O direito de defesa e o interrogatório on-line
O STF julgou inconstitucional a Lei paulista n.º 11.819/2005, que permitia a realização de interrogatórios por meio de videoconferência em todo estado de São Paulo. A competência para legislar a respeito da matéria, acentuou a Corte de Justiça, é do Congresso Nacional, com elaboração de uma lei a respeito, nos exatos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
Atualizado em 3 de dezembro de 2008 10:01
O direito de defesa e o interrogatório on-line
Eudes Quintino de Oliveira Júnior*
O STF julgou inconstitucional a Lei paulista n.º 11.819/2005 (clique aqui), que permitia a realização de interrogatórios por meio de videoconferência em todo estado de São Paulo. A competência para legislar a respeito da matéria, acentuou a Corte de Justiça, é do Congresso Nacional, com elaboração de uma lei a respeito, nos exatos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal (clique aqui).
Muito se tem falado a respeito da obrigatoriedade do comparecimento do preso à audiência judicial, justamente porque o Código de Processo Penal (clique aqui) adotou, dentre outros princípios, o da imediatidade, que compreende o contato direto do juiz com o réu, o olhar nos olhos, tanto na colheita da prova, como também na avaliação de sua postura e impressões recolhidas no ato. O acusado, como regra basilar, tem que conhecer quem o acusa, quem o defende e quem o julga, para não ser mais um personagem kafkiano.
Mas a lei deve se submeter à realidade nacional. O ajustamento da lei é fator decisivo para a implementação da Justiça mais correta e de acordo com a vontade popular, aquela que brota do exercício individual da cidadania e do bom senso. Hoje, para se atender à determinação judicial de encaminhar o preso à audiência, organiza-se uma escolta, envolvendo policiais civis e militares e agentes penitenciários. Sem mencionar os casos de presos especiais que se deslocam via aérea, com considerável movimentação de pessoas ligadas à área de segurança. Todo este procedimento coloca em risco a segurança do próprio detento, da comunidade e dos agentes envolvidos, pois o vai-e-vem de presos representa, por si só, uma ameaça à segurança pública, pela possibilidade de resgate e outros atentados. Nossos fóruns, para onde são encaminhados os acusados, de construções obsoletas, sem qualquer sistema de segurança adequado, não oferecem a mínima garantia para seus funcionários e freqüentadores, em caso de qualquer tentativa de resgate.
O Senado Federal, em boa hora, aprovou o projeto de lei, já encaminhado para o Presidente da República para sanção, onde faculta a realização de interrogatórios e audiências criminais por meio de videoconferências. O procedimento, além de mais seguro, garante todas as franquias e salvaguardas processuais da defesa. De um lado, na sala de audiência, posicionam-se juiz, promotor e advogado. De outro, no presídio, em sala devidamente preparada, o acusado, outro advogado e o técnico encarregado da operação, comunicando-se todos por meio de dois monitores. Toda a audiência será gravada em DVD. Nada obsta também que o juiz se desloque para o estabelecimento penitenciário para realizar o ato, desde que seja garantida a segurança de todos que participarem da audiência.
As vantagens são inúmeras: economia no transporte de presos, a ausência de escolta, a liberação de mais policiais para o patrulhamento das ruas, o fim das tentativas de resgate, economia para os cofres públicos, a não exposição de presos algemados nos corredores dos fóruns, muitas vezes em situação degradante, em contato com adolescentes e pessoas do povo que ali freqüentam, e, por fim, em benefício da própria celeridade processual.
Não se trata aqui de uma tecnologia de clicar o botão para resolver o ato processual. Apesar de todo o inconformismo da OAB, no sentido de que o expediente pode intimidar o preso, impedindo-o de se expressar com liberdade, a realidade nacional reclama a medida de exceção. René Ariel Dotti, quando o interrogatório ainda era ato inquisitivo do juiz, com muita propriedade, com os recursos de seu ampliado pensamento jurídico, combatia a inovação, afirmando: "É preciso ler nos lábios as palavras que estão sendo ditas; ver a alma do acusado através de seus olhos; descobrir a face humana que se escondera por trás da máscara do delinqüente. É preciso, enfim, a aproximação física entre o Senhor da Justiça e o homem do crime, um gesto de alegoria que imita o toque dos dedos, afresco pintado pelo gênio de Michelangelo na Capela Sistina e o representativo da criação de Adão."1
Hoje, no entanto, a população se manifesta em sentido contrário. Teme o recluso em razão da periculosidade ostensiva, pelo simples fato de ser ele transportado para a sede do juízo, mesmo com o aparato judicial adequado. O olhar nos olhos que impulsionou a chamada fase romântica do Direito Penal, não deve passar do monitor e o olhar frio do delinqüente será lançado somente para a máquina, sem afetar as vítimas.
