Interesse público não deve ser confundido com manipulação
No âmbito contratual não é incomum que o Poder Público, na tentativa de postergar ou até mesmo se eximir do cumprimento de seus deveres, adote postura passiva, sem responder aos pleitos do particular contratado e pior: no mais das vezes, abruptamente, contrariando a letargia de longos anos de relação contratual, valendo-se de uma má leitura de suas prerrogativas ou da sua (suposta) supremacia, surpreende o contratado negando-lhes direitos, argüindo, por exemplo, como causa dessa negativa, a prescrição da pretensão deduzida.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
Atualizado em 4 de dezembro de 2008 10:27
Interesse público não deve ser confundido com manipulação
Diogo L. Machado de Melo*
No âmbito contratual não é incomum que o Poder Público, na tentativa de postergar ou até mesmo se eximir do cumprimento de seus deveres, adote postura passiva, sem responder aos pleitos do particular contratado e pior: no mais das vezes, abruptamente, contrariando a letargia de longos anos de relação contratual, valendo-se de uma má leitura de suas prerrogativas ou da sua (suposta) supremacia, surpreende o contratado negando-lhes direitos, argüindo, por exemplo, como causa dessa negativa, a prescrição da pretensão deduzida.
Nesse exemplo, sob a exclusiva (e fria) ótica do decurso do tempo, alguns tribunais do país têm dado guarida à postura adotada pelo Poder Público, reconhecendo, em muitos casos, a prescrição qüinqüenal nos moldes do Decreto 20.910/32 (clique aqui), não acolhendo a força interruptiva de processos administrativos de pagamento, ainda que a pretensão esteja fora das mãos do particular, que aguarda resposta ou o cumprimento da eventual política de parcelamentos dos atrasados adotado pela atual gestão.
Nesse cenário, nem mesmo o conteúdo expresso do artigo 4º, que prescreve "não correr a prescrição" durante a "demora que, no estudo, no reconhecimento ou no pagamento da dívida, tiverem as repartições" tem sensibilizado os julgadores do contrário.
Portarias e decretos são emitidos. Ofícios são exarados pelos Agentes Públicos, com as exigências mais estapafúrdias, diligentemente cumpridas pelo particular. Em alguns casos, os débitos contratuais chegam até a ser incluídos no Orçamento gerando, inequivocamente, a legítima expectativa da quitação total da obrigação contratual pendente. Mesmo diante desse quadro, comum a invocação do "fato novo" pelo Poder Público, argüindo a malfadada "prescrição qüinqüenal", temida pelos contratados da Administração.
Ora, nesse exemplo, acolher-se a exceção da prescrição sem a devida atenção ao histórico do comportamento adotado pelo Poder Público no dado contexto da relação contratual, fulminando a pretensão do particular contratado pelo simples fato deste não ter se socorrido às vias judiciais à época - punindo-o, assim, por ter aceitado a confiança despertada na quitação dos débitos em aberto - é, no mínimo, prestigiar comportamento abusivo, inadmissível no sistema jurídico, ainda que o contratante seja dotado de prerrogativas e esteja sob o escudo da supremacia do interesse público.
O exercício de direitos não é algo ilimitado, um comportamento sem freios. É ínsito ao pensamento de um sujeito titular de direitos que pode exercê-los da maneira como melhor entender, de acordo com as suas necessidades e ideais, cuja licitude é presumida.
Todavia, a existência de um estado democrático de direito acarreta a imposição de limitações, de tal sorte que as pessoas - públicas ou privadas - devem exercitar os seus direitos consoante circunscrito pelo ordenamento jurídico, não podendo deles abusar.
A teoria do abuso do direito não cuida especificamente da violação de um direito de outrem ou da ofensa a uma norma tuteladora de um interesse alheio, mas do exercício anormal de direito próprio.
Não é um instituto exclusivo do Direito privado. Pelo contrário. Vale lembrar que a primeira tentativa histórica da introdução do abuso de direito no sistema positivo brasileiro ocorreu no anteprojeto de reforma da Lei de Introdução ao Código Civil (clique aqui), apresentado sob a denominação de "Lei Geral de Aplicação das Normas Jurídicas", do professor Haroldo Valladão, como artigo 11, sob a rubrica "Condenação do Abuso de Direito".
Afinal, para o ilustre professor, "esse princípio supremo de justiça social, que é a condenação do abuso de direito, evidentemente não pode ficar apenas num dos vários Códigos ou das várias Leis, existentes no país. É fundamental, básica, deveria estar na própria Constituição (clique aqui). No plano da legislação ordinária o seu lugar é no princípio de todas as leis, na lei Preliminar, na Lei Introdutória, na Lei Geral de Aplicação das Normas Jurídicas".
