Comentários às propostas de modificação do CPC (PL´s 132 a 140)
No final de Agosto desse ano, o Senador Pedro Simon (PMDB), atendendo sugestões da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), apresentou nove projetos de lei, visando a modificar o Código de Processo Civil, proporcionando maior celeridade no processo e eficácia das decisões proferidas.
quarta-feira, 13 de outubro de 2004
Atualizado em 8 de outubro de 2004 12:14
Comentários às propostas de modificação do Código de Processo Civil (PL's 132 a 140)
As propostas de reforma do Código de Processo Civil e o Poder Judiciário
Tiago Cardoso Zapater
Alice Andrade Baptista*
No final de Agosto desse ano, o Senador Pedro Simon (PMDB), atendendo sugestões da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), apresentou nove projetos de lei, visando a modificar o Código de Processo Civil, proporcionando maior celeridade no processo e eficácia das decisões proferidas.
Os Projetos vêm na esteira da Reforma do Judiciário, que prevê articulação entre as modificações constitucionais no Poder Judiciário e as regras processuais legais.
Parece às vezes consenso o pressuposto de que o Judiciário é lento em razão do excesso de ações, que sobrecarregariam os juízes e a estrutura judiciária, e do excesso de recursos, o que tornaria o processo mais lento e sobrecarregaria as instâncias superiores.
Solução apresentada: diminuir o número de ações e de recursos, "desafogando" o Judiciário.
Discordamos do pressuposto adotado, o que nos levou também a discordar, de uma forma geral, das soluções propostas pelo Senador, conforme será visto ao longo deste ensaio1.
Sem dúvida, o volume de ações e recursos sobrecarrega o Judiciário. Da mesma forma, o número de doentes sobrecarrega a Saúde Pública, a violência desenfreada sobrecarrega a Segurança, o número de aposentados sobrecarrega a Previdência, e assim por diante.
A alta demanda pelo Judiciário significa que há um grande volume de lesões ou ameaça de lesões a direitos, a respeito dos quais a população está mais consciente.
Dizer que o Judiciário é lento em razão do número de demandas é tão legítimo quanto dizer que a Saúde é ineficiente em razão do número de doentes. O Judiciário só existe para atender demandas judiciais.
Reduzir o número de demandas, sem dúvida, é importante, mas, para tanto, deve-se focar a prevenção na origem do problema, e não impedir ou limitar sua apreciação pelo Judiciário depois que já há o conflito que o faz preciso.
Criar barreiras ao ajuizamento de ações, como o indeferimento da inicial em desacordo com a jurisprudência dominante (PL 134/04), além de inconstitucional, é hipócrita, já que o próprio Estado, que figura em 80% das ações judiciais no Brasil, pode reduzir a demanda, por exemplo adotando políticas diferenciadas para ações e recursos contra o contribuinte.
Além disso, o juízo prévio de procedência da ação, cria uma nova fase processual, na qual as partes irão até o Supremo Tribunal Federal para fazer valer o seu direito de obtenção de tutela, antes mesmo do recebimento da ação na primeira instância, a exemplo da motion practice do direito norte-americano.
Alega-se também que o número de recursos existente seria demasiado, e que os advogados, ambiciosos, os utilizariam em má-fé, levando processos às últimas instâncias apenas para postergar o cumprimento de decisões que saberiam inevitáveis.
A litigância de má-fé é tão culpada pelos problemas do Judiciário quanto a corrupção. Existe e deve ser sempre punida, mas é exceção, e não a regra. Não são os recursos de má-fé que lotam o judiciário, assim como não são os juízes corruptos que entravam o bom andamento dos processos.
Os recursos existem conforme a necessidade da parte, diante de uma decisão concreta que lhe cause prejuízo, e não da sua previsão abstrata em lei. Sempre que uma decisão causar prejuízo à parte, haverá recurso. Se não houver previsão na lei, será impetrado Mandado de Segurança, ou seja, sem qualquer contribuição para diminuir o volume nos Tribunais.
Vale notar também que, conforme constatou o Diagnóstico do Judiciário2, mais de 80% dos processos concentra-se na primeira instância, e não nos Tribunais, ou seja, não há um represamento de julgamentos em razão de recursos. O estudo apontou também que grande parte das ações não chega à segunda instância3.
Portanto, as soluções apresentadas no sentido de diminuir o cabimento de ações e recursos não tendem a diminuir o volume de trabalho do Judiciário, pois enfocam o problema de uma perspectiva errada.
São os conflitos sociais que levam a população a buscar o Judiciário, e não a previsão abstrata da lei para esta ou aquela ação.
Não se está a propor uma perspectiva niilista, mas sim uma tentativa de focar o problema adequadamente. A tentativa de diminuir o volume de ações e de recursos pode não representar uma saída, a não ser que sejam violados por completo direitos fundamentais de acesso à justiça, tutela jurisdicional e devido processo legal.
É importante notar que o número de juízes por habitante no Brasil apresenta uma grande desproporção em relação a outros países. Há cerca de 7,7 juízes para cada 10 mil habitantes, enquanto na Alemanha, por exemplo, a proporção é de 28 para cada 10 mil habitantes4.
É evidente que temos muitos processos para poucos juízes. Assim, parece mais razoável focar a solução no aumento do número de juízes, funcionários e infra-estrutura geral do Judiciário, em vez de tentar diminuir o número de processos.
O Diagnóstico mostrou que, dos países pesquisados, o Brasil é dos que mais gasta com o Judiciário em relação ao orçamento (cerca de R$ 26 bilhões em 2002).
