Livre acesso no transporte de gás natural - Brasil e União Européia
O livre acesso às instalações de transporte de gás é tema recorrente nas discussões sobre regulação do gás natural no Brasil. A questão está prevista no artigo 56 da Lei do Petróleo.
segunda-feira, 29 de novembro de 2004
Atualizado em 26 de novembro de 2004 11:31
Livre acesso no transporte de gás natural
Brasil e União Européia
Leonardo Miranda da Silva*
Por outro lado, no âmbito da União Européia3 ("UE"), os países membros seguem discutindo os resultados e as perspectivas relacionadas com a aplicação de diversas regras gerais sobre o mesmo tema, introduzidas pela chamada Diretiva de Gás4 ("Diretiva"), que propõe a criação de um mercado único de gás natural na UE.
Tendo em vista a abrangência da Diretiva e a sua aplicação a diversos países com sistemas energéticos bastante distintos, o seu exame é recomendável a qualquer outro país que esteja estabelecendo ou reformulando seu sistema jurídico/regulatório para o setor energético.
Dessa forma, este artigo pretende apresentar as disposições da Diretiva, bem como os principais pontos das propostas da ANP. Os dois conjuntos de regras são, de certa forma, bastante semelhantes, na medida em que garantem o livre-acesso, protegendo, contudo, os transportadores (via de regra, os agentes que realizam os investimentos).
Na UE, a grande preocupação é com a garantia de fornecimento de gás, na medida em que a região se torna cada vez mais dependente de países que não fazem parte da UE (como a Rússia). Por outro lado, no caso brasileiro a importância de se introduzir mais gás natural na matriz energética já foi evidenciada na recente crise energética.
Diretiva de Gás: principais características do regime do livre-acesso
As questões principais relacionadas com a criação de um mercado único de gás natural na EU, indicadas na Diretiva, são (i) o acesso à infra-estrutura de transporte, (ii) o acesso à infra-estrutura de armazenagem, (iii) tarifas, (iv) a dificuldade de operação conjunta dos diferentes sistemas energéticos e (v) os níveis diferentes de abertura de mercado entre os diversos países membros.
No que diz respeito especificamente à questão do livre-acesso, a Diretiva reconhece, primeiramente, que o estabelecimento de normas regulando o livre-acesso depende da desverticalização das empresas detentoras da infra-estrutura. De outra forma, reconhece a Diretiva, se torna bastante difícil a tarefa do órgão regulador de garantir acesso não-discriminatório, transparente e a preço justo.
Portanto, a ponto de partida para o estabelecimento do livre-acesso na UE seria o chamado legal unbundling das operações de fornecimento (conhecidas como supply business) e produção, das operações de transporte e distribuição. Em outras palavras, a Diretiva estabelece que as funções de transporte e distribuição devam ser conduzidas por entidade jurídica distinta daquela responsável pelas atividades de produção e fornecimento5. Vale destacar, contudo, que a Diretiva não determina qualquer forma de desinvestimento, a exemplo do que ocorrera, por exemplo, em um dos países membros, o Reino Unido.
Ainda no contexto das regras de unbundling, a Diretiva estabelece a separação das contas relacionadas a cada uma das atividades da cadeia (fornecimento, produção, transmissão, armazenagem, distribuição). Naturalmente, o objetivo principal dessas normas é a verificação de práticas de subsídio-cruzado entre diferentes atividades de uma mesma empresa, o que penaliza determinada classe de consumidores em prol de outra classe.
O segundo ponto estabelecido pela Diretiva com relação ao livre-acesso e o chamado "acesso regulado". A Diretiva determina que o órgão regulador de cada país membro é responsável pela aprovação das tarifas de acesso, ou, ao menos, da metodologia a ser utilizada para a formação das tarifas.
Além da aprovação referida acima, as tarifas deverão ser publicadas, de forma a permitir que os usuários avaliem a opção que apresenta a melhor relação custo/beneficio dentre os diversos sistemas disponíveis6.
Finalmente, existe uma gama de regras que prevêem a possibilidade das empresas negarem acesso, seja por meio de recusas, isenções, ou via derrogações das regras de livre-acesso. A recusa pode ocorrer nos seguintes casos:
(i) ausência de capacidade; ou
(ii) riscos às obrigações de serviço público; ou
(iii) riscos ao cumprimento de obrigações de take-or-pay.
Vale ressaltar que, no primeiro caso (ausência de capacidade), a Diretiva estabelece que os países membros devem adotar medidas para garantir que a respectiva empresa transportadora invista no aumento de capacidade, desde que seja economicamente viável ou se houver algum consumidor disposto a arcar com os custos da expansão.