Tem-se, pois, que o artigo 187 do Código Civil de 2002 (clique aqui), responsável pela positivação da cláusula geral de responsabilidade pelo abuso de direito em nosso sistema, é tanto mais importante no campo do direito público em virtude dos princípios que delimitam o comportamento da Administração Pública, em específico, o da moralidade e legalidade (artigo 37, caput, da CF). Não é demais lembrar que, indiretamente, o abuso de direito tem sido importante instrumento para coibir a infinidade de recursos protelatórios da Fazenda.
Como já sustentamos em outra oportunidade (Cláusulas contratuais gerais, Saraiva, 2008, p. 156) a sanção do ato abusivo é variável e deve ser determinada caso a caso. Pode gerar a reparação natural, indenização pecuniária, uma infinda gama de hipóteses, como nulidade, anulabilidade, inoponibilidade, rescindibilidade do ato ou negócio. A determinação da sanção, que em última análise se aplicará ao ato abusivo, só deverá ser feita em função e de acordo com as circunstâncias específicas da modalidade de contratação (público ou privada) e em razão do comportamento concretamente assumido pelo titular do direito.
Tratando especificadamente das práticas contratuais comumente adotadas pelo Poder Público, normalmente precedidas de cláusulas predispostas pela Administração, podemos destacar dois exemplos claros de abuso de direito, a admitir o controle judicial de tal prática:
1) comportamento contraditório (venire contra factum proprium) face à negativa de pagamento de faturas em aberto após ter atestado a prestação do serviço, feito pagamentos parciais e feito promessa de quitação total do débito dos contratos e também
2) casos de falta de qualquer solução dos processos administrativos instaurados para pagamento, normalmente diligentemente conduzidos pelo particular.
Vale ressaltar que o fundamento desse princípio da proibição do comportamento contraditório é "a confiança na coerência daquele que pratica o factum proprium" (Anderson Schreiber, A Proibição de Comportamento Contraditório, Tutela da confiança e venire contra factum proprium, Renovar, 2005, pp. 147/148.) Dentre as conseqüências do princípio que veda o comportamento contraditório estão a de impedir a prevalência da conduta contraditória e a de impor o dever de reparar os danos provocados.
A doutrina faz referência a algumas situações indicativas da prática de abuso pela confiança despertada que se encaixam perfeitamente ao caso concreto: gastos e despesas provocadas pelo fato, publicidade da expectativa, medidas adotadas ou de abstenção provocadas pelo fato próprio, ausência de qualquer sugestão de mudança futura do comportamento.
Há a abuso de direito qualificado pelo comportamento contraditório (venire contra factum proprium) quando o Poder Público firma posição inequívoca de aceitação do pagamento e, posteriormente, sem qualquer justificativa, mesmo após ter realizado pagamentos parciais e atestado a prestação do serviço, seguindo cegamente a política adotada por uma dada Administração negar pagamento sob a justificativa, por exemplo, da prescrição. Tal comportamento contraditório é agravado quando o Poder Público cobra, em ato subseqüente, multas contratuais atestando, portanto, que os contratos estão válidos e eficazes.
O comportamento abusivo do Poder Público não se materializa, apenas, no comportamento contraditório tomado pela Administração, mas também na falta de qualquer solução aos procedimentos administrativos que, mesmo diligentemente conduzidos pelos particulares e, surpreendentemente, após longos anos de tramitação indicando a realização da contraprestação contratual, nega-se o direito de crédito por razão estranha as partes, invocando também, na maioria dos casos, a prescrição.
Resgata-se, por isso, a outra figura do abuso de direito (por violação da boa-fé), conhecida na doutrina pela suppressio, que se materializa quando uma posição jurídica, não tendo sido exercida durante certo tempo, não pode mais sê-lo por, de outra forma, atentar contra a boa-fé, ocorrendo, assim, uma supressão de certas faculdades jurídicas, pela conjugação do tempo com a boa-fé.
Ensina Renan Lotufo (Código civil comentado: parte geral, p. 504) a suppressio é a situação de inércia no exercício de direito, por um lapso de tempo, que não permite mais o exercício, por contrariar a boa-fé. A suppressio deve ser entendida no sentido restrito de inadmissibilidade do fazer valer pretensão cujo exercício tenha sido deslealmente retardado.
Portanto, no exemplo, não acolhida a tese da força interruptiva da prescrição com a pendência dos processos administrativos sem solução, a suppressio é aplicável justamente na inatividade de uma posição jurídica do Poder Público, tutelando-se a confiança e a boa-fé do particular, fazendo com que essa posição jurídica não possa mais ser exercida pelo Poder Público. Sua configuração se baseia no transcurso de tempo, na inatividade do titular e na formação da confiança do obrigado, motivada por dita inatividade.
A teoria do abuso de direito passa a ser, portanto, importante arcabouço de tutela dos contratados pela Administração, impedindo que a aludida supremacia do interesse público, reiteradas vezes invocada pelos julgados, seja confundida (e por isso enfraquecida) como mecanismo de política e de manipulação de uma passageira gestão de governo.
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*Mestre e doutorando em Direito Civil pela PUC/SP e sócio do escritório Edgard Leite Advogados Associados
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