Direito à intimidade, lei de escuta e a privacidade cliente e advogado: quando e como podem ser protegidos. É o que responde a auditoria jurídica
O que será exposto adiante não aconteceu no Brasil, mas na Argentina. Trata-se de exemplo dignificante para o ato heróico do advogado Ernesto Halabi1 e a grandeza demonstrada por juízes locais, num desassombro incomum para nosso país.
sexta-feira, 18 de setembro de 2009
Atualizado em 17 de setembro de 2009 09:42
Direito à intimidade, lei de escuta e a privacidade cliente e advogado: quando e como podem ser protegidos. É o que responde a auditoria jurídica
"Não sejas como o ingênuo,
que ignora os dramas do mundo.
Não sejas como o possesso, que os conhece,
mas não faz nada para modificar a situação"
Moacyr SCLIAR (escritor brasileiro, 1937 -)
I
1 - O que será exposto adiante não aconteceu no Brasil, mas na Argentina. Trata-se de exemplo dignificante para o ato heróico do advogado Ernesto Halabi1 e a grandeza demonstrada por juízes locais, num desassombro incomum para nosso país.
Por isso, o escriba migalheiro sente paz, uma vez que encontra, no seu amigo, aquilo que vem pedindo e implorando em Migalhas aos seus leitores: exercer a profissão com amor e paixão, como Halabi confessou no livro "El Derecho de la Intimidad y la Ley Espía". E do jurista João Batista Alberti, na mesma obra, destacou uma frase que deve ser meditada por todos quantos operam sinceramente com o direito: "O povo deve ser testemunha da maneira como os tribunais desempenham seu mandato de interpretação e aplicação das leis; deve constatar ocularmente, se a justiça é uma mera palavra ou uma verdade de fato"2.
Colocadas essas idéias, poderão os migalheiros aferir o que aqui teremos como prestação jurisdicional e o que gostaríamos de encontrar do Judiciário, como resposta à sociedade, por mais polêmica, problemática, discutível e importante seja a questão em pauta para os poderosos e para o governo.
E tem mais. Como a comunidade dos prestadores de serviço jurídico se sentiria segura, quando seus direitos e suas garantias sejam enfrentados, decididos e amparados, com a amplitude do texto constitucional, castrado (art. 135, CF - clique aqui).
II
2 - Halabi, durante o ano de 2003, tomou conhecimento de que funcionários do governo norte-americano, em companhia dos diretores de empresas especializadas em escutas/espionagens, aportaram no país, "para convencer as autoridades argentinas sobre a necessidade de colaborar na luta antiterrorista", inspirados pela edição do Patriotic Act de 2001 e sobretudo por interesses comerciais (vendas de equipamentos, instalações, sistemas, plataformas, serviços técnicos, dados pessoais para governos, entidades governamentais, empresas de informação, bancos e quem pagasse, além de montar e implantar uma rede de espionagem com requintes) (p.119).
Denunciou que altos funcionários governamentais argentinos mostraram-se interessados em criar um "mega registro informático" "com o qual se entrecuzaria a informação das repartições e dos ministérios nacionais", concordando que esse mega registro informático "seria homologado pelo FBI, já que ambos sistemas seriam compatíveis" (idem).
Ao mesmo tempo, ainda em 2003, apurou-se que a empresa Choice Point Inc. trafegava com dados de cidadãos argentinos, para os Estados Unidos, atividade que punha em risco o direito à privacidade dos nacionais. Esse fato, agregado ao divulgado de que o governo se rendia aos "encantos dos vendedores", mereceu repulsa na imprensa que não contestava com esses descalabros, destacando-se o publicado pelo diário La Nación em 27 de julho do mesmo ano.
3 - Através de uma escandalosa manipulação legislativa na Câmara dos Deputados, o projeto de lei passou pela Comissão de Comunicações, onde foi modificado e alterado e aditado "sem nenhuma explicação". Assim, sucessivamente, desde o protocolo inicial em 15 de julho de 2003, foi circulando nas manobras legislativas e, ao derradeiro, aprovado por unanimidade pelos congressistas.
Chega ao Senado: em duas semanas, o projeto de lei percorre todas as Comissões Regimentais, com poucas dissidências mal articuladas, passa por cima dos prazos para emendas ou críticas, e é aprovado com as mãos levantadas dos dignos senadores, em 17 de dezembro de 2003.
