Ameaça ao princípio do contraditório e a grilagem de terras no Pará
Há alguns anos, a opinião pública acompanha diversas notícias de irregularidades nos registros públicos de propriedade de imóveis, envolvendo os Estados do Norte e Nordeste, os mais graves e mais recentes nos Estados do Pará e do Amazonas.
terça-feira, 28 de julho de 2009
Atualizado em 27 de julho de 2009 10:31
Ameaça ao princípio do contraditório e a grilagem de terras no Pará
Marcelo Guedes Nunes*
Viviane Castilho*
Há alguns anos, a opinião pública acompanha diversas notícias de irregularidades nos registros públicos de propriedade de imóveis, envolvendo os Estados do Norte e Nordeste, os mais graves e mais recentes nos Estados do Pará e do Amazonas.
No dia 17/7, o jornal da emissora Globo de Televisão veiculou reportagem sob o título "Autoridades combatem grilagem de terras no Pará". A matéria mostra a situação precária dos cartórios da região Sudoeste do Pará, com acervo registral totalmente deteriorado, de impossível compreensão. Livros de registros destruídos pelo tempo, por fenômenos naturais, como enchentes, e pelo descaso de parte das autoridades daquele Estado.
Essa situação de abandono se estende por décadas. O atraso dos cartórios de registros de imóveis, seu sistema retrógrado de escrituração e arquivamento de livros e documentos, sua ineficiência e fragilidade sempre foram de conhecimento de todas as autoridades há longos anos. A despeito disso, poucas medidas, com raras e honrosas exceções, foram tomadas para a modernização do sistema registral daquele Estado.
Não é novidade que um cartório de registro de imóveis com sistema frágil e ineficiente está propício à falsificação de documentos e exposto a práticas de grilagem de terras. Criar segurança nos negócios imobiliários é a função do registro público. No entanto, e mesmo diante da insegurança dos registros, os cartórios do interior daquele Estado permanecem sem qualquer apoio mínimo de infra-estrutura tecnológica para, não só evitar fraude ou falsificação, como também beneficiar a sociedade com a prestação de um serviço público essencial, confiável e seguro.
Mas o que causou espanto nesses últimos eventos não foi nem tanto a situação de abandono e de insegurança decorrentes da desorganização do sistema registrário, nossa velha conhecida. O grande choque acabou vindo da última reação de uma parcela das autoridades locais, que, sob a justificativa do combate à grilagem de terras, acabaram inadvertida e indiscriminadamente desrespeitando os direitos de toda uma categoria de proprietários de imóveis rurais, bem como violando os princípios basilares do contraditório e da ampla defesa.
A proposta das autoridades, representada pela Comissão Permanente de Monitoramento, Estudo e Assessoramento das Questões Ligadas à Grilagem, criada pela Portaria 271/07-GP, se resume ao simples e direto cancelamento administrativo de todos os títulos de propriedade de imóveis rurais bloqueados por força do Provimento 13/06 da Corregedoria de Justiça do Estado, com áreas acima de 2,5 mil hectares, devolvendo ao Estado toda a área excedente desses títulos, algo em torno de 30 milhões de hectares.
Em suma, pela proposta presume-se que todos os títulos com área acima de 2,5 mil hectares, sem autorização do Congresso Nacional, são nulos de pleno direito e merecem ser cancelados pela Corregedoria do Estado, retirando do proprietário titulado o direito ao contraditório e à ampla defesa. Inclusive, o Estado estaria isento de provar o vício do título, sua invalidade ou irregularidade e o cancelamento seria indistinto a todas as áreas rurais bloqueadas acima do limite.
Não se olvida da importância e competência da Comissão criada naquele Estado. Contudo, a relevância de seus objetivos não justifica, sob nenhuma hipótese, a adoção de uma imponderável presunção genérica de ilegalidade, implementada por um ato administrativo marcial. As bases do estado de direito estão montadas sobre a presunção de inocência, sobre o ônus de prova de quem acusa e sobre o devido processo legal e é evidente que a resolução do problema fundiário na Região Norte nunca poderia ser obtida através da mitigação de princípios constitucionais da mais ampla envergadura. Na verdade, é exatamente o constante desrespeito aos parâmetros mais elementares de legalidade que cria e alimenta esse problema desde o início.
