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Os direitos sucessórios na união estável

O novo Código Civil conseguiu ser perfeitamente inadequado ao tratar do direito sucessório dos companheiros.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2003

Atualizado em 1 de abril de 2003 11:49

 

Os direitos sucessórios na união estável

 

Sílvio de Salvo Venosa*

 

O novo Código Civil conseguiu ser perfeitamente inadequado ao tratar do direito sucessório dos companheiros. A primeira preocupação diz respeito à manutenção ou não, no que couber, das Leis nº 8.971/94 e 9.278/96, que cuidam atualmente da união estável. Ademais, o novo código traça em apenas um único dispositivo o direito sucessório da companheira e do companheiro no artigo 1.790, em local absolutamente excêntrico, dentre as disposições gerais, fora da ordem de vocação hereditária.

 

A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

 

A impressão que o dispositivo transmite é que o legislador teve rebuços em classificar a companheira ou companheiro como herdeiros, procurando evitar percalços e críticas sociais, não os colocando definitivamente na disciplina da ordem de vocação hereditária. Desse modo, afirma eufemisticamente que o consorte da união estável "participará" da sucessão, como se pudesse haver um meio termo entre herdeiro e mero "participante" da herança.

 

O primeiro tema a se enfrentar diz respeito ao conteúdo do direito hereditário. O artigo dispõe que o companheiro ou companheira receberá os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Em primeiro lugar há, portanto, que se definir, no caso concreto, quais os bens que foram adquiridos dessa forma durante a união e quais os bens que serão excluídos dessa divisão.

 

Em segundo tema, há de se recordar que o artigo 1.725 do novo código permite que os companheiros regulem suas relações patrimoniais por contrato escrito. Na ausência desse documento, aplicar-se-á, "no que couber", como estampa a lei, o regime da comunhão parcial de bens. Pois bem: havendo contrato na união estável que adote outro sistema patrimonial, é de se perguntar se esse regime terá repercussão no direito sucessório. O legislador deveria ter previsto a hipótese, mas, perante sua omissão, a resposta deverá ser negativa. Não há que se levar em conta que o contrato escrito entre os conviventes tenha o mesmo valor jurídico de um pacto antenupcial, o qual obrigatoriamente segue regras estabelecidas de forma e de registro.

 

Desse modo, consoante os termos peremptórios do caput do artigo 1.790, o convivente somente poderá ser aquinhoado com patrimônio mais amplo do que aquele ali definido por meio de testamento. O contrato escrito que define eventual regime patrimonial entre os companheiros não pode substituir o testamento. Outro ponto que deve chamar a atenção diz respeito ao desfazimento da sociedade de fato que ocorre com a morte de um dos companheiros. Aliás, a mesma situação se opera no caso de rompimento da união estável em vida. Existe entre eles também uma meação decorrente dessa sociedade de fato. Aqui sim, tal como no casamento, o convivente sobrevivente terá direito à metade dos bens adquiridos na constância da convivência, além da quota ou porção hereditária que é definida nos incisos do artigo 1.790. De outra forma, não haveria como se entender a referência quanto à concorrência e se romperia o sistema criado jurisprudencialmente que veio a desaguar na aplicação analógica do regime de comunhão parcial para os conviventes. Portanto, morto um dos conviventes, o sobrevivente terá direito além meação, também à porção hereditária. Aplicando-se, no que couber, o regime da comunhão parcial, há de se recorrer ao artigo 1.660 para definir quais os bens que se comunicam na união estável, embora o artigo 1.790 se refira apenas à comunicação dos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Abre-se aqui, como se percebe, mais um ponto de discussão tendo em vista a má redação legal.

 

Como já apontamos, outra questão é saber se os dois diplomas legais citados que se dedicaram à união estável foram integralmente revogados pelo novo código. A nova lei não optou pela revogação expressa, no que andou na contramão da boa técnica legislativa, neste e nos demais assuntos que ora se abrem com o novo código. A resposta não é simples e trará certamente muitas dúvidas. A Lei nº 8.971/94, muito mal redigida, utilizara da mesma expressão do código de 2002 ao definir que os companheiros participariam da sucessão do outro. De acordo com o artigo 2º, essa participação seria do usufruto da quarta parte dos bens do de cujus, se houvesse filhos deste ou comuns, enquanto não constituísse nova união (artigo 2º, I). Teria direito ao usufruto da metade dos bens, na mesma situação, se não houvesse filhos, ainda que houvesse ascendentes do companheiro morto (artigo 2º, II). Na falta de descendentes e de ascendentes, o convivente teria direito à totalidade da herança (artigo 2º, III).