Ainda assim, a Justiça Paulista, com maior número de processos por habitante, cuja greve dos servidores já está virando tradição em anos pares, sofre de falta de pessoal, falta de equipamentos, muitos foros não estão informatizados, muitos juízes compram o próprio material para seus gabinetes.
Por outro lado, apesar de termos poucos juízes e a infra-estrutura geral carecer de investimentos, o Brasil é um dos países em que os magistrados possuem melhor remuneração, ficando atrás apenas do Canadá5. Aparentemente, o Judiciário gasta muito em uma folha de pagamentos concentrada, e investe muito pouco em infra-estrutura6.
Parece-nos que o problema é muito menos o número de ações e recursos do que a organização da Instituição do Judiciário, que não consegue atender à demanda crescente.
Será que precisamos de Justiça Federal, Tribunal de Justiça, Tribunal de Alçada (dois em São Paulo), Justiça do Trabalho, Justiça Eleitoral, Justiça Militar (inclusive em tempo de paz), multiplicando fontes de gastos administrativos? Será que é realmente uma boa idéia a auto-gestão financeira do Judiciário, sem participação popular?
Não seria mais racional, em vez de dois Tribunais de Alçada, que tivéssemos mais câmaras no Tribunal de Justiça, reduzindo gastos administrativos, possibilitando mais investimentos na criação de cargos e infra-estrutura?
O Diagnóstico constatou também ausência de política de incentivo à produtividade e planejamento de quadro de pessoal7.
Será que a estabilidade e os privilégios das carreiras públicas colaboram para o bom funcionamento do Judiciário, ou atrapalham a modernização, perpetuam práticas burocráticas, e possibilitam a permanência de funcionários despreparados, incompetentes, e indolentes, infelizes exceções que fazem, injustamente, a fama de regra?
Não pretendemos lançar ataques ao Judiciário nem a sua desmoralização de qualquer modo. Pretende-se apenas mostrar que, todos os dados obtidos até o momento, sejam imprecisos, distorcidos ou contestáveis, indicam que a falta de celeridade e eficácia do Judiciário se deve muito mais a problemas institucionais do que ao Código de Processo Civil.
Enquanto esses problemas não forem solucionados, vamos continuar a reformar periodicamente o Código de Processo Civil, renovando o novo e redescobrindo o velho em um ciclo interminável, pois que não se dirige à origem do problema.
Como se verá ao longo desse ensaio, em que analisamos cada um dos nove projetos apresentados pelo Senador, não concordamos com nenhum deles. Uns mais, outros menos, acabam por limitar o direito de ação e a segurança jurídica das decisões, ou são inócuos, por representarem nova fórmula de institutos já adotados em reformas recentes do Código de Processo Civil.
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1 O Projetos, que serão analisados individualmente ao longo desse ensaio, buscam atingir esses objetivos, possibilitando ao juiz, de plano, análise de admissibilidade da ação, conforme entendimento pacificado das cortes superiores (PL 134/04), antecipando, portanto, uma decisão que será inevitável; e diminuir o número de recursos cabíveis (PL 137 e 138/04), hipóteses de admissibilidade, quando em confronto com entendimento superior (PL 137 e 140/04) bem como impor sanções para interposição de recursos que não venham a ser acolhidos (PL 133/04). Outros dois projetos visam a instituir penas mais severas para o descumprimento de determinações processuais e atos de litigância de má-fé (PL 132 e 135/04), e aumentar eficácia da sentença, retirando o efeito suspensivo da Apelação (PL 136/04).
2 Trabalho de pesquisa publicado pelo Ministério da Justiça no ano de 2004. Referido trabalho recebeu diversas críticas do Judiciário quanto à sua metodologia, e está sendo revisto pela comissão. Contudo, acreditamos que, no geral, as conclusões que vierem a ser revistas não interferem diretamente com os dados ora utilizados, em especial, quanto à conclusão de que o problema maior de estrangulamento está na primeira instância, e não na segunda, dado o número de processos julgados. As críticas apresentadas voltam-se mais às conclusões quanto à produtividade geral dos juízes, cargos criados e base de dados utilizada para constatação dos salários dos magistrados.
3 Em 2003, 8.169.115 processos foram julgados na 1a instância, enquanto que apenas 720.109 entraram nos Tribunais.
4 Ainda que, nesse ponto, tenha-se criticado o Diagnóstico, por não ter considerado os Juizados Especiais Cíveis, a existência de vagas em aberto na Justiça Federal e Varas já criadas, que ainda não foram implementadas, ainda que se constatasse a existência do dobro de juízes, a desproporção seria grande.
5 Essa informação tem sido bastante contestada pela magistratura, que afirma que os dados do Banco Mundial, que ensejaram essa conclusão, seriam imprecisos. Contudo, é o único dado existente, sem que haja motivo concreto para ser contestado, na falta de outra pesquisa. Claro que o resultado pode apresentar distorções, como uma concentração de alta renda para alguns juízes e desembargadores mais antigos, alterando a média, enquanto juízes que ingressaram na magistratura sob outras condições de remuneração, teriam renda menor. Isso não muda, contudo, o fato, em termos absolutos, de que há um alto gasto no Judiciário com a folha de pagamento, ainda que mal distribuída.
6 O Diagnóstico constatou que, em 80% da primeira instância não há padrão ou planejamento para renovação de equipamentos.
7 95% da primeira instância não possui políticas de premiação por produtividade; 75% não possui controle de metas do quadro funcional;
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* Advogados do escritório Azevedo Sette Advogados
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