O papel da ANVISA na concessão de patentes farmacêuticas: mitos e realidade
Por mais claro e óbvio que pareça ser o papel da ANVISA nos pedidos de patentes de produtos e processos farmacêuticos, ainda persistem alguns focos de resistência à participação de membros do Ministério da Saúde em tarefa tradicionalmente desempenhada unicamente por membros do INPI. Também perseveram alguns equívocos de interpretação sobre o instituto da "anuência prévia" à luz do direito interno e do direito internacional, em especial no que diz respeito aos compromissos que o Brasil assumiu junto a OMC e ao TRIPS.
quarta-feira, 20 de outubro de 2004
Atualizado em 19 de outubro de 2004 08:37
O papel da ANVISA na concessão de patentes farmacêuticas: mitos e realidade
Maristela Basso*
Por mais claro e óbvio que pareça ser o papel da ANVISA nos pedidos de patentes de produtos e processos farmacêuticos, ainda persistem alguns focos de resistência à participação de membros do Ministério da Saúde em tarefa tradicionalmente desempenhada unicamente por membros do INPI. Também perseveram alguns equívocos de interpretação sobre o instituto da "anuência prévia" à luz do direito interno e do direito internacional, em especial no que diz respeito aos compromissos que o Brasil assumiu junto a OMC e ao TRIPS.
Os pedidos de patentes farmacêuticas passaram a ter sua análise obrigatória pela ANVISA desde a Medida Provisória 2.006/1999, que criou a figura jurídica da "anuência prévia", posteriormente consolidada pela Lei n. 10.196/2001, que alterou o artigo 229 da Lei 9.279/1996 (Lei de Propriedade Industrial), incluindo a alínea "c": "A concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos dependerá da prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA".
Foi a Lei n. 9.279/1996 que passou a regular no Brasil os direitos de propriedade industrial, neles incluídos as patentes, e incorporou em nossa ordem jurídica os padrões de proteção do "Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio" (TRIPS), integrante do Tratado Constitutivo da Organização Mundial do Comércio. Nossa legislação anterior, isto é, o antigo Código de Proteção da Propriedade Industrial (Lei n.5.772/1971) que vigorou até a adesão do Brasil a OMC, não concedia proteção, em nosso país, às patentes farmacêuticas.
Vê-se, portanto, do quadro normativo acima, que o INPI passou a poder examinar pedidos de patentes farmacêuticas a partir da Lei 9.279, de 1996, que entrou em vigor em 1997, e trabalhou sozinho até a edição da Medida Provisória de 1999 e da Lei de 2001, quando, então, passou a contar com a participação da ANVISA.
A intenção do legislador brasileiro, ao editar a Medida Provisória e posteriormente a Lei n. 10.196/2001, não foi a de retirar competências originárias do INPI, nem tampouco restringir o direito aos pedidos de concessões de patentes farmacêuticas ou discriminar os produtos patenteáveis. A intenção do legislador foi facilitar o processo de análise desses pedidos de patentes dotando o órgão registrante - INPI - de técnicos originários de outro órgão do Executivo, capazes, por sua formação específica, de participar da análise dos requisitos legais indispensáveis dos processos de patentes de medicamentos. Não pretendeu o legislador, o que é obvio, criar um segundo procedimento de análise, nem muito menos discriminar produtos patenteáveis.
Não se pode negar que os produtos farmacêuticos têm características próprias, razão pela qual sua análise requer expedientes peculiares e profissionais com experiências técnicas complementares.
O que pretende a Lei de 2001 com a figura da "anuência prévia" é estabelecer um procedimento moderno, eficiente e eficaz no qual o INPI e a ANVISA, conjunta e cooperativamente, examinem os pedidos de patentes farmacêuticas, evitando, assim, a concessão imerecida de patentes e o monopólio indevido.
