Falta grave em juízo
Têm sido relativamente comum, infelizmente, reclamações trabalhistas com alegações totalmente falsas de assédio moral (que, para simplificar, apelidamos de perseguição implacável do trabalhador dos seus superiores hierárquicos), muitas delas a partir de contratos de trabalho ainda em pleno curso (como no caso dos trabalhadores estáveis, que não temem represálias). Assim tem sido, de um modo geral, com o instituto do dano moral.
quarta-feira, 10 de novembro de 2004
Atualizado em 8 de novembro de 2004 12:16
Falta grave em juízo
Mário Gonçalves Júnior*
Têm sido relativamente comuns, infelizmente, reclamações trabalhistas com alegações totalmente falsas de assédio moral (que, para simplificar, apelidamos de perseguição implacável do trabalhador pelos superiores hierárquicos), muitas delas a partir de contratos de trabalho ainda em pleno curso (como no caso dos trabalhadores estáveis, que não temem represálias). Assim se dá, de um modo geral, com o instituto do dano moral.
Noutro estudo (Os danos morais e a 'democratização' do Judiciário, Gazeta Mercantil, 8/8/02, caderno Legal & Jurisprudência, pág. 02), já apontávamos como uma das conseqüências da democratização do processo judiciário, provocada por diversas inovações legislativas que visaram torná-lo efetivo, o incentivo para que até as pequenas lesões jurídicas fossem levadas às Cortes: "o excesso de formalismo, a demora na obtenção de resultados práticos e o custo de uma contenda judicial faziam com que, naturalmente, 'pequenos' direitos lesados não fossem levados ao Poder Judiciário para as reparações cabíveis. O cidadão preferia, como se diz no jargão, 'deixar para lá' pequenos prejuízos, porque maior seria tentar repará-los através do processo judicial que, sabia-o de antemão, a decisão levaria anos a fio para ser proferida, e outro tanto para se traduzir em medidas concretas em relação ao réu".
O que se tem visto, como se disse na introdução, não é apenas um aumento da intolerância dos jurisdicionados quanto às lesões de pequena proporção, como também um incremento nas causas baseadas em pura litigância de má-fé: quando não falseiam parcialmente a verdade (o ilícito existe, mas artificialmente a ele se agregam outros fatos inverídicos com o objetivo deliberado de causar maior perplexidade), para qualquer ato ilícito cometido pelo empregador que em tese pode causar, além dos danos materiais, certa dose de sofrimento espiritual no empregado, o rol de pedidos traz também algum "plus" a título de indenização por danos morais.
Na Justiça do Trabalho os pleitos a pretexto de danos morais estão passando de qualquer limite razoável. Recentemente nos deparamos com uma reclamação na qual o empregado, ainda na ativa, postula a restituição de um desconto salarial (de R$ 800,00) que a seu ver foi ilícito, e o dobro do seu valor (R$ 1.600,00) por ter sofrido com o desconto.
Esse fenômeno certamente não constitui privilégio da Justiça do Trabalho, tanto que na Justiça Comum, em razão da repetição desse tipo de demanda, já foi apelidada de batatas fritas: "O número de processos de indenização por danos morais cresceu tanto que são chamados de batatas fritas: vêm como acompanhamento de ações na Justiça. Cheques pré-datados descontados antecipadamente, atrasos de vôos, alarmes de detector antifurtos em lojas de departamentos sem nada ter sido roubado, espera por um atendimento. Esses são aborrecimentos do dia-a-dia ou situações em que cabe procurar a Justiça para pedir indenização por danos morais? (...) O juiz José Tadeu Picolo Zanoni, que compara os danos às batatas fritas, explica que a popularização, e, em muitos casos, a banalização desse direito distorcem o conceito. Dano moral, em termos gerais, é a violação de um direito individual que cause sofrimento" (Dano moral vira moda na Justiça, O Estado de S. Paulo, 28/10/04, caderno Metrópole).
Não poderia ser mais feliz a alcunha dada pelo magistrado: as batatas fritas são acompanhamentos gastronômicos que em geral são solicitados muito mais por gula do que propriamente por fome. Até onde vai a fome e a partir de onde começa a gula é difícil dizer. Se é que existe alguma fronteira entre o necessário e o agradável, no caso das batatas como no dos danos morais ela deve estar situada em zona gris. Como se vê, o fast food banalizou a alimentação tanto quanto a democracia banalizou o direito de ação.
Uma das nossas sugestões para frear essa tendência perversa é a de se exigir prova do sofrimento. À primeira vista pode parecer impossível provar algo imaterial como o sentimento, mas juridicamente se admite a prova de um fato direta ou indiretamente (Prova do sofrimento: antídoto à industrialização dos danos morais, disponível na internet). A corrente jurisprudencial dominante, que entende presumível o sofrimento a partir das circunstâncias objetivas do caso concreto (algo como a vetusta teoria do homem médio), só faz tornar ainda mais fácil o caminho judicial daqueles que pretendem fazer do processo um concurso de prognósticos.