Os chamados major investments, bem como a ampliação ou modificação de infra-estrutura, podem ser isentos da obrigação de livre-acesso, nas seguintes hipóteses, dentre outras:
(i) se houver garantia de maior competitividade no setor, bem como garantia de fornecimento;
(ii) se o investimento for de alto risco e só se justificar mediante isenção da obrigação de conceder acesso a terceiros;
(iii) se o proprietário não for dono de outras instalações de transporte no mesmo sistema, etc.
A Diretiva prevê, ainda, uma série de situações nas quais os países membros poderão derrogar algumas das regras previstas na norma. No caso das normas sobre livre-acesso, a Diretiva estabelece, por exemplo, que poderá haver derrogação temporária na hipótese de determinada área ser isolada - definida como área não conectada a sistema de interconexão e servida por apenas um grande fornecedor de gás (um fornecedor que detenha mais do que 75% do respectivo mercado). Da mesma forma, caso o respectivo mercado seja considerado emergente e possa sofrer problemas substanciais em razão do livre-acesso, poderá também haver derrogação. Existe, ainda, a possibilidade de derrogação das normas de livre-acesso caso a área em questão seja geograficamente limitada e possa sofrer problemas substanciais (falta de investimentos) em razão da obrigação de conceder acesso a terceiros.
Propostas da ANP para o livre acesso
De acordo com o Instituto Brasileiro do Petróleo - IBP, o Brasil possui aproximadamente 5400 km de gasodutos de transporte. Embora o país ainda esteja no estágio inicial de desenvolvimento da indústria de gás natural, o marco regulatório introduzido pela Lei do Petróleo já estabelece a necessidade de se introduzir regras regulando o acesso de terceiros às instalações de transporte de gás natural.
Desde a edição do primeiro normativo da ANP regulando o assunto (Portaria n. 169/98), os agentes da indústria de gás vêm debatendo a necessidade de adaptação das normas (que foram revogadas em 2001) de forma a melhor esclarecer o funcionamento do livre-acesso. Após o amadurecimento da discussão, a ANP houve por bem colocar em consulta pública três normativos regulando, respectivamente, o livre-acesso, critérios tarifários e cessão de capacidade. Os principais pontos das minutas de Portaria são apresentados a seguir.
Minuta de Portaria de Livre-Acesso. A Portaria se aplicaria tanto aos gasodutos existentes quanto àqueles a serem construídos. Os novos gasodutos (ou novas instalações de transporte, conceito mais amplo) seriam aqueles que receberam da ANP autorização para operação há menos de 4 anos (não incluídas, portanto, as expansões).
Além disso, as regras se estenderiam também as instalações de armazenagem. Nesse sentido, vale mencionar que a Diretiva da UE comentada acima, estabelece que o acesso às instalações de armazenagem deve ser negociado entre o titular da respectiva instalação e o terceiro interessado - diferente do livre-acesso aos gasodutos, que é regulado.
A minuta de Portaria também estabelece a separação entre as atividades de transporte e fornecimento (supply).
O tratamento não-discriminatório pretendido pela ANP não seria obrigatório no caso de novas instalações de transporte, conforme definidas acima, bem como no caso de transporte para os chamados mercados emergentes, cuja definição e bem semelhante àquela adotada pela UE (no caso brasileiro, mercado emergente seria considerado como aquele localizado em área geográfica limitada, sob concessão estadual de distribuição de gás e cujo primeiro fornecimento comercial em contrato de longa duração tiver sido realizado há menos de 8 anos do respectivo pedido de livre-acesso).
A ANP propõe tratamento diferenciado entre os serviços chamados firmes, dos serviços interruptíveis. Basicamente, havendo interessados em contratar serviços de transporte firme, o transportador ficaria obrigado a atendê-los observado o limite da sua capacidade disponível. Por outro lado, havendo interessados em contratar serviços de transporte de gás na modalidade interruptível, o transportador ficaria obrigado a atendê-los observado o limite da sua capacidade ociosa, mas desde que o trecho pretendido pelo terceiro interessado venha operando, em média nos 6 meses anteriores, a pelo menos 70% da sua capacidade máxima de transporte (o objetivo desse "teste", segundo a própria minuta, é garantir que o trecho alvo, de fato, corre o risco de ser interrompido). O esquema a seguir apresenta como se daria essa interação entre diferentes tipos de capacidades.