Não há, como se vê do texto da Lei de 2001, como também não havia naquele da Medida Provisória de 1999, qualquer expressão ou frase que leve a conclusão de que se trata de um duplo exame - de uma análise de confirmação ou não. É evidente que o espírito do legislador foi o de proteger o interesse social de possíveis riscos à saúde pública e ao desenvolvimento tecnológico do país.
Aperfeiçoar o processo de análise dos pedidos dessas patentes somente pode refletir positivamente no bem-estar dos consumidores e garantir os benefícios advindos dos avanços tecnológicos que já se encontram no estado da técnica.
Claras são, portanto, as razões de conveniência e oportunidade da "anuência prévia" da ANVISA, bem como sua função integradora e complementar nos pedidos de patentes que dão entrada no INPI. Por outro lado, há que se ter presente que o INPI e a ANVISA, na análise desses tipos de patentes, formam um sistema único, um único corpo de examinadores a serviço da sociedade.
Por outro lado, é preciso reconhecer que o legislador não feriu nenhum princípio expresso ou implícito de direito interno ao criar o instituto da "anuência prévia". É sabido que a Constituição Federal de 1988 determina que a propriedade deve atender a sua função social (art.5º. XXIII) e que a ordem econômica deve obedecer ao princípio da função social da propriedade (art.170,III), como garantia de justiça social. Claro está, em nossa Lei Fundamental, o reconhecimento da supremacia do "bem-comum" sobre o "direito individual da propriedade".
Nenhum argumento é capaz de resistir à lógica de que nas relações entre Estado e indivíduo, os direitos fundamentais assumem posição de proeminência.
Não há discricionariedade quando o Estado, por meio de seus órgãos, atua na tutela dos direitos à vida, nem mesmo na concessão ou não de patentes. Nesse sentido é claro o texto do art. 197 da Constituição Federal: " São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado".
Sem dúvida, não sobrevive à análise criteriosa do direito interno nenhuma tese que tente afastar a anuência prévia da ANVISA por violação constitucional. É preciso por fim, em nível interno, às discussões que tentam, sem qualquer fundamento, macular o instituto da anuência prévia. Isto tem representado um desserviço às conquistas relacionadas à saúde pública em nosso país e, especialmente, ao acesso a medicamentos essenciais.
Da mesma forma, a anuência prévia não viola nenhum princípio de direito internacional.
Como se sabe, os direitos de propriedade intelectual foram construídos sobre os fortes pilares do direito internacional, tendo por base os princípios humanitários e a proteção dos direitos do homem, conforme se vê no Acordo de Cooperação entre as Nações Unidas e a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI).
As críticas que se fazem à anuência prévia no que diz respeito às obrigações que o Brasil assumiu junto a OMC (TRIPS) também não prosperam frente às flexibilidades e salvaguardas do Acordo, justamente porque seus padrões de proteção devem atingir tanto países desenvolvidos quanto em desenvolvimento.
Se não bastassem a clareza e a lógica dos objetivos e princípios do TRIPS, mais recentemente, a Declaração de Doha Sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública, adotada pelos Estados-Membros da OMC, em 2001, enfatiza que o Acordo deve ser interpretado e implementado de maneira a garantir, nos Estados-Membros, a proteção da saúde pública e a promoção do acesso a medicamento para todos.
Vê-se, sem esforço, que de acordo com a Declaração de Doha, os órgãos registrantes de patentes, como em nosso caso o INPI/ANVISA, não devem conceder patentes farmacêuticas contrárias ao interesse público e que possam dificultar o acesso a medicamentos essenciais.
É chegado, assim, o momento de se por fim às discussões sobre a pertinência e adequação da anuência prévia na concessão das patentes farmacêuticas. Não há dúvida de que ela representa instrumento importante de garantia do interesse público, conquista fundamental da sociedade brasileira e exemplo para os demais países em desenvolvimento.
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*Professora de Direito Internacional da USP e presidente do IDCID - Instituto de Direito do Comércio Internacional e Desenvolvimento
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