Por esses dias ocorreu-nos uma outra medida profilática: hás casos judiciais, como dizíamos, nos quais o trabalhador alega ter sido vítima de "atrocidades" por parte dos seus superiores na empresa. Muitos deles são frutos de pura litigância de má fé: os chefes desses trabalhadores são inocentes, e mesmo assim até crimes são a eles atribuídos nessas reclamações. Tudo para alcançar o enriquecimento sem causa, e quanto mais polpuda a indenização tanto melhor, o que leva os autores dessas demandas a, na melhor das hipóteses, 'pintar o diabo mais feio do que ele é'. Batatas fritas, enfim.
Ocorre que faltas graves também podem ser cometidas em Juízo, porque nem todas as hipóteses do artigo 482 da CLT estão gizadas ao local onde o contrato de trabalho é executado. Fiquemos com o exemplo da embriaguez habitual. A redação da alínea "f" do artigo 482 é autoexplicativa: "embriaguez habitual ou em serviço". O empregado dado a bebedeiras constantemente, fora do trabalho, pode ser punido com justa causa, obviamente se o vício repercutir negativamente no contrato de trabalho (atrasos ao serviço, faltas injustificadas, desatenção, acidentes de trabalho, queda de produtividade etc.). O fundamental para o presente estudo é fixar que nem todas as hipóteses de falta grave necessariamente devem ser cometidas dentro da empresa, pois há tipos legais de faltas cometidas fora do ambiente de trabalho. Portanto, não deve espantar que uma falta grave possa ser cometida pelo empregado no Poder Judiciário, no exercício do direito de ação contra o empregador.
Quando se exagera na dose de dramaticidade dos danos morais, e principalmente quando absolutamente nada de ilícito se tenha para reclamar, as petições iniciais dessas ações trabalhistas quase sempre vêm prenhes de ofensas à empresa e aos colegas de trabalho que supostamente seriam os algozes do autor. Tivemos oportunidade de ler petições onde a empregadora era chamada de tirana, perversa, irresponsável, maquiavélica, exploradora, opressora, "má" e assim por diante. Aos colegas de trabalho do autor da demanda são atribuídas atitudes tão graves que quase sempre chegam a configurar crimes (os de injúria e difamação são os mais freqüentes).
Ora, se o autor da ação trabalhista não comprovar as acusações, ou se - pior - a instrução processual revelar o contrário (que as acusações contra os colegas de trabalho são mentirosas), entendemos que o mesmo terá cometido, então, a falta grave tipificada na alínea "k" do artigo 482 da CLT: "ato lesivo da honra e da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem".
Note-se que essa espécie de falta grave - como as das alíneas "f" (embriaguez habitual), "j" (ofensas físicas) e "l" (prática constante de jogos de azar) - não tem como requisito ser consumada no local de trabalho ou dentro da empresa. O que a doutrina e jurisprudência consideram essencial não é o local onde as ofensas ocorrem, mas, isto sim, as repercussões dessas ofensas físicas ou morais:
"Desentendimento entre empregadas que chegam às vias de fato, provocando tumulto próximo ao portão de acesso do estabelecimento patronal, configura justa causa para o despedimento sem ônus. A respeito de se ter dado a ocorrência fora do estabelecimento, é de se dizer que, já que houve repercussão no meio de trabalho, dada a aproximidade do portão de entrada - a briga foi a poucos metros deste - portão por onde têm acesso todos os operários, é de se ter como motivado o ato da dispensa. Vale acrescentar que isso aconteceu no máximo meia hora antes do início do expediente do turno em que trabalhariam as duas empregadas" (Ac. TRT da 8a. Reg. no proc. n. 695/79; rel. Juíza Lygia Oliveira)
"As agressões a superiores hierárquicos, mesmo fora do âmbito da empresa, entretanto, incompatibilizam o agressor com o exercício de suas funções. Por razões óbvias, entre as quais a deteriorização da disciplina interna, tais casos deveriam também ser previstos como justa causa, da mesma forma como a embriaguez habitual e a prática de jogos de azar, faltas cometidas na vida extra-empresarial, que dão causa à rescisão contratual.Foi para suprir essa lacuna que o legislador inseriu no elenco do art. 482 da CLT a justa causa da letra "k": ofensas físicas contra o empregador e superiores hierárquicos, eliminando a menção restritiva à prática em serviço.