O procedimento legislativo conclama para a criteriosa análise dos interessados em Direito Público Legislativo, porque:
a) não houve um específico projeto prévio, como exigia o procedimento legislativo argentino;
b) não foi antecedido de nenhuma Exposição de Motivos;
c) não houve debate parlamentar e, para completar,
d) ao sancionar a lei, substituiu-se seu objeto, pois o texto aprovado só abarcava as comunicações móveis, como também, genericamente, os serviços de telecomunicações, estes, aliás, definidos por lei anterior (Lei Nacional de Telecomunicações 19.797, no seu artigo 1º).
O surpreendente "produto legislativo" (Lei 25.873) é composto por apenas três artigos a justificar a reflexão dos juristas e o solitário artigo quarto é meramente formal.
Halabi apoda-o de fomentador da incerteza exegética "sobre os motivos de índole técnico-jurídicos determinantes de sua sanção e sobre os fins que buscavam os que o aprovaram" (p. 129), além, é óbvio, de mostrar um Congresso refém de interesses ocultos, mas ousado em vulnerar os princípios constitucionais e os limites que embasam ou são o cerne do Estado de Direito.
Inquieto, afirma que "a lei tem dois aspectos contraditórios: privatiza os lucros e estatiza as perdas. O primeiro é que a lei pretende transformar - a seu custo - os prestadores de serviços em agentes do SIDE (órgão público), já que os obriga a comprar os equipamentos das empresas provedoras - todos de origem norte-americana -e com altíssimos custos em dólares. É o mesmo que dizer estarmos na presença de um multimilionário negócio para essas empresas e para os sócios locais" (p. 130).
Muito inquieto e mais angustiado pelo que aferiu e percebeu Halabi, com suas reflexões, em segundo lugar, sinaliza que a lei em comento viola os legítimos direitos da intimidade, amparados pelos artigos 18 e 19 da Constituição Federal, completando com brilhantismo ao dizer que tais artigos "derivam fundamentalmente do direito natural à privacidade que assiste a todo ser humano". Nesse contexto, escusando-se do pouco, também viola a Lei de Proteção de Dados Pessoais (25.326); o artigo 5º, da Lei de Inteligência Nacional (25.526); o artigo 236 do CPP, segundo o qual só os juízes podem ordenar a interceptação de comunicações; o artigo 32 da lei 11.723, sobre o exclusivo direito do autor de publicar suas cartas e o artigo 1.071 bis do Código Civil, que apena quem se intromete na vida alheia ou difunde correspondência ou perturbe a intimidade.
E tem mais. A lei 23.187, que obriga os advogados a guardar segredo profissional, bem como normas e tratados internacionais, incorporados ao sistema jurídico argentino pelo artigo 77, inciso 22, da Constituição Nacional, ou sejam, a Convenção Internacional de Direitos Humanos, a Declaração Universal de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas.
E, completando a cadeia de ilegalidades, foi outorgado ao Poder Executivo, para que regulamente "as condições técnicas e de segurança que devem cumprir os prestadores de serviços de telecomunicações com respeito à captação e derivação das comunicações" (p. 130). A lei concede o que Halabi chama de "uma delegação em branco", ou, aqui, seria "um cheque em branco" (também vedado pelos artigos 76 e 99, inciso 2º, da Constituição Nacional). Estes são os fundamentos dessas ilegalidades que foram apontadas e merecem de nossos juristas a peculiar atenção, a saber:
a) a delegação sem autorização é ilegal, porque o Executivo não pode regulamentar pormenores necessários para executar uma lei, quanto menos ainda complementá-la (=aditá-la) no que tem em sua parte principal, muito menos no que foi definido ou estatuído pela lei;
b) a interpretação da lei - do tipo como a que foi aprovada é sempre restritiva, pelos motivos técnicos de que não cuida de questões administrativas, emergências públicas, nem tem um prazo muito limitado para sua regulamentação.
4 - Se essa cadeia de ilegalidades vulnera a lei 25.873, como exaustivamente Halabi sustentou, a sua regulamentação pelo Decreto 1.563/4 não fugiu do pérfido caminho percorrido por ela, desde a concepção.
Como estamos habituados no Brasil, a prática de regulamentar uma lei e enxertar-lhe tudo quanto não passou pelo crivo do Congresso é, ou se torna, hábito.
