Apagando a taxa de incêndio
O Governo Mineiro, premido por dificuldades de caixa que são inegáveis e que, de boa fé, levam Secretários de Fazenda ao desespero de decisões as mais esdrúxulas, reinventou, com a Lei 14938 de 30 de dezembro do ano passado, uma tal de "taxa pela utilização potencial do serviço de extinção de incêndio", nome de infeliz escolha, tributo de nenhuma constitucionalidade.
segunda-feira, 1 de novembro de 2004
Atualizado em 28 de outubro de 2004 10:41
Apagando a taxa de incêndio
Luiz Ricardo Gomes Aranha*
O Governo Mineiro, premido por dificuldades de caixa que são inegáveis e que, de boa fé, levam Secretários de Fazenda ao desespero de decisões as mais esdrúxulas, reinventou, com a Lei 14938 de 30 de dezembro do ano passado, uma tal de "taxa pela utilização potencial do serviço de extinção de incêndio", nome de infeliz escolha, tributo de nenhuma constitucionalidade. O Governador, em boa hora, ainda que mantendo parte do pecado e usando instrumento inadequado, já reconheceu que a criança é natimorta, começando processo de por o incêndio nas cinzas. O Supremo, examinando taxa quase igual do Estado do Ceará, já a fulminou de inconstitucional. O nosso Tribunal de Justiça deve fazer o mesmo pois já há demandas neste sentido.
É facílimo perceber e reconhecer que taxa de incêndio é obra de risco para uma vida curta, ainda mais como a obraram. A Constituição Federal, em escolha que já é de boa tradição adotou o critério, que não está expresso mas é fácil de deduzir, segundo o qual impostos se diferenciam das taxas segundo a observação do que o Estado está fazendo na hora do nascimento da obrigação tributária.
Quando a lei coloca na hipótese de incidência do tributo uma atividade estatal específica como elemento pressuposto da incidência, temos tributos vinculados, em nosso caso as taxas e as contribuições de melhoria. Quando, ao contrário, a obrigação nasce sem que o poder público esteja fazendo alguma coisa em benefício do contribuinte, é óbvio que o tributo não se vincula, no nascimento, a qualquer atividade estatal específica. É a hipótese mais comum consubstanciada nos impostos que, assim, são tributos não vinculados. É também a Constituição que ensina, em lógica paralela da mesma opção, que taxas só podem existir por causa de serviços públicos específicos e divisíveis, vale dizer pontuais e habilitados à razoável medição do nível de "consumo" de cada contribuintes ou grupo de contribuintes.
Os impostos são receitas destinadas aos gastos mais gerais do Estado , ao cumprimento dos seus serviços fundamentais, aqueles que tem que exercitar e com eles se preocupar "acordado ou dormindo". Educação, saúde, segurança, fazem parte constitucional dos deveres gerais e fundamentais do Estado. Sem segurança o Estado não existe e é por isto que não está existindo em alguns lugares. Pague, ou não, taxas, qualquer cidadão da mais modesta cidade tem o direito de proteção contra a ignorância, a doença , a segurança.
Nos impostos, a prestação é tão geral que nem é preciso existir previsão anterior e expressa de competência administrativa para a execução do serviço. Com a taxa ocorre a precisão. Sacha Calmon, do nosso Instituto e do colégio dos melhores tributaristas, tem passagem apropriada: - "É dizer, a competência administrativa precede a tributária e a determina " - Comentários à Constituição de 88 - Sistema Tributário, 3ª Ed. Forense, pg 6 .
Já se vê que segurança pública, em si, é algo imanente ao Poder Estatal de União, Estados e Municípios, tem a ver com o Estado, a nação, a sociedade organizada. Não se pode medir por antecipação qual o interesse específico de cidadão ou empresa na prestação de segurança que lhes é devida. É verdade que há casos excepcionais em que isto pode ocorrer dentro da prestação ampla dos serviços gerais. Já defendi, escrevendo, que pode haver taxa de incêndio quando exista um serviço específico e especial para o atendimento de pessoas também específicas e especiais, derivada da qualidade e não da quantidade de seus interesses. Postos de gasolina, campos de petróleo, depósitos de gás, podem justificar brigadas específicas de combate a seus incêndios, com equipamentos próprios, tecnologia diferenciada, demanda peculiar e mensurável, todavia não é o caso da taxa que nos preocupa nem de nosso brioso Corpo de Bombeiros, que está igualzinho ao que era antes.
Fica estampado que segurança pública é tema de imposto e não de taxa. Isto está escrito, para quem sabe ler juridicamente, no art 145, II da Constituição Federal, como já estava nas Cartas anteriores. Nesta, e nas outras, também está e estava escrito que as taxas não podem ter a mesma base de cálculo dos impostos (art. 145 § 2º). Apesar de maquiagens e devaneios de despiste , a base fundamental de cálculo da nova taxa de incêndio é a área do imóvel, erigindo premissa falsa qual seja a de que, tanto maior o imóvel tanto maior o risco. A lei menciona uma escalafobética unidade que chama de Coeficiente de Risco de Incêndio, na verdade uma criação de coelhos na cartola para dar a impressão de que a área do imóvel não é determinante. Mas é , tanto que para sua unilateral mensuração aparece de novo a área do imóvel. Ocorre que o valor da área do imóvel já é base de calculo de, pelo menos, dois impostos, o Predial e Territorial e o de Transmissão Imobiliária. Para quem não é versado, base de cálculo vem a ser a grandeza dimensivel escolhida pelo legislador para traduzir o proprio objeto do imposto em um elemento que seja mensurável, permitindo, pela aplicação de alíquotas, o encontro do "quantum" a pagar.
Na expressão do notável Paulo de Barros Carvalho é a medida da materialidade do fato jurídico tributário e, ao mesmo tempo, elemento determinador do verdadeiro critério material da hipótese tributária. Significa dizer que a base de cálculo é o elemento identificador do tributo, autêntica impressão digital que o faz único e diferenciado em relação aos demais. Há outras razões para se abjurar a taxa dos bombeiros, bastam todavia as que alinhamos para traduzir a repugnância causada nos meios jurídicos, inclusive tribunais , por mais este esforço de caixa mal arranjado, que não recomenda a tradição democrática do Solar dos Neves.
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* Diretor do Departamento de Direito Tributário do IAMG - Instituto dos Advogados de Minas Gerais