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Corte argentina descriminaliza a posse de droga para uso pessoal

No caso Arriola e outros a Corte Constitucional argentina (Suprema Corte de Justiça da Nação) (Causa 9.080), em 25 de agosto de 2009, deu provimento ao recurso extraordinário interposto contra decisão condenatória pelo delito de posse de entorpecente para uso pessoal. O recorrente sustentou que o tipo penal previsto no art. 14, § 2º, da lei 23.737/1989, na medida em que reprime a posse de drogas para consumo pessoal, seria incompatível com o princípio de reserva contido no art. 19 da Constituição argentina.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Atualizado em 10 de setembro de 2009 10:44


Corte argentina descriminaliza a posse de droga para uso pessoal


Luiz Flávio Gomes*

No caso Arriola e outros a Corte Constitucional argentina (Suprema Corte de Justiça da Nação) (Causa 9.080), em 25 de agosto de 2009, deu provimento ao recurso extraordinário interposto contra decisão condenatória pelo delito de posse de entorpecente para uso pessoal. O recorrente sustentou que o tipo penal previsto no art. 14, § 2º, da lei 23.737/1989, na medida em que reprime a posse de drogas para consumo pessoal, seria incompatível com o princípio de reserva contido no art. 19 da Constituição argentina, que diz:

"Art. 19 - Las acciones privadas de los hombres que de ningún modo ofendan al orden y a la moral pública, ni perjudiquen a un tercero, están sólo reservadas a Dios, y exentas de la autoridad de los magistrados. Ningún habitante de la Nación será obligado a hacer lo que no manda la ley, ni privado de lo que ella no prohíbe".

A decisão (dos sete magistrados) foi unânime. Descriminalizou a posse de droga para uso pessoal, porém, só para pessoas maiores (maiores de 16 anos). Cuidava-se, efetivamente, de um genuíno caso constitucional, visto que o recorrente confrontava a lei federal (lei 23.737/1989, art. 14, § 2º) com o disposto no art. 19 da Constituição argentina (que garante a isenção de responsabilidade em relação às ações privadas que não ofendem a ordem ou a moral pública nem prejudiquem terceiros). O que foi posto em discussão foi a validade da regra jurídica acima citada. Impõe-se distinguir com clareza a vigência da validade. A norma está vigente desde 1989. Agora o que se questionava era sua validade (porque incompatível com o texto constitucional superior).

A sentença (descriminalizatória) deixou claro que não se trata de legalização: a Corte não legalizou a droga na argentina. A droga continua proibida. Mas a posse (ou porte) de pequena quantidade, para uso pessoal, está fora do direito penal. O que a Corte fez foi declarar inválida a norma contida no § 2º do art. 14 da lei 23.737/1989. Continua no plano formal vigente, mas no plano constitucional é inválida (logo, não pode mais ter nenhuma eficácia).

A decisão da Corte argentina segue uma tendência mundial, que também está presente na América Latina. Nos anos 70 e 80 preponderou a política repressiva norte-americana (guerra contra as drogas). Essa política está perdendo sua força (diariamente) frente aos usuários. Considerando-se que os recursos destinados ao "combate" das drogas são escassos, melhor (mais justo e mais adequado) é dirigi-los contra os traficantes (não contra os usuários).

O México, em agosto de 2009, descriminalizou (legislativamente) a posse de drogas para uso pessoal, desde que não exceda o limite de 500 miligramas de cocaína ou de 5 gramas de maconha. Uruguai, há anos, não pune a posse de droga para consumo pessoal. Na Colômbia a Corte Suprema, em 1974, declarou a inconstitucionalidade da lei que punia criminalmente o porte de droga para uso próprio. O Peru descriminalizou a posse de droga para uso próprio há vários anos. Nesse mesmo sentido é a legislação em Costa Rica.

A Corte Suprema argentina, há anos, vem debatendo o assunto. Há cerca de 20 anos chegou a invalidar uma lei que punia a posse de droga para uso pessoal (Caso "Bazterrica" - Fallos: 308:1392). Mas na mesma ocasião houve também uma outra sentença em sentido contrário (Caso Montalvo). O debate já estava estabelecido, como se vê, há anos. No mundo acadêmico as sentenças antagônicas da Corte Suprema foram esgrimidas ardorosamente nas últimas três décadas.