E o autor citado, com as ilegalidades expostas, ainda reverbera que: "à desnuda e órfã estrutura da lei, o Poder Executivo - citando a Constituição Nacional - acoplou-lhe como regulamento uma amplíssima gama de normas que atualiza um velho e central problema de direito público, o respeito à distribuição do poder normativo" (p.132).
5 - Mas o surrealismo não ocorreu somente nas artes plásticas no século passado, porque, nesta corrente, o governo argentino percebeu que, com a lei que feria a intimidade e consetários, gerada, aumentada e criada pelos fortes úberes da mãe boazinha - a guita (sinônimo de dinheiro, em bom lunfardo) - não conseguiu amainar nem estancar a tolerância pública.
Em 22 de abril de 2005, o Poder Executivo baixou um decreto, com um único artigo, suspendendo o Decreto 1.563/4, para serem analisadas as suas circunstâncias e as suas conveniências.
O Ministro das Comunicações veio a público para anunciar que iria negociar com os empresários outros procedimentos, sem nunca tê-los feito. Nomeia uma comissão e esta nunca se reuniu.
Moral:
(i) um decreto deixa em suspenso a aplicação de outro decreto;
(ii) o fato do anterior manter a sua vigência, dentro do sistema das ordenações, tem eficácia;
(iii) se tem eficácia, por ser vigente, porque inexiste o tipo jurídico de suspensão de um decreto por outro, com que concordo com Halabi, há possibilidade de ocasionar uma "afetação atual ou iminente aos direitos dos cidadãos";
(iv) logo, se não foi derrogado, mas suspenso por tempo indeterminado, a fortiori, existe no mundo jurídico do sistema normativo vigente.
Se, para Montesquieu (1689 - 1755), em Meus Pensamentos, "a mediocridade é um corrimão", o decreto que suspendeu o outro decreto é a chancela do medíocre que o elaborou e o promulgou e escorregou pelos degraus, sem se apoiar em nada.
III
6 - Ernesto Halabi é um advogado de coragem, virtude que, em nossa era da tecnologia da informação, é entendida como "medo que alguém tem de ser considerado covarde" (Horace Smith, 1779 - 1849, escritor inglês). A bravura e o destemor, como fundamentos da advocacia, substratos da independência, passaram a ser desprezados em nosso país, pela abulia consentida ou pelo cinismo pragmático. Nem por isso deixa de ser a coragem uma virtude enobrecedora, para quem a pratica, por crer sem ser utopista, visionário, profeta ou pajé!
Vamos narrar fatos que assinalam o percurso que Halabi cumpriu, até obter consagrada vitória na Suprema Corte do seu país, tentando ilustrar com os fundamentos jurídicos do pleito, conhecido no direito argentino como "amparo".
6.1 - Aos 7 dias de março de 2005, mediante o protocolo 5.657, por sorteio, o processo foi distribuído ao 10º Juizado do Foro Contencioso Administrativo Federal.
Estes foram os fundamentos que embasaram o pleito de Halabi:
(i) legitimidade, com o duplo caráter de usuário de telefonia fixa, móvel e internet, em resguardo da privacidade das comunicações por esses meios;
(ii) legitimidade, como advogado, regularmente autorizado à prática da profissão, cujo segredo profissional é resguardado por leis ( 23.187, nos artigos 6º, inciso "f", 7º, inciso "c" e 20, inciso "j") e pelo Código de Ética, no artigo 3º, inciso "h", estava comprometida pelas Leis e pelos Decretos em exame.
Com a franqueza que enobrece muitas mulheres valorosas, a Dra. Liliana Heiland, a juíza, questionou-o: "Não teme alguma represália?" Difícil que isso se passasse em São Paulo, pelo hermetismo pitonísico de muitos magistrados.
Passados três meses, repito, passados três meses, apenas três meses, no dia da graça de 14 de junho de 2005, a excepcional Magistrada, realizando um detido, elaborado e minucioso exame dos trâmites legislativos, acima esboçados, deu procedência integral ao pleito. Da decisão, destaca o escriba migalheiro este trecho antológico "... o legislador abdicou de seus poderes, afrontou expressos mandamentos constitucionais e instrumentalizou um sistema que desconhece e altera a essência das garantias e direitos básicos descritos (no libelo), semeando terror e desconfiança nos potenciais afetados, no caso, o autor, e isto vulnera princípios e limites que constroem a essência mesma do Estado de Direito e deve evitar-se".
Ela, a Dra. Liliana, não temeu nenhuma represália, com a decisão que aplicara.
