Juizado e justiça comum
A lei 7.244/84, que criou os Juizados Especiais de Pequenas Causas, foi sucedida pela lei 9.099/95, responsável esta pela alteração na denominação que passou a ser Juizados Especiais Cíveis e Criminais; a primeira lei dispunha de 59 (cinquenta e nove) artigos, fruto de trabalho da mente sadia e descomplicada do Ministro Coordenador e Orientador do Programa Nacional de Desburocratização, Hélio Beltrão, enquanto a atual ampliou para 97 (noventa e sete), fruto do lobby dos advogados.
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
Atualizado em 16 de setembro de 2009 10:37
Juizado e justiça comum
Antonio Pessoa Cardoso*
A lei 7.244/84 (clique aqui), que criou os Juizados Especiais de Pequenas Causas, foi sucedida pela lei 9.099/95 (clique aqui), responsável esta pela alteração na denominação que passou a ser Juizados Especiais Cíveis e Criminais; a primeira lei dispunha de 59 (cinquenta e nove) artigos, fruto de trabalho da mente sadia e descomplicada do Ministro Coordenador e Orientador do Programa Nacional de Desburocratização, Hélio Beltrão, enquanto a atual ampliou para 97 (noventa e sete), fruto do lobby dos advogados.
Nos tempos iniciais de sua aplicação, a nova justiça recebeu várias e simpáticas denominações: "Justiça a jato", "Justiça dos pobres", "Justiça cidadã", etc.
No curso destes 25 (vinte e cinco) anos o sistema, que deveria ser informal, esfacelou-se quase por completo e as coisas boas da "Justiça de Pequenas Causas" desapareceram. Os operadores do direito, os legisladores incumbiram-se de desviar os procedimentos ágeis e inovadores da "justiça dos pobres" e transformaram-na em mais um braço da justiça comum, "aquela que tarda e não chega".
A criatividade do Ministro da Desburocratização, "inventada" para diminuir a carga de litigiosidade contida, agilizar as causas de menor valor, situações encontradas no dia a dia da vida de todo cidadão foi-se aos poucos desaparecendo, até que sumiu. De nada valeu a busca de uma justiça diferente daquela que nos acostumamos a conviver a "justiça que tarda e não chega"; o tempo mostrou o império absoluto da realidade burocrática do país.
Imaginemos cenas comuns em nosso dia a dia: assinamos contrato de prestação de serviço na área de telefonia; não se forneceu o contrato e um ano depois é roubado o aparelho do usuário. Faz-se comunicação à empresa e é solicitado cancelamento da linha; as contas continuam sendo remetidas com cobranças de assinatura básica, encargos, etc., mesmo sem uso algum da linha telefônica, porque pedido, por escrito, seu cancelamento. O tempo passa e quando se vai usar o crediário, sabe-se que o nome está negativado. A empresa telefônica apontou o nome do consumidor como mau pagador.
Verifiquemos outra situação: você é usuário de um cartão de crédito; na data do vencimento, por algum engano, pagou valor superior ao cobrado na fatura; pede devolução da importância paga a maior e a financeira recusa em devolver, sob alegação de que o excesso fica como crédito para compras futuras. Não embute encargo algum no montante que retém; por outro lado, se o usuário pagar valor menor do que o consignado, tomará empréstimo e pagará o valor mínimo, pagando encargos de quase 20% ao mês do restante. É justo esperar meses, anos para solucionar situações simples como essas! Será que o Juizado, como funciona atualmente, vai resolver seu problema ou vai oferecer tempo para a telefônica ou para a financeira complicar sua vida?
O ideário do criador, ministro da Desburocratização, Hélio Beltrão, foi desburocratizar o sistema judicial. Quis-se evitar as formalidades exageradas, diminuir o uso do papel e a interferência do juiz na causa. Ao invés, apareceram as atas, os despachos, as liminares, os mutirões, inclusive a participação ativa do juiz, que teria função limitada à fiscalização dos atos praticados pelo juiz leigo, ou, quando muito, somente para fazer a instrução e proferir imediatamente a sentença. Juntem-se a isto, os regimentos, regulamentos, portarias, etc.
A primeira derrota do sistema foi a própria extinção do Ministério da Desburocratização; a formalidade do CPC (clique aqui) foi aos poucos sendo absorvida pela lei 9.099/95, de maneira que hoje os juízes aplicam abertamente as solenidades exageradas exigidas pela lei processual. A perplexidade é grande, na medida em que sempre se entendeu que o CPC não deveria ser aplicado nem mesmo de forma subsidiária no sistema informal, porque extremamente formal.