Embora fosse infeliz na redação do texto, (...) o legislador conseguiu alcançar seu objetivo: hoje não padece dúvida que as ofensas físicas contra superiores hierárquicos (inclusive contra o titular da empresa, que nem por sê-lo perde a qualidade de superior) constituem justa causa, seja qual for o local da prática, em serviço ou fora dele" (GIGLIO, Wagner, Justa Causa, LTr, 2a. ed. São Paulo, págs. 247/248).
As ofensas morais, portanto, também podem ocorrer fora do ambiente de trabalho, circunstância que compromete o poder disciplinar do empregador se este nada puder fazer em legítima defesa, fazendo perecer a fidúcia que é essencial para a manutenção do contrato de trabalho.
Em bom português, filtrado de impurezas técnicas e licenças poéticas, quem litiga nesse nível de deslealdade, inventando fatos desabonadores em relação aos superiores hierárquicos, é mau caráter. Que empregador pode sentir-se confortável tendo um empregado tal, sem escrúpulos, capaz de tudo até mesmo contra companheiros de jornada?
A boa fé, a lealdade e a colaboração são deveres de empregados e empregadores, portanto não exclusivos do processo judicial. Na execução do contrato de trabalho como na litigância, esses deveres não podem ser descumpridos, e um mesmo ato de quebra da boa fé, cometido em Juízo e contra o empregador, tem conseqüências de pelo menos duas ordens: processuais (artigo 18 do CPC) e trabalhistas (artigo 482, "k", CLT). Entender diferentemente resultaria na possibilidade de o trabalhador achincalhar injustamente o patrão em petições e audiências perante a Justiça do Trabalho, imune ao artigo art. 482 do CPC.
O direito de ação não é absoluto, tanto que sujeito pela própria lei a condições. O seu exercício tampouco é cercado de imunidade. Basta lembrar que a lei também prevê sanções para o caso de condutas desleais em Juízo. Se se admite que o exercício do direito de ação pode ser ilegítimo, por que se recusaria aprioristicamente a possibilidade de cometimento de falta grave em autos de processo?
É verdade que sempre se poderia especular que a punição de uma falta cometida pelo empregado em Juízo poderia camuflar revanchismo patronal, ou, em outras palavras, uma 'resposta dura' que tivesse por objetivo inconfessável o constrangimento do direito de ação pelo trabalhador e desestímulo a futuros litigantes.
Mas nem esse argumento se mostra convincente, porque todo direito é, na sua origem, subjetivo, vale dizer, é uma faculdade, portanto que pode ser exercida ou não. O próprio direito de punir faltar graves é um bom exemplo: o patrão pode aplicar a justa causa ou pode perdoar o empregado, expressa ou tacitamente (neste caso, bastando não agir).
O que vai no íntimo de quem opta por exercer qualquer direito subjetivo é inatingível e imponderável. Os direitos subjetivos de punir faltas graves e de mover o aparelho judicial do Estado podem ser agitados a partir de variados sentimentos, como egoísmo, vaidade, vingança, orgulho etc. Pode ser até que mais de um desses sentimentos tenham desencadeado a opção. Desde que a lei permita a punição de faltas graves fora do local de trabalho, o seu exercício não poderia ser questionado pelo fato de a falta ter sido cometida perante a autoridade judiciária.
Deixaria de ser legítima a punição da falta grave cometida em Juízo, não por ser impulsionada psicologicamente por sentimentos menos civilizados, mas se esses sentimentos desencadeassem reações além dos limites do direito objetivo, e para isso já há a teoria do abuso de direito.
A questão que se coloca é quando o empregador pode punir a falta cometida em autos de processo judicial. Não se admite punição sem certeza da falta, como não se admite punição muito depois dela (perdão tácito).
Coerentemente com o que já defendemos em outro estudo a propósito de assédio sexual (Prova de assédio em Juízo: o dever de punir após o trânsito em julgado, disponibilizado pela internet), entendemos também que o único momento apropriado e seguro para se punir a falta cometida em juízo coincide com o do trânsito em julgado. Isto porque por mais que o empregador tenha certeza da leviandade das acusações contidas na reclamação trabalhista, o reclamante terá direito de tentar provar a sua tese. E mesmo que não tenha razão alguma, não é impossível que consiga (ditado forense desgastado alerta que a prova testemunhal é a "prostituta das provas"). Nem sempre a verdade processual é fidedigna, porque nem todo falso testemunho é desmascarado, podendo gerar sentenças injustas. Demitir antes do trânsito envolve maior ou menor risco, dependendo da fase do processo, mesmo depois do interstício probatório, porque as provas também passam pelo crivo interpretativo do Juiz.
Resta o desconforto da demora judicial. O trânsito em julgado costuma consumir anos. Enquanto isto, empregado e empregador terão que conviver de alguma maneira. "Durma-se com esse barulho".
____________
* Advogado do escritório Demarest e Almeida Advogados