Mas, Halabi, experiente advogado, frente ao que lhe parecia difícil sobrepujar no Tribunal, buscou ajuda no Colégio Público de Advogados de Buenos Aires para intervir no processo como amicus curiae, permissivo que o ampararia, por decisão da Suprema Corte. A agremiação, burocraticamente, recebeu a solicitação, pelo protocolo e como a questão da possível quebra do sigilo do privilégio advogado/cliente era de somenos, nada fez, nem se pronunciou.
Esse fato enluta a entidade, por seus omissos dirigentes, que presidiam o Colégio Público de Advogados de Buenos Aires, em 2005. Registro, porque esse procedimento é odioso. Atenta à dignidade de toda a Classe, porque o pleito de Halabi interessava a todos. Será que os diretores se lixavam, se o sigilo dos relacionamentos com os clientes fosse desvendado? Será que iriam vender mais horas, lesando seus mandantes?
Como há dignos advogados, e muitos, veremos o que aconteceu algum tempo após esse enlutado acontecimento.
6.2 - Entre 7 de março de 2005 e 17 de junho de 2005, quando o "amparo" foi julgado em primeiro grau, foram 100 dias, um pouco a mais ou a menos, porém, a segunda instância procedeu de modo idêntico: em 25 de março de 2005, ou 130 dias, a sentença monocrática, por unanimidade, mereceu aprovação, com um reparo ainda mais importante para o aclaramento de que o ditado, que declarava a inconstitucionalidade era erga omnes.
Explicando, o alcance ampliado do segundo grau.
Se Halabi, pessoa física, cidadão argentino, moveu a máquina judicial em defesa do direito pessoal (próprio, dele mesmo), por força maior, esse exercício de direito não excluía, nem colocava à parte, a incidência do julgado coletivamente, tal como se estivesse perante uma Corte americana, promovendo uma class action. O pleito de Halabi está agasalhado pelo artigo 43, parágrafo 2º, da Constituição Nacional.
Os membros do Sodalício, escorados na jurisprudência pretoriana da mesma Corte, com singeleza e com brilhantismo, eloqüentemente, fincaram que:
(i) quando uma relação de consumo é aberta, ou seja, há oferta pública, ampla ou plural (com vários e distintos participantes) há uma relação negocial maior ou de espetro amplo (coletivo), resultando que os integrantes dessa relação mantêm entre si homogeneidade ou uniformidade. Em suma, não são e nem podem ser considerados um a um, porque, ontologicamente, estão ligados por uma "vontade individual coletivizada";
(ii) além daquele requisito, integrante com este outro, é que existe um evento normativo que almeja os interesses comuns tipificados dos usuários e, ainda assim, que o dito evento normativo reflete sobre o grupo dos demais usuários/consumidores, sempre de modo uniforme.
É, por esses motivos, que entrelaçam as relações dos consumidores individuais do mesmo serviço com todos os demais que se utilizam dele, da mesma maneira, e, ainda mais, sobre todos eles, de modo uniforme. Ora, acacianamente, poder-se-ia entender que há, sem dúvida, uma dimensão coletiva, onde a causa de pedir e o objeto da pretensão caminham pelo mesmo canal emissário, integrados, com caráter plural, homogêneo ou uniforme.
Pergunta-se: não é assim que funcionaram as relações dos consumidores de uma concessionária de telefonia móvel ?
Sem usar Pirandello, mas nele pensando, "não é assim, é se lhe parece", porque, havendo usuários do mesmo tipo de serviço, a inferência lógica, ex prompto, desse raciocínio, o conduz a que o controle da constitucionalidade desse evento normativo, quando reclamado e trazido à prestação jurisdicional, deve ser estendido a todos. A todos que se lhe equiparam.
Poder-se-ia aventar, no campo filosófico do direito, que o interesse social, base da proteção da legislação de consumo, ex natura, cuida do interesse singular, quando malferido, mas, amplia-se erga omnes, ao ter que tutelar interesses homogêneos ou uniformes de uma pletora de usuários ou consumidores do mesmo serviço, na mesma circunstância.
Com ousadia, o escriba migalheiro permite-se ir além: como as relações de consumo de serviços de telefonia, v.g, são regidas por um contrato uniforme (standard), bastando a adesão, é pertinente, por obviedade, que uma lesão a um consumidor pode afetar os demais usuários do mesmo tipo de serviço: há, entre eles um grupo homogêneo que se formou, dentro de uma relação aberta e plural, criando entre si, independentemente de vontade individual, um liame que tem por substrato a sua proteção coletiva, porque a vontade se torna coletiva, para a defesa de interesses comuns.
