade sitiada pelos inimigos resolve editar uma norma proibindo a entrada de qualquer pessoa em seu território durante o período da guerra. As muralhas são fechadas em cumprimento do comando normativo. Pouco tempo depois, cientes de que sua cidade estava em perigo, guerreiros que viajavam há muito tempo, resolvem voltar para defender seu país; ao chegar, encontram as muralhas fechadas. O texto normativo abstrato impede a entrada dos guerreiros na cidade. Ocorre que esta proibição é absurda. A situação concreta efetivamente vivenciada, em alguns momentos, transforma a aplicação da norma jurídica num contra-senso, numa violação. Este exemplo é diuturnamente repetido nas relações intersubjetivas de um país.
Várias teorias têm sido construídas ao longo do tempo objetivando conferir razoabilidade ao processo de interpretação do Direito. Nenhuma delas, entretanto, parece atacar o problema nas suas causas primárias e elementares. Esta perspectiva precisa mudar radicalmente e é exatamente esta a proposta do presente trabalho.
O grande problema da compreensão do fenômeno jurídico reside no desconhecimento dos fundamentos hermenêuticos do Direito. Os operadores de nossa ciência ainda se servem da hermenêutica como técnica de interpretação de um enunciado (Bleicher, 1980). O máximo a que se consegue chegar por intermédio desta visão é a proclamação de um espírito da norma posta, cuja legitimidade nem sempre fica evidenciada. Este espírito é sempre invocado para corrigir as distorções que a aplicação de uma norma ao caso concreto pode provocar. Alguns chamam este processo de interpretação lógica (na verdade, uma técnica de interpretação que busca resultados lógicos, mas nem sempre legítimos). Seria bastante? Entendo que não.
A hermenêutica não é técnica, mas fenômeno de compreensão. Ela não é auxiliar do Direito, mas sua essência. Essencialmente o Direito é hermenêutica. É um problema fundamental na atualidade (Bleicher, 1980).
O termo hermenêutica deriva do grego e significa declarar, anunciar, interpretar ou esclarecer e, por último, traduzir. Apesar da multiplicidade de acepções, a idéia que resulta é a de que alguma coisa seja levada à compreensão. Supõe-se que a palavra derive de Hermes, "o mensageiro dos deuses, a quem se atribui a origem da linguagem" (Coreth, 1973:1).
Desde a Grécia que a expressão tem relação íntima com a autoridade de um enunciado, já que em primeiro lugar era considerada técnica de interpretação da mensagem dos oráculos (Coreth, 1973). A dimensão sacra já era conhecida dos hebreus e se propagou por todo o mundo, sobretudo na Idade Média, na tentativa de determinar o alcance dos postulados canônicos. A palavra hermenêutica, portanto, foi formulada e empregada primeiramente na teologia. Como arte da compreensão, entretanto, só seria utilizada na modernidade.
Contudo, sempre existiram, ao lado dos textos sacros, enunciados profanos que reclamavam esclarecimento. Na verdade, portanto, embora o desenvolvimento da hermenêutica tenha se verificado mais intensamente no campo teológico, seus reflexos se irradiaram também sobre regras estranhas à sacralidade, notadamente as de moral e conduta provindas da autoridade.
O parentesco da hermenêutica sacra com a jurídica é evidenciado pelas características comuns das duas. Tanto em uma quanto na outra o objeto é a compreensão de um enunciado que fala de maneira normativa e provém de certa autoridade, tendo em si a pretensão de obrigatoriedade (Coreth, 1973).
Entretanto, o que se observa hoje é que, se de um lado houve extraordinário progresso nas pesquisas sobre hermenêutica no campo da teologia e da filosofia, o mesmo não aconteceu no Direito. Com efeito, há muito tempo a hermenêutica teológica e mesmo filosófica já ultrapassaram a característica de uma ciência prática, que formulava regras para uma correta interpretação do texto das Escrituras Sagradas. O sentido da compreensão não se identifica mais com a práxis do trabalho exegético, servindo a ele. A verdadeira compreensão do sentido daquilo que nos é dado deve extrapolar uma mera exegese prática de afirmação literal do sentido, porquanto deve ocupar-se das próprias condições de possibilidade do horizonte do entendimento. Em outras palavras, debaixo da idéia da busca da clareza de um texto existem problemas muito mais profundos e sérios que não devem ser desprezados, sob pena de comprometimento absoluto da aplicação dos conhecimentos hauridos.