Acertadamente, em parecer claro e técnico, a Corregedoria de Justiça do Estado do Pará, em meados de março de 2009, indeferiu o pedido da Comissão de cancelamento administrativo de todas as matrículas dos imóveis rurais com área acima de 2,5 mil hectares, reconhecendo que o proprietário tem direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa, devendo o Estado valer-se das vias judiciais para a eventual declaração de nulidade dos títulos por vício em sua origem. É o Poder Judiciário desempenhando o seu importantíssimo papel.
O parecer retrata ainda que o artigo 1º da lei 6.379/79, que embasaria o cancelamento administrativo, não pode ser aplicado ao caso concreto, como quer a Comissão, pois a referida lei não foi recepcionada pela CF/88 (clique aqui), por colidir com os princípios do contraditório e da ampla defesa, o que fica claro já em uma primeira leitura do artigo e no seu confronto com o art. 5o da CF/88:
Art. 1º da lei 6.379/79: "A requerimento de pessoa jurídica de Direito Público ao Corregedor Geral da Justiça, são declarados inexistentes e cancelados a matrícula e o registro de imóvel rural vinculado a título nulo de pleno direito ou feitos em desacordo com o artigo 221 e seguintes da lei 6.015/73 (clique aqui)."
Art. 5º inciso LV da CF/88: "Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes."
Além do mais, complementa o parecer, a recepção ou não da lei 6.379/79 pela CF/88 fica superada com o advento do CC de 2002, que, no artigo 1245, § 2º, garante o direito do adquirente sobre o imóvel até que haja uma declaração em ação própria da invalidade do registro.
Art. 1245, § 2º do CC: "Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel".
A Corregedoria concluiu muito bem seu parecer ao declarar que as autoridades locais, tais como a Comissão, o órgão fundiário e o Ministério Público, não terão qualquer prejuízo com o acionamento da via judicial, mesmo se considerada a morosidade do Judiciário, na medida em que há instrumentos legais como a antecipação de tutela para, em casos de inadiável urgência, obter o cancelamento liminar de eventual matrícula comprovadamente inválida. Em contrapartida, a ação judicial garantirá o devido processo na apreciação da qualidade dos títulos, permitindo o exercício de um contraditório amplo e viabilizando a tomada de uma decisão mais justa, municiada por todo uma fase instrutória capaz de fornecer as informações necessárias à apreciação, caso a caso, de cada titulação controversa.
A questão é grave. A situação registral é de fato caótica e comporta uma atitude enérgica, mas o Estado não pode transferir para os cidadãos, em uma penada, o ônus de um problema por ele próprio criado ao longo de décadas. Os adquirentes de boa-fé e toda a sociedade não podem ser penalizados com a adoção de medidas que afrontam o Estado de Direito e mitigam os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
A solução virá através de um processo estrutural, não do dia para a noite, lastreado principalmente no investimento em tecnologia, em recursos humanos e na criação de marcos legais para consolidação da propriedade privada no Estado. A informatização dos cartórios registrários, com a pronta digitalização de seus livros, impedirá a degradação de documentos essenciais ao esclarecimento das cadeias sucessórias, hoje perdidos em escaninhos e gavetas. O georrefenciamento dos imóveis, com utilização das tecnologias de satélite, poderá esclarecer dúvidas quanto à extensão exata das propriedades, dificultadas pela descrição precária dos títulos antigos. E o investimento no treinamento dos quadros dos órgãos fundiários, que deverão assumir perfil técnico e se desvincular das vontades políticas e orientações ideológicas que contaminam essa discussão.
O desenvolvimento dos Estados do Norte e Nordeste, a redução da pobreza e o fim do desmatamento na região amazônica passam, obrigatoriamente, pela consolidação do direito à propriedade e pelo exercício de sua função social. A inexistência de um marco claro de definição do direito à propriedade na Região Amazônica é, sem dúvida, um dos principais problemas econômico-sócio-ambientais do país. A falta de um sistema registrário reduz o valor da terra (as perdas certamente superam as centenas de milhões de reais), afasta potenciais investidores qualificados (sem a segurança de que os investimentos estão regulares) e impede a imputação de responsabilidade civil e penal por atos de degradação do meio ambiente (o que explica o avanço desmedido do corte raso de florestas na região, com pouquíssimas prisões). Enfrentar esses desafios dentro de um regime de segurança legal e constitucional é um dos pontos chaves da pauta de políticas públicas da nação.
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*Advogados do escritório Guedes Nunes, Oliveira e Roquim Sociedade de Advogados
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