A jurisprudência da Corte Máxima argentina, como se vê, sempre foi "ziguezagueante". No Caso Colavini (Fallos: 300:254) adotou-se como válida a criminalização. Nos Casos Basterrica e Capalbo a Corte caminhou para a descriminalização (Fallos: 308:1392). No Caso Montalvo, em 1990, voltou novamente para a criminalização (Fallos: 313:1333). Em agosto de 2009 retoma a linha argumentativa do Caso Basterrica (em favor da descriminalização). O que acaba de ser resenhado comprova que o direito não tem autonomia frente às circunstâncias históricas (de cada país, em cada momento). Conforme os ventos que sopram, pode-se alcançar um ou outro rumo (e, às vezes, até consenso) em torno dos assuntos polêmicos.

A lei 23.737/1989 já conta com vinte anos. O Caso Montalvo, que legitimou a política criminalizatória, tem dezoito anos. O longo período já transcorrido estava a justificar a retomada do assunto, mesmo porque, hoje, inclusive a ONU já não tem a mesma posição que adotava há duas décadas. As razões pragmáticas ou utilitaristas que foram invocadas na sentença Montalvo (no sentido de que é preciso punir o usuário porque isso diminui o tráfico de entorpecentes e acaba afetando o traficante) foram perdendo força ao longo dos anos. A punição penal do usuário não reduziu o tráfico de drogas, não afetou o "negócio" dos traficantes.

De todos os fundamentos invocados na Sentença em debate, talvez um dos pontos mais altos seja o que diz respeito à reforma constitucional argentina de 1994, que incorporou os tratados de direitos humanos (ratificados) à Constituição (art. 75, inc. 22). A reforma constitucional de 1994 reconheceu a importância do sistema internacional de proteção dos direitos humanos. Com isso o Estado abriu mão, em certo sentido, ainda que parcialmente, de sua soberania ilimitada (Caso Mazzeo, Fallos: 330:3248). O panorama jurídico argentino, consequentemente, é outro. A política criminal do Estado já não conta com a soberania ampliada que ostentava. O Estado já não pode sobrepassar determinados limites, nem tampouco pode deixar de cumprir certos parâmetros afirmativos relacionados com a inclusão social e econômica.

Incontáveis são os reflexos das decisões internacionais sobre o direito interno. Esses parâmetros (civilizatórios) vão sendo incorporados paulatinamente na própria jurisprudência interna. Dizem respeito às condições carcerárias mínimas (Caso Verbitsky, Fallos: 328: 1146), ao duplo grau de jurisdição (Caso Casal, Fallos: 328: 3399), aos direitos dos menores quando violam a lei penal (Caso Maldonado, Fallos: 328: 4343), ao devido processo nas internações psiquiátricas involuntárias (Caso Tufano, Fallos: 328: 4832), à garantia da imparcialidade (Caso Quiroga, Fallos: 327: 5863, Caso Llerena, Fallos: 328: 1491 e Caso Dieser, Fallos: 329: 3034), ao direito de ampla defesa (Caso Benitez, Fallos: 329: 5556 e Caso Noriega, Fallos: 330: 3526), ao direito a um processo sem dilações indevidas (Caso Barra, Fallos: 327: 327), à definição do conceito de periculosidade (Caso Gramajo, Fallos: 329: 3680), ao direito das vítimas (Caso Santillan, Fallos: 321: 2021) e aos direitos das pessoas que são investigadas ou que estão sujeitas a sanção em razão de graves violações dos direitos humanos (Casos Arancibia Clavel, Fallos: 327:3312; Simón Fallos: 328:2056 e Mazzeo, Fallos: 330:3248).

Diante de todo esse novo panorama histórico, jurídico, cultural, social e econômico, geopolítico e internacional, não podia mesmo a Corte Suprema argentina deixar de reconhecer a inconstitucionalidade do art. 14, § 2º, da lei 23.737/1989. No mesmo sentido deve caminhar a jurisprudência da nossa Corte Máxima (STF). Espera-se!

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*Diretor Presidente da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes







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