 

Ora, o artigo 1.790 do novo Código Civil disciplina a forma pela qual se estabelece o direito hereditário do companheiro ou da companheira, de forma que os dispositivos a esse respeito na Lei nº 9.971/94 estão revogados. Note que existe um retrocesso na amplitude dos direitos hereditários dos companheiros no código de 2002, pois, segundo a lei referida, não havendo herdeiros descendentes ou ascendentes do convivente morto, o companheiro sobrevivo recolheria toda a herança.

 

No sistema implantado pelo artigo 1.790 do novo código, havendo colaterais sucessíveis, o convivente apenas terá direito a um terço da herança, por força do inciso III. O companheiro ou companheira somente terá direito à totalidade da herança se não houver parentes sucessíveis. Isto quer dizer que concorrerá na herança, por exemplo, com o vulgarmente denominado tio-avô ou com o primo-irmão do seu companheiro falecido, o que, digamos, não é uma posição que denote um alcance social sociológico e jurídico digno de encômios.

 

Por outro lado, a Lei nº 9.278/96, estabelecera, no artigo 7º, o direito real de habitação quando dissolvida a união estável pela morte de um dos companheiros, direito esse que perduraria enquanto vivesse ou não constituísse o sobrevivente nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família. Somos da opinião que é perfeitamente defensável a manutenção desse direito no sistema do código de 2002. Esse direito foi incluído na referida lei em parágrafo único de artigo relativo à assistência material recíproca entre os conviventes. A manutenção do direito de habitação no imóvel residencial do casal atende as necessidades de amparo do sobrevivente, como um complemento essencial ao direito assistencial de alimentos.

 

Esse direito se mostra paralelo ao mesmo direito atribuído ao cônjuge pelo novo código no artigo 1.831. Não somente essa disposição persiste na lei antiga, como também, a nosso ver, a conceituação do artigo 5º que diz respeito aos bens móveis e imóveis que passam a pertencer aos conviventes no curso da união estável. De qualquer forma, a situação desses dispositivos é dúbia e trará incontáveis discussões doutrinárias e jurisprudenciais.

 

Quanto ao direito hereditário propriamente dito dos companheiros, de acordo com o artigo 1.790, a participação do convivente na herança será sob a modalidade de direito de propriedade e não mais como usufruto. De acordo com o inciso I, se o convivente concorrer com filhos comuns, deverá receber a mesma porção hereditária cabente a seus filhos. Divide-se a herança em partes iguais, incluindo o convivente sobrevivente. Inexplicável que o dispositivo diga que essa quota será igual àquela que cabe "por lei" aos filhos. Não há herança que possa ser atribuída sem lei que o permita. Como, no entanto, não deve ser vista palavra inútil na lei, poder-se-ia elocubrar que o legislador estaria garantindo a mesma quota dos filhos na sucessão legítima ao companheiro, ainda que estes recebessem diversamente por testamento.

 

Essa conclusão levaria o sobrevivente à condição de herdeiro necessário. A nosso ver, parece que essa interpretação nunca esteve na intenção do legislador e constitui uma premissa falsa. Na forma do inciso II do artigo 1.790, se o convivente concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um deles. Atribui-se, portanto peso um à porção do convivente e peso dois àquela do filho do falecido ou falecida para ser efetuada a divisão na partilha. No entanto, se houver filhos comuns com o de cujus e filhos somente deste concorrendo a herança, a solução é dividir igualitariamente a herança, incluindo o companheiro ou companheira. Essa conclusão deflui da junção dos dois incisos, pois não há que se admitir outra solução, uma vez que os filhos, não importando a origem, possuem todos os mesmos direitos hereditários. Trata-se, porém, de mais um ponto obscuro dentre tantos na lei.

 

Ainda, no inciso III dispõe a lei que se o convivente sobrevivente concorrer com outros parentes sucessíveis, isto é, colaterais até o quarto grau, terá direito a um terço da herança, em dispositivo de evidente iniqüidade. Na ausência de descendentes, ascendentes, colaterais, o convivente terá direito à totalidade da herança.

 

Em princípio, o companheiro ou companheira que recebe herança do convivente morto exclui o direito do cônjuge. No entanto, no concubinato impuro ou adulterino poderão ocorrer situações nas quais se atribuirão duas meações, ao cônjuge e ao companheiro ou concubino. No entanto, não há que se divisar que, em princípio, o sistema admita recebimento de herança do morto concomitantemente para o cônjuge e para o companheiro, nos termos do artigo 1.830 mencionado. Todas essas questões passarão a preocupar enormemente os tribunais com a vigência do novo código.

 

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* Juiz aposentado do Primeiro Tribunal de Alçada Civil - sócio do escritório Demarest e Almeida Advogados - Autor de obra completa de Direito Civil em seis volumes

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