Na Argentina, a tutela de pretensões coletivas está arrimada na Constituição Nacional e na lei 24.240, no seu artigo 52.
6.3 - O recurso extraordinário teve seus trâmites retardados, porque, requerido no fim de 2005, foi atacado pelos recorrentes em único fundamento. Questionaram como arbitrária a dimensão dada pelo Colegiado do efeito da decisão erga omnes, tão só.
Já, em 6 de junho de 2006, o recurso extraordinário foi admitido, porque a decisão se sustentava num juízo de valor quanto ao alcance, interpretação e aplicação de normas federais locais (no Brasil, artigo 102, I e II, da Constituição Federal).
Em ambos países, o recurso extraordinário é julgado pela Suprema Corte, tendo o caso em exame, na Argentina, ingressado em 6 de junho de 2006 (expediente # 270/2006).
No mesmo ano, nos seus últimos dias, a FACA apresentou-se, após eleições que derrotaram os opositores à pretensão de Halabi, como amicus curiae, no processo. E foi aceita. A Suprema Corte, na mesma senda, deferiu o ingresso nos autos do Colégio Federal de Advogados, para a mesma angulação processual.
Tanto para a FACA como para o Colégio Público de Advogados, a Suprema Corte entendeu que, dentre outros argumentos, "a interferência nas comunicações através de qualquer meio, afasta seriamente a preservação do segredo profissional que obriga os advogados" (Lei 23.187, artigo 6º, "f"; artigo 7º, "c"; artigo 20º, "j" e Código de Ética, artigo 3º, "h").
6.4 - O caso do "amparo" de Halabi, na Corte Suprema, no seu percurso, teve lances sui generis.
Este é o sumário:
(i) pela terceira vez na história da Suprema Corte, ela, nesse caso, designou uma audiência pública para as partes e para as duas entidades amicus curiae, com a finalidade de "expressar sua opinião fundada sobre o objeto de litígio (grifamos), fixando a sua data para 2 de julho de 2007;
(ii) a imprensa noticiou, na mesma época em que foi designada a audiência, que três integrantes da Corte Suprema sofreram espionagem clandestina, nos seus computadores;
(iii) contemporaneamente, foram passivas de espionagem pessoas dos mais diferentes escalões da vida pública (juízes, políticos, diplomatas, empresários de comunicação, jornalistas, artistas), por meio de agência de inteligência irregular, mas controlada por altos escalões do governo;
(iv) o Procurador de Justiça incumbido de opinar sobre o caso, além de não manter relações nem pessoais, nem profissionais com Halabi, era seu desafeto, mas mesmo assim oficiou no caso com o agravante de ser suspeito de co-autoria com seqüestros e desaparecimentos de pessoas durante o regime militar.
6.5 - Na audiência pública propriamente dita, as entidades FACA e Colégio de Advogados, por seus representantes, manifestaram incondicional apoio a Halabi, porque seu pleito, contra a lei 25.873, por ele fustigada, era a melhor demonstração do apreço e do segredo profissional, para o exercício da defesa e da garantia da independência, liberdade e dignidade da profissão de advogado e da preservação dos seus objetivos e do seu Código de Ética. Foram enfáticas sobre a indispensabilidade de que o "amparo" irradiasse efeitos erga omnes.
A parte demandada não conseguiu satisfatoriamente oferecer respostas às perguntas que lhe foram formuladas pelos dois magistrados que a inquiriram, no contexto da lei, apesar de que o recurso extraordinário versava apenas sobre os efeitos erga omnes da decisão pretoriana. Optaram os dignos juízes, com razão até, por transpor a inércia da parte, operada, a julgar do escriba, com a preclusão, para avançar sobre a tutela de direitos coletivos, máxime pela gravidade e pelo alcance dos objetivos da lei ferida.
O autor foi questionado, muito mais do que seus antecessores. É valioso transcrever as perguntas que lhe foram feitas, para sentir que os magistrados da Suprema Corte não utilizaram a audiência pública para dar uma visão cosmética ao caso, mas dimensioná-lo ao seu porte e à necessidade dos direitos constitucionais coletivos serem considerados, avaliados e tratados com a importância que merecem por magistrados que honram suas togas.
