Os recursos repetitivos no STJ e o direito da parte à desistência do recurso paradigma
Em dezembro de 2008, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por maioria de votos, que o recorrente não tem direito a desistir de recurso por ele interposto, que tenha sido alvo de escolha pelo Tribunal para ser o julgado paradigma na nova sistemática dos recursos repetitivos (Lei nº 11.672, de 11.5.2008)1.
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009
Atualizado em 6 de fevereiro de 2009 13:10
Os recursos repetitivos no STJ e o direito da parte à desistência do recurso paradigma
Saul Tourinho Leal*
Vicente Coelho Araújo*
Em dezembro de 2008, a Corte Especial do STJ decidiu, por maioria de votos, que o recorrente não tem direito a desistir de recurso por ele interposto, que tenha sido alvo de escolha pelo Tribunal para ser o julgado paradigma na nova sistemática dos recursos repetitivos (Lei nº 11.672, de 11.5.2008 - clique aqui)1.
O fundamento da decisão foi construído sobre o pilar da prevalência do interesse público de pacificar uma controvérsia repetitiva diante do interesse da parte recorrente em desistir de seu recurso2.
Poderia o STJ negar à parte um direito que lhe assiste por expressa previsão legal? Seria possível fazê-lo sem declaração de inconstitucionalidade da lei processual, sob o argumento de que princípios constitucionais assim o autorizariam?
O problema da avalanche de recursos remetidos aos tribunais superiores não é novo. O ministro Victor Nunes Leal, criador das súmulas no STF, dele já tratava desde 19603. Aliás, é bom que se frise, muito tem sido feito tanto na esfera legislativa quanto na esfera judicial, para solucionar essa crise quantitativa. Nessa trilha, as partes e seus advogados são grandes interessados.
Parece-nos, todavia, que esse movimento de racionalização não pode converter-se numa corrida rumo a um distanciamento das regras processuais4.
Sob o argumento envolvente de que teríamos uma melhor prestação jurisdicional, vê-se a construção, pelo STJ, de uma política de pragmatismo judicial que, se potencializada, pode chegar a desconsiderar, ainda que em parte, o devido processo legal - instituto de taxativo amparo constitucional.
O Código de Processo Civil - CPC (clique aqui), artigo 5015, assegura à parte o direito de desistir de seu recurso a qualquer tempo. Pelo controle difuso de constitucionalidade, e como fundamento de sua decisão, o STJ poderia ter declarado inconstitucional o mencionado artigo, mas não o fez. Com boa dose de criatividade, poder-se-ia pensar na aplicação da técnica da interpretação conforme a Constituição6 (clique aqui) ou ainda na declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto7, o que também não ocorreu.
A posição do STJ, pode-se assim concluir, constrói um novo tópico na teoria geral dos recursos, atribuindo ao Tribunal competência que a própria Constituição parece não lhe outorgar.
Esse novo item da teoria geral dos recursos estabelece o exercício, pelo Tribunal, de uma espécie de atuação objetiva8 quando do exame de recursos especiais, julgando as teses que lhe são encaminhadas, fixando precedentes teóricos e abrindo caminho para que as instâncias ordinárias os apliquem a processos que com eles guardem alguma relação.
O raciocínio empregado nessa decisão sugere que em se tratando de um processo alvo da sistemática dos recursos repetitivos, há um interesse maior do que o da parte, que é o interesse em se resolver um conflito aguardado por todos os órgãos judicantes do país. Assim, o conflito deixaria de ser exclusivamente da parte e passaria a ser da sociedade.
Cabe-nos analisar esse argumento9. De fato, há interesse público na solução do conflito, mas o que se propõe é a consagração deste princípio da melhor forma possível. A homenagem ao interesse público reside em não se julgar como paradigma um caso que não seja suficientemente abrangente de todos os aspectos do litígio.
Imagine-se um exemplo. O recurso escolhido para ser o paradigma foi, por razões alheias à vontade da parte, mal instruído. Caso seja justamente esse o recurso julgado pela sistemática dos recursos repetitivos, todos os outros interessados no tema terão negadas suas justas aspirações. O STJ, invocando o interesse público, desconsidera o direito de a parte desistir do seu recurso e procede ao julgamento. Haveria homenagem ao interesse público no prejuízo causado aos cidadãos que tiveram suas teses refutadas por conta do julgamento de um recurso precário?
Luis Roberto Barroso bem argumenta sobre as acepções do interesse público:
Pois bem: em um Estado democrático de direito, assinalado pela centralidade e supremacia da Constituição, a realização do interesse público primário muitas vezes se consuma apenas pela satisfação de determinados interesses privados. Se tais interesses forem protegidos por uma cláusula de direito fundamental, não há de haver qualquer dúvida. Assegurar a integridade física de um detento, preservar a liberdade de expressão de um jornalista, prover a educação primária de uma criança são, inequivocamente, formas de realizar o interesse público, mesmo quando o beneficiário for uma única pessoa privada. Não é por outra razão que os direitos fundamentais, pelo menos na extensão de seu núcleo essencial, são indisponíveis, cabendo ao Estado a sua defesa, ainda que contra a vontade expressa de seus titulares imediatos.