A transposição dos limites estreitos da exegese jurídica como prática só se revela necessária, entretanto, se for igualmente superada a idéia de Direito fornecida pelo positivismo jurídico. Acabado dentro de uma norma positiva o Direito não precisa o ser compreendido. Em outras palavras, o Direito como técnica jurídica carece tão só de uma técnica hermenêutica. De outra forma, presente a necessidade de compreensão axiológica do Direito, a utilização de qualquer técnica interpretativa resulta completamente insuficiente.
O que se vê hoje em dia é que os problemas hermenêuticos do Direito ainda não superaram aqueles existentes ao tempo da famosa polêmica entre a Escola de Antioquia, mais conservadora, que pugnava por uma interpretação literal dos textos das Escrituras e a Escola de Alexandria, que reclamava uma interpretação mais espiritual dos enunciados. Várias polêmicas de interpretação do Direito hoje remetem a questões que não eram novidade, portanto, no Século III d.C.
O caráter dogmático da epistemologia jurídica tem suas raízes assentadas no pensamento da Idade Média (Bleicher, 1980). A exemplo da Alta Escolástica, também o Direito de hoje quer vincular todas as soluções de seus gritantes problemas a uma concepção sistemática. A implementação dos dogmas jurídicos foi estabelecida com o propósito de conduzir a uma forma objetiva de interpretação dos textos normativos, que se resume na busca de afirmação do sentido literal de um enunciado, sem maiores considerações. O princípio hermenêutico da Escolástica (na verdade mera técnica interpretativa) vem sendo constantemente repetido até nossos dias no campo jurídico. Os sacerdotes mudaram, o modelo não. A proposta de edição de Súmulas de caráter vinculante, por exemplo, não é senão a repetição literal de disposição aprovada no Concílio de Trento, onde a cúpula da Igreja Católica declarava expressamente sua exclusiva autoridade no estabelecimento dos dogmas que deveriam ser seguidos pelas pessoas (Olson, 2001).
Ocorre que, desde a eclosão do Iluminismo, novos paradigmas de compreensão se tornaram possíveis graças ao avanço da hermenêutica. O pensamento de Kant descortinou possibilidades infinitas para a compreensão humana. Scheleiermacher, ao indicar a necessidade da subjetividade na interpretação, estabeleceu um marco que, no plano jurídico, jamais seria ultrapassado. O Direito continua até hoje engalfinhado aos seus dogmas. As bases de uma nova hermenêutica foram ampliadas com a publicação, em 1927, de Ser e Tempo, de Heidegger (obra que o mundo jurídico recusa-se a conhecer). Para este extraordinário pensador, a compreensão é questão existencial. A existência é marcada pela compreensão do ser. A hermenêutica não é mais considerada como uma arte de interpretar textos, mas uma tentativa de determinar a própria essência da interpretação da existência. Compreendida a existência, ela interpreta-se a si mesma no tempo e na história. Na verdade, uma coisa se manifesta dentro de uma totalidade já dada e toda a interpretação se move dentro de uma concepção prévia desta totalidade. A existência do ser-no-mundo (Dasein) projeta o horizonte de sua auto-compreensão. O mundo, portanto, encontra o seu fundamento no ser.
O progresso da hermenêutica possibilitou uma enorme ampliação das possibilidades de compreensão das ciências de espírito e tem determinado verdadeiros saltos do pensamento ocidental.
É certo que a norma jurídica tem importância para o Direito. Esta constatação é inevitável e seu alcance não deve ser mitigado. Entretanto, a exata compreensão da norma só é possível através de uma ontologia hermenêutica do Direito como um todo. Somente aí será possível descortinar seus princípios fundantes e avaliar as consequências decorrentes de sua concreção.
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*Advogado do escritório Fernando Corrêa da Silva e Advogados Associados
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