Perguntas:
a) "O senhor iniciou este "amparo" primeiro para defender a si próprio e depois como afetado?"
b) "Qual o agravo que a lei lhe causa?"
c) "Em que medida o senhor, como cidadão, crê que se viola sua intimidade?"
d) "Qual o excesso que se vê na lei?" e "qual o excesso que se vê na lei quanto à violação da intimidade?"
e) "Se alguém registra o tráfego das comunicações que realiza um advogado em seu escritório com testemunhas ou com seus clientes, isto afetaria o segredo profissional?".
Após Halabi ter respondido objetivamente as perguntas, foi encerrada a sessão, voltando o processo aos juízes para decidirem.
6.6 - Por derradeiro, em 24 de fevereiro de 2009, a Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina acolheu a decisão anterior da Segunda Seção da Câmara Nacional de Apelações no Contencioso Administrativo Federal que declarou a inconstitucionalidade da lei 25.873 e do conseqüente Decreto. Foi assinada por todos os seus integrantes, com três dissidências parciais.
Comentando, o advogado Halabi escreveu: "Esta é uma decisão sem precedentes - um verdadeiro leading case - já que acolhe pela primeira vez, em nosso ordenamento jurídico: 'a ação de classe (class action), ao considerar que a previsão constitucional que contempla esta tutela é plenamente operativa e, por conseqüência, sua eficácia deve ser garantida pelos juízes. Esta nova ação persegue a garantia dos direitos de incidência coletiva referentes a interesses individuais. E à diferença do "amparo" coletivo, que já foi admitido, aqui se tratam de direitos de nítido caráter individual, mas que se vem lesionando na forma homogênea pela ocorrência de um fato único" (p. 154).
Em poucas palavras: a Suprema Corte da Nação Argentina ofereceu nova e moderna forma de exercitar o controle da constitucionalidade das leis no sistema jurídico do país. E isto porque as sentenças que se aplicam a esses casos, ainda que se apresentem como um paradoxo, não mais terão de ter efeitos no caso concreto, mas para incorporar todos os indivíduos/entidades que foram direta/indiretamente afetados pelo fato ou pela norma posta em questão.
E, com essa histórica decisão, pode-se aferir quão seguro é o país que, apesar de tudo o que ocorreu nos bastidores, pode contar com uma plêiade de magistrados que dão a moldura dourada ao exercício da nobre profissão.
7 - A auditoria jurídica concebida e difundida para consagrar o pleno exercício da profissão, que só existe quando há democracia, realça o trabalho corajoso, competente e solitário do Dr. Ernesto Halabi. Conseguiu ele, com uma estocada - com uma estocada -, preservar o sigilo nas relações advogado/cliente que poderiam ser prejudicadas pela malfadada lei e seu burlesco regulamento e, para a tutela coletiva, a garantia de que o direito à intimidade foi reconhecido e a espionagem, em todas as modalidades, banida.
Aos setenta anos, Halabi "não se escusa, por ser humano. Ser humano não toma mais tempo (de ninguém). Ao contrário, descobre-se que, com o mesmo tempo, fazemos a mesma coisa melhor, quando estamos presentes com o outro... É preciso uma cultura comum na profissão. Uma responsabilidade coletiva. O jogo paga a vela".
8 - Oxalá que esse marcante exemplo possa induzir os jovens auditores jurídicos, ou os que pretendem ser, e, com coragem, enfrentar as barreiras, os tapumes e as escoras dos que não querem que eles se libertem da advocacia de salão, como os camponeses franceses fizeram com as bailes da Corte, cheias de renda e cabeleiras. Acreditem. Ajam. E, com Emma Goldman (anarquista russa, 1869-1940), entendamos que: "Não há falácia maior do que acreditar que os objetivos e propósitos são uma coisa, enquanto os métodos e as táticas são outra... Toda a experiência humana ensina que os métodos e os meios não podem ser separados do propósito final".
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Ernesto Halabi é argentino, nascido em Córdoba, 1939, bacharel pela Universidade de Buenos Aires (estatal), além de ser Doutor em Direito e atuar como Agente da Propriedade Industrial. Desempenhou importantes funções públicas e, com zelo, prestou relevantes serviços à Classe, nas mais importantes entidades do seu país.
HALABI. Ernesto, El Derecho a la Intimidad y la Ley Espía, p. 151, Utsupra.com Editores, primeira edição, Buenos Aires, Argentina, 2009.
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*Advogado e fundador do site Auditoria Jurídica
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