Mesmo quando não esteja em jogo um direito fundamental, o interesse público pode estar em atender adequadamente a pretensão do particular. É o que ocorre, por exemplo, no pagamento de indenização pelos danos causados por viatura da polícia a outro veículo; ou, ainda, no conserto de um buraco de rua que traz desconforto para um único estabelecimento comercial. O interesse público se realiza quando o Estado cumpre satisfatoriamente o seu papel, mesmo que em relação a um único cidadão.10 (original sem destaques)
A relação do Poder Judiciário e de seus agentes com o CPC há de ser, necessariamente, uma relação de consideração.
Pode-se ainda argumentar que ocorreu uma mudança na realidade dos fatos e que o CPC não acompanhou a evolução dos tempos, decorrendo daí a razão da não- aplicação da lei processual ao caso dos recursos repetitivos.
No direito constitucional, temos o fenômeno da mutação constitucional. Poder-se-ia até pensar numa "mutação legal", fenômeno no qual o significado de um dispositivo de lei seria alterado com o passar dos tempos, sem que nada ocorresse com a sua redação11. Não parece ser esse o caso.
Se em determinado momento, circunstâncias impuserem a alteração do CPC para lhes conferir um sentido mais adequado à atualidade, ajustando-o às novas exigências reveladas por necessidades de política judicial, invocar-se-á a prévia modificação do seu texto, o que reclama a atuação do Poder Legislativo - e não do Judiciário12.
O STJ, ao desconsiderar o que dispõe o artigo 501 do CPC, deixou de promover a aplicação de norma cogente de processo civil, que se encontra em pleno vigor.
O Supremo Tribunal Federal - STF já se deparou com tal postura por parte de tribunais e a rechaçou, ao argumento de que a "aplicação direta de norma constitucional que implique juízo de desconsideração de preceito infraconstitucional só pode dar-se com observância da cláusula de reserva de Plenário prevista no art. 97 da Constituição da República" (RE 463.278-AgR, DJ: 14.09.07).
A Corte Suprema, inclusive, editou a Súmula Vinculante nº 10 - que parece plenamente aplicável à hipótese - com o seguinte enunciado: "Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte".
Como contraponto, poder-se-ia dizer que a negativa ao pedido de desistência do recorrente se deu em prestígio à Constituição Federal, homenageando o interesse público. O próprio STF, no entanto, tem rejeitado essa argumentação, ao assim decidir: "Controle de constitucionalidade de normas: reserva de plenário (CF, art. 97): reputa-se declaratório de inconstitucionalidade o acórdão que - embora sem o explicitar - afasta a incidência da norma ordinária pertinente à lide para decidi-la sob critérios diversos alegadamente extraídos da Constituição" (RE 432.597-AgR, DJ: 18.2.05)13.
O STF também já se deparou com a discussão sobre a possibilidade de a parte recorrente desistir de um recurso que fora escolhido pelo Tribunal para ser o paradigma a resolver uma tese que se espalha em processos por todo o país.
Definiu-se que o RE 567.948/RS, de relatoria do ministro Marco Aurélio, seria, na sistemática da repercussão geral, o leading case para debater um determinado tema tributário, o que acarretaria o sobrestamento dos demais recursos que impugnavam o mesmo tema junto aos tribunais de todo o país.
A parte formulou pedido de desistência do recurso, sustentando que sua apreciação poderia "vir a causar-lhe prejuízos, ante a irrecorribilidade das decisões proferidas em repercussão geral e a possibilidade de o 'leading case' gerar a inadmissão sumária dos recursos que tratem da mesma questão".
Que fez o Relator? Homologou o pedido de desistência.
Na sequência, a repercussão geral foi admitida num outro recurso extraordinário14, sem prejuízo à racionalidade que busca o Poder Judiciário.
Outra conclusão parece não haver senão a de que cabe ao advogado, aliado a seu constituinte - e não ao julgador - definir quando desistir do recurso por ele interposto.
Os tribunais superiores vêm estampando, por meio de números, o acesso cada vez menor do cidadão às instâncias recursais. Um perigoso caminho. Necessário, sem dúvida, mas ainda assim perigoso. E que não poderia - ou ao menos não deveria - ser trilhado à margem do exercício do direito das partes no processo.
Logo, o que se propõe é que o STJ retome o debate acerca do tema e leve em consideração a possibilidade de a parte desistir do recurso escolhido para ser o paradigma na sistemática dos recursos repetitivos. Homologada a desistência, outro recurso mais adequado à solução da controvérsia deverá ser escolhido, e dessa forma ter-se-á deferência tanto às regras de direito processual como às necessárias celeridade e eficiência na prestação jurisdicional, prestigiando-se o interesse público.