A oralidade, segundo a lei 9.099/95, é a característica fundamental do Juizado; permite-se que a parte faça sua reclamação oralmente, art. 14, mas a distorção do sistema impede esta facilidade para exigir tudo por escrito, a ponto de obrigar o jurisdicionado a contratar advogado para escrever o pedido, tal como no CPC, art. 154.
A oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, art. 2º, cederam para a escrita, a complexidade, as altas despesas, a lentidão, a formalidade, e a morosidade.
De acordo com o parágrafo 3º, art. 13 da lei 9.099/95, somente os atos essenciais deveriam ser registrados, ainda assim resumidamente, em notas manuscritas, datilografadas ou estenotipadas. Os demais atos seriam gravados. Não se exige ata nem os inúmeros termos tradicionalmente usados no sistema tradicional. No Brasil, poucos Juizados, na Bahia nenhum, dispõe de gravador para cumprir o preceito legal, parágrafo 3º, art. 13.
O acesso ao Juizado deveria ser fácil, gratuito, diferentemente da prática comum, atualmente, que distribui senhas para agendar atendimento inicial uma semana, um mês depois. Inovações piores podem aportar no já debilitado Juizado: tramita no Congresso Nacional anteprojeto destinado a cobrar custas judiciais.
A "justiça dos pobres" prioriza a conciliação, art. 2º, mas na atualidade buscam-se debates, teses acadêmicas, contribuindo para atrasar a recuperação do direito violado.
O sistema simples permite o ingresso da reclamação independentemente de distribuição e autuação, art. 16; mas, a distorção da lei leva à distribuição da petição e despacho do juiz na inicial, tal como se processo na "justiça que tarda e não chega".
No pedido, de conformidade com a lei especial, deve constar, de forma simples, apenas o nome, qualificação, endereço das partes, os fatos e fundamentos, sucintamente, o objeto e o valor da causa. Estes requisitos mudaram para exigir indicação do juiz ou tribunal a quem é dirigida, enunciação das provas a serem produzidas, fundamento jurídico do pedido, etc., tudo praticamente na forma indicada no art. 282 CPC.
A lei 9.099/95 é explícita para exigir a sentença na própria audiência de instrução e julgamento, art. 28. Assim procede porque considera as reclamações nos Juizados simples e que exigem solução imediata. Na verdade, isto não ocorre.
O juiz nos Juizados não é a peça principal, função conferida aos conciliadores e juízes leigos; todavia, o funcionamento atual deposita no juiz todas as ações para movimentação de simples reclamação, quando deveria cuidar somente de homologar a sentença originada do juiz leigo ou, como se disse acima, instruir o processo e sentenciar imediatamente. Na atualidade, o juiz tornou-se a peça principal, tomando lugar do conciliador e do juiz leigo. No Juizado, o juiz deve exercer sua função sem aparecer tal como o árbitro no campo de futebol.
Eventuais incidentes no processo serão definidos na única audiência, antes da sentença, que será prolatada em seguida, art. 29. Isto não ocorre, porque o juiz, obedecendo ao procedimento do CPC, dá vistas aos advogados para falar sobre documentos, para contrariar manifestações, em flagrante desrespeito ao sistema informal. As partes devem ser ouvidas sobre documentos na própria audiência, não se admitindo concessão de prazo para esta ação, parágrafo único, art. 29. Isto não é obedecido nos Juizados, vez que o juiz togado e não o conciliador ou o juiz leigo, o advogado e não a própria parte assumem a prática de todos os atos no sistema informal.
Não há recurso das decisões interlocutórias proferidas pelo juiz, pois só comporta um pedido de reexame da solução final da causa, que é o recurso inominado, art. 41, além dos embargos declaratórios. A liminar, o mandado de segurança, o recurso extraordinário passaram a fazer parte do dia a dia do Juizado, tornando obrigatória a participação do advogado, independentemente do valor da causa. Substituíram o agravo pelo mandado de segurança. Qualquer contrariedade em decisão interlocutória, ou não,usa-se o mandado de segurança como meio reparatório de eventuais erros.
Aos poucos foram aumentando a competência do sistema: de 20 salários mínimos passou-se para 40. Além da competência, vieram com o encosto do pequeno empresário e trouxe mais jurisdicionados para resolver seus problemas nos Juizados. Esse incremento só contribuiu para arruinar e dificultar o acesso do pequeno ao sistema.
Tramita no Congresso Nacional o PL 3.283, de autoria do deputado Paulo Lustosa, que aumenta o valor das causas de competência dos Juizados para duzentos salários mínimos. O PL 3.112 de autoria do Deputado Basílio Villani torna obrigatória a contratação de advogado para todas as causas.
Não oferecem estrutura, mas inundam o sistema com todo tipo de causas.