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O monopólio do atraso

A história não acabou. O ideal humanitário da igualdade entre as pessoas pode encontrar diversas soluções no plano prático. Como conseqüência, por muito tempo ainda, haverá ideologias propondo caminhos diversos para a superação das injustiças e para a distribuição de bens sociais importantes.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Atualizado às 07:04


O monopólio do atraso

Luís Roberto Barroso*

A história não acabou. O ideal humanitário da igualdade entre as pessoas pode encontrar diversas soluções no plano prático. Como consequência, por muito tempo ainda, haverá ideologias propondo caminhos diversos para a superação das injustiças e para a distribuição de bens sociais importantes. Existe, todavia, um consenso no debate ético e jurídico contemporâneos: o de que a dignidade da pessoa humana foi alçada ao centro dos sistemas políticos, cabendo ao Estado promovê-la, o que envolve, dentre outras coisas, a existência de serviços públicos de qualidade.

A premissa importantíssima assentada acima convive, no entanto, com a derrota de um modelo específico de organização política e econômica: o que se fundava na crença de que o Estado deveria ser o grande protagonista do mundo moderno, impondo-se sobre a sociedade civil e sobre a liberdade de empresa. De fato, para frustração histórica de toda uma geração - a minha -, o estatismo conduziu ao autoritarismo, à ineficiência, à corrupção e à pobreza. Descobrimos, não sem grande pesar, que a dignidade humana era mais bem servida pela livre-iniciativa do que pela planificação estatal.

Mesmo no âmbito dos países capitalistas centrais, dois modelos de prestação de serviços públicos disputaram a primazia. No sistema francês, eles eram considerados emanação da soberania nacional e prevalecia o regime do monopólio estatal. No sistema americano, as "public utilities" sempre foram empresas privadas, atuando em regime de concorrência. Na maior parte do mundo venceu a fórmula de prestação dos serviços pela iniciativa privada, reservando-se para o Estado o papel crucial da regulação do setor, inclusive e sobretudo para assegurar a democratização e universalização do acesso. Na União Européia, em áreas nas quais se considerou estratégica a presença do Estado, adotou-se a solução de equilíbrio: existem empresas estatais, mas sem exclusão da atuação concorrencial das empresas privadas.

Estas reflexões se tornam atuais no momento em que está em discussão a subsistência ou não do monopólio estatal do serviço postal no Brasil, bem como, em caso afirmativo, a definição de seu alcance. Ninguém discute que esta seja uma atividade que o Estado tem o dever de oferecer à população. Está lá na CF/88 (clique aqui): compete à União manter o serviço postal e o correio aéreo nacional. Portanto, não está em questão a subsistência ou não da empresa estatal de correios. Aliás, há mais de uma década ela convive com dezenas de empresas nacionais e internacionais de distribuição de encomendas e de correspondência comercial. E tem se saído muito bem, registrando um histórico de crescimento constante e lucros recordes.

Há quem sustente que serviço postal é uma atividade econômica e que, consequentemente, as empresas privadas podem atuar no setor, ao lado da empresa estatal. Há, por outro lado, quem defenda o ponto de vista de que se trata de um serviço público, que só pode ser prestado pelo Estado ou por empresa sob seu controle. Os que advogam esse entendimento, no entanto, prudentemente excluem desse regime de monopólio estatal a entrega de correspondência comercial e encomendas. Ou seja: excepcionam a distribuição de talões de cheque, carnês de IPTU, cartões de crédito, brindes de natal e documentos trocados entre empresas.

O país, no entanto, está sob a ameaça de prevalecer uma terceira linha de entendimento: a de que o serviço postal deve ser prestado sob regime de monopólio estatal absoluto e que nem mesmo encomendas ou correspondência comercial poderiam ser entregues por empresas privadas. A consequência imediata dessa concepção é o fechamento de dezenas de empresas nacionais que atuam no setor, com a eliminação de 1,2 milhão de empregos. Também serão banidas do território brasileiro todas as empresas internacionais de courrier. Na próxima greve dos Correios, inúmeras atividades econômicas ficarão paralisadas e o país ficará incomunicável. Ou talvez as empresas venham a recorrer a método análogo ao dos traficantes: enviarão documentos e encomendas por "mulas".

O que se espera é que o STF mantenha o mercado de encomendas expressas da forma em que já está há cerca de duas décadas, preservando as empresas regularmente constituídas e milhares de empregos. Do contrário, no dia seguinte à decisão, poderemos receber a notícia de que voltamos à época em que talões de cheque e cartões de crédito só podiam ser retirados nas agências bancárias. Isso porque a entrega por empresa privada poderia ser considerada crime e a empresa estatal, de tempos em tempos, nega-se a prestar o serviço, alegando questões de segurança. Um detalhe: é provável que a notícia chegue por e-mail ou mensagem de celular. Mais ou menos como descobrir pela internet que o cinema voltou a ser mudo.

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*Professor titular de direito constitucional da UERJ. Advogado do escritório Luís Roberto Barroso & Associados










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