1 A decisão decorre do julgamento dos Recursos Especiais 1.058.114/RS e 1.063.343/RS. O ministro Nilson Naves, em voto-vista, indeferiu o pedido de desistência, no que foi acompanhado pelos ministros Ari Pargendler e Hamilton Carvalhido, tendo retificado seus votos a ministra relatora Nancy Andrighi e o ministro Luiz Fux, para aderirem ao voto do ministro Naves. Os ministros Aldir Passarinho Júnior, Eliana Calmon e Francisco Falcão acompanharam a posição originária da ministra relatora, no sentido de aceitar a renúncia, mas de se fazer possível ao Tribunal a manifestação a respeito do tema em debate. Restou vencido o ministro João Otávio de Noronha, que aceitava o pedido de desistência sem nenhuma ressalva.
2 Não há acórdão publicado, uma vez que se trata de uma questão de ordem suscitada pela ministra relatora, e o mérito do recurso ainda não foi apreciado.
3 Cf. Revista dos Tribunais. São Paulo, 1965. O requisito da "relevância" para redução dos encargos do Supremo Tribunal. Palestra na Federação do Comércio de São Paulo, em 24 de agosto de 1965.
4 O filósofo Morton G. White fala em "a revolta contra o formalismo". Cf. Social Thought in America: The Revolt Against Formalism, New York, The Viking Press, 1952.
5 CPC, art. 501. O recorrente poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso.
6 Transcrevemos importante trecho a respeito da interpretação conforme a Constituição: "Modernamente, o princípio da interpretação conforme passou a consubstanciar, também, um mandato de otimização do querer constitucional, ao não significar apenas que entre distintas interpretações de uma mesma norma há de se optar por aquela que a torne compatível com a Constituição, mas também que, entre diversas exegeses igualmente constitucionais, deve-se escolher a que se orienta para a Constituição ou a que melhor corresponde às decisões do constituinte". MENDES, Gilmar Ferreira. Coelho, Inocêncio Mártires. Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, P. 113.
7 Falando sobre a técnica, temos: "Ressalte-se, ainda, que o Supremo Tribunal Federal, conforme verificado no item anterior, utiliza-se da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto como instrumento decisório para atingir-se uma interpretação conforme a Constituição, de maneira a salvar a constitucionalidade da lei ou do ato normativo, sem, contudo alterar seu texto". MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo, Atlas, 2007, p.14.
8 A chamada objetivação do controle difuso de constitucionalidade tem sido alvo da atenção da doutrina constitucionalista no Brasil. O ministro Teori Albino Zavascki sustenta em trabalho doutrinário a transcendência, com caráter vinculante, de decisão sobre a constitucionalidade da lei, mesmo em sede de controle difuso. Cf. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 135-136.
9 Fala-se analisar no sentido de trazer elementos para uma discussão qualificada sobre um importante precedente judicial. Importante o que nos diz Calamandrei acerca dos questionamentos sobre posições judiciais: "Não é honesto, quando se fala dos problemas da justiça, refugiar-se atrás da cômoda frase feita que diz ser, a magistratura, superior a qualquer crítica e a qualquer suspeita, como se os magistrados fossem criaturas sobre-humanas, não atingidas pelas misérias desta terra e, por isso, intangíveis. Quem se contenta com essa tolas adulações ofende a seriedade da magistratura, a qual não se honra adulando, mas ajudando sinceramente a estar à altura da sua missão". CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 258.
10 BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p.70-71.
11 Sobre o fenômeno intitulado mutação, vale destacar: "Assim como o problema dos limites da interpretação não se coloca, com exclusividade, nos domínios da hermenêutica jurídica, também o tema das mutações normativas, ou seja, das alterações do sentido dos enunciados, conservando intacta a sua roupagem verbal, não configura nenhum privilégio dos textos constitucionais, antes pertencendo aos preceitos jurídicos em geral. A propósito, não se deve esquecer que a Semântica Jurídica outra coisa não é senão um capítulo ou setor da Semântica Geral, em cujo âmbito se estudam, sem demarcação de fronteiras, as mudanças ou translações sofridas, no tempo, e no espaço, pela significação das palavras". MENDES, Gilmar Ferreira, idem, p. 122.
12 Cappelletti, quando escreve sobre a importância das questões formais e da sua observância pelo magistrado, registra: "Justamente por tais características e princípios exibirem natureza formal-procedimental, por não incidirem de modo algum sobre a criatividade real e potencial da jurisdição no plano substancial, podem pelo menos implicar maior estabilidade e menor sujeição a transformações radicais, o que não seria o caso se se tratasse de características de natureza substancial. Mesmo que a concretização dessas características possa variar, e de fato varie, de lugar para lugar e de época para época, marcam, todavia os contornos, determinando enfim a natureza do judicial process, prescindindo de variações de tempo e lugar. A sua flexibilidade embora grande, não é ilimitada. O juiz que decidisse a controvérsia sem pedido das partes, não oferecesse à parte contrária razoável oportunidade de defesa, ou se pronunciasse sobre o próprio litígio, embora vestindo a toda de magistrado e a si mesmo se chamando juiz, teria na realidade cessado de sê-lo". CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999, p. 80.
13 No mesmo sentido RE 379.573-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ: 10.2.06. AI 521.797-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ: 29.9.06.
14 RE 592.145/SP.
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