A capacidade disponível com relação aos gasodutos em operação seria alocada entre os interessados (mediante a contratação de serviço firme de transporte de gás) por meio de um concurso aberto realizado pelo transportador. Não se aplicaria o concurso aberto, portanto, aos novos gasodutos. O concurso aberto seria realizado de acordo com as normas dispostas no manual elaborado pelo transportador e aprovado pela ANP.8
Minuta de Portaria de Critérios Tarifários. A minuta de Portaria estabelece os conceitos de tarifa compartilhada e tarifa incremental. A primeira se refere aos custos totais da instalação de transporte e sua possível expansão. A tarifa incremental, por sua vez, considera apenas os custos adicionais associados à expansão da instalação respectiva. A minuta prevê, ainda, que não poderá haver tratamento "indevidamente" discriminatório ou preferencial entre usuários. Há diversos critérios a serem observados pelos transportadores na formulação das tarifas. Basicamente, as tarifas deverão refletir o custo de prestação dos serviços e o custo e qualidade relativos entre diferentes tipos de serviços. No caso de serviços firmes, além dos custos relacionados com as capacidades de entrada, transporte e saída, o transportador deverá considerar os custos com a capacidade de movimentação. E no caso dos serviços interruptíveis, o transportador deverá considerar a probabilidade de interrupção do serviço.
Minuta de Portaria de Cessão de Capacidade. Essa minuta de Portaria pretende regulamentar o funcionamento do mercado secundário de transporte de gás. Em linhas gerais, a Portaria estabeleceria o direito do carregador que possua contratos de transporte firme, de ceder, via oferta pública (exceto operações entre controladas e coligadas, ou por prazo de até 2 anos), parte ou a totalidade dos seus direitos, independentemente de concordância do transportador (mas desde que respeitados os direitos do último). O carregador cedente permaneceria, contudo, obrigado perante o transportador, salvo acordo em contrário.
Conclusão
A questão do livre-acesso às instalações de gás natural se apresenta, provavelmente, como a mais complexa em termos de regulação da indústria de gás. Mesmo os países que hoje se beneficiam de um mercado de gás liberalizado, como os Estados Unidos da América e o Reino Unido, tiveram que passar por longos períodos de discussão, erros e acertos, até chegaram ao estágio em que as forças de mercado (oferta e demanda) ditam a maior parte das regras.
Por outro lado, mesmo nos mercados mais desenvolvidos, o órgão regulador continua tendo presença absolutamente necessária nos elos da cadeia em que há monopólio natural, como é o caso da atividade de transporte, para evitar abusos das firmas dominantes.
Na UE, o grande desafio na construção de um mercado único de gás consiste na integração de sistemas distintos sob um único conjunto de regras de acesso. Em outras palavras, os órgãos reguladores da UE deverão garantir que os países membros permitam de fato o acesso de empresas de outros países no fornecimento (ou mero transporte, no caso dos acordos de trânsito) de gás aos seus consumidores, evitando situações em que países membros abrem seus mercados à competição de empresas de outros países membros, sem, contudo, terem a contrapartida do acesso a outros mercados na UE.
No caso brasileiro, o desafio maior é garantir o livre acesso às instalações de transporte de gás natural levando em consideração, entretanto, os investimentos feitos (e a serem feitos, no caso dos novos gasodutos) pelos transportadores, via preços e condições justos. De qualquer forma, felizmente a discussão está bastante amadurecida e os agentes cientes do potencial brasileiro como mercado consumidor de gás, dos benefícios do gás natural e da necessidade de investimentos em infra-estrutura para aumentar a presença do gás natural na matriz energética brasileira.
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1 Lei n.9.478/97
2 Agência Nacional do Petróleo.
3 Formada por Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Dinamarca, Irlanda, Reino Unido, Grécia, Espanha, Portugal, Áustria, Finlândia, Suécia e os dez novos membros que aderiram este ano.
4 Diretiva 2003/55/EC, do Parlamento Europeu. A primeira norma, no entanto, foi a Diretiva 1998/30/EC.
5 No caso de entidade encarregada da distribuição de gás, a Diretiva permite que não seja implementado o unbundling caso a empresa tenha menos de cem mil clientes (conectados) em carteira.
6 Considerando que o objetivo da Diretiva é a possibilidade de atendimento a usuários (consumidores) de qualquer país membro, desde que tecnicamente viável.
7 Mercado em que o primeiro fornecimento comercial, no âmbito do primeiro contrato de longo prazo que tenha sido então celebrado, tenha ocorrido há menos de 10 anos a contar do respectivo pedido de livre-acesso.
8 Em versão anterior, a minuta de Portaria de livre-acesso restringia, em certo limite, a participação de carregadores atuais nos futuros leilões de capacidade. De acordo com a norma então proposta, carregadores (ou suas coligadas ou controladas) que possuam mais do que 50% da capacidade contratada do gasoduto, não poderiam contratar mais do que 40% da capacidade ofertada via concurso aberto.
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* Advogado do escritório Pinheiro Neto Advogados
* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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