Ocorre que, em razão das novas regras processuais penais, tanto o interrogatório, como outros atos processuais, assumem posicionamentos que ultrapassam os limites do próprio processo. A garantia que antes era exclusiva do acusado, passa a ser reclamada pela população, que busca seu espaço de proteção. O local onde é realizado o ato processual também disputa com a freqüência popular, que não aceita o compartilhamento de risco. O "qualquer um do povo", expressão utilizada freqüentemente pelo legislador processual penal, concorda que processo deve seguir todas suas regras, seus corolários, preservar todos os direitos do acusado, mas não pode se esquecer de tutelar os direitos dos cidadãos que se encontram em liberdade. Até mesmo numa reflexão mais aprofundada a respeito, buscando as soluções mais técnicas e adequadas, compostas de idéias que caminham para o futuro, o acusado preso irá se sentir mais confortável, mais seguro e menos invadido em sua intimidade se ofertar seu interrogatório no presídio onde se encontra, cercado, é claro, das garantias processuais a ele conferidas. Não será exposto algemado pelos punhos e pelos pés, quase que rastejando pelos corredores, aos olhos da comunidade, que terá sua atenção voltada para tal cena dantesca. Muitos, revoltados, bradarão: ecce homo, num misto de ódio e vingança. Outros, mais ousados, cobrarão a justiça imediata, conclamando a turba para o julgamento. Ameaças geralmente proferidas na presença dos familiares dos presos, que com ele dividem a carga depressiva.
A atual redação do artigo 399 § 2.º, do Código de Processo Penal, introduzida pela Lei 11.719/2008 (clique aqui), consagra definitivamente o princípio da identidade física do juiz no processo penal. O magistrado que realizar o interrogatório, ato que se inclui no âmbito da instrução processual, deverá proferir a sentença. É a vinculação direta do juiz à causa e a seus personagens. É a oportunidade de se buscar uma verdade que seja coerente com a investigação judicial, fazendo com que o acusado seja participante ativo, justificando sempre sua conduta e apontando para sua absolvição. Quanto maior o exercício efetivo da defesa, quanto mais dilatado for o contraditório, mais justo será o julgamento. A não ser que o réu lance mão da garantia constitucional do nemo tenetur se detegere e tal tarefa será realizada exclusivamente pelo defensor técnico. Sem olvidar, também, que no interrogatório realizado por precata, o juiz da causa não terá o contato com o acusado e jamais obterá informações outras que não aquelas constantes das lineares linhas, sem qualquer revestimento emocional.
Nesta sistemática processual penal, o interrogatório é considerado meio de defesa, pois permite ao próprio acusado, na amplitude constitucional da ampla defesa, responder, se quiser, as perguntas formuladas pelo juiz e apresentar provas para amparar sua pretensão absolutória. Não só. A nova redação dada ao artigo 188 do Código de Processo Penal, pela Lei n.º 10.792/2003 (clique aqui), confere ao defensor o direito de reperguntas, com a finalidade de esclarecer eventuais fatos que venham a comprometer seu cliente. Sem falar, ainda, do direito de entrevista reservada do acusado com seu defensor, antes da inquirição.
Ora, todos estes direitos e outros mais específicos, encontram-se inseridos no interrogatório por meio de videoconferência, possibilitando até mesmo a fiscalização da sala reservada para o ato pelos membros do Ministério Público, da Magistratura, serventuários da justiça e pela Ordem dos Advogados do Brasil.
A proposta de implantação do recurso tecnológico de presença virtual será uma grande conquista e representará um considerável fator de segurança para a população. O ato processual do interrogatório será realizado com toda a garantia processual, com a observância do contraditório em sua plenitude e com condições favoráveis para que o acusado possa oferecer sua versão, sem intimidação e constrangimento à sua dignidade. Não será o interrogatório realizado por videoconferência que irá cercear os direitos defensivos do acusado, nem impedir o tête à tetê preconizado em lei.
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1 DOTTI. R. A. O interrogatório à distância: um novo tipo de cerimônia degradante. Revista dos Tribunais, n.º 740, p.480, jun. 1997.
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*Advogado, Promotor de Justiça aposentado e Reitor da Unorp
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