O contexto político e jurídico da Medida Provisória n. 446/08 e a relevância de sua edição
O exaustivo debate hoje em torno da viabilidade jurídica e política da Medida Provisória n. 446, encaminhada pela Presidência da República ao Congresso Nacional no último dia 7 de novembro de 2008 agora coloca todo o sistema de assistência social do Brasil em condições precárias e sem um rumo definido, principalmente se considerada a falência do sistema anterior, que demorava até 10 anos para processar um único pedido de certificação.
terça-feira, 25 de novembro de 2008
Atualizado em 24 de novembro de 2008 11:52
O contexto político e jurídico da Medida Provisória n. 446/08 e a relevância de sua edição
Kildare Araújo Meira*
João Paulo de Campos Echeverria*
O exaustivo debate hoje em torno da viabilidade jurídica e política da Medida Provisória n. 446 (clique aqui), encaminhada pela Presidência da República ao Congresso Nacional no último dia 7 de novembro de 2008 agora coloca todo o sistema de assistência social do Brasil em condições precárias e sem um rumo definido, principalmente se considerada a falência do sistema anterior, que demorava até 10 anos para processar um único pedido de certificação.
Nesse contexto, para que se questionar a atitude do Governo, que ainda acredita na parceria com as instituições assistenciais, é necessário que seja esclarecida a conjuntura na qual a medida provisória foi publicada, o que revela elementos importantes para se determinar o alcance desse novo marco legal da filantropia.
Na ordem cronológica dos acontecimentos, a orquestração da "operação fariseu" encampada pela força tarefa criada pelo Ministério Público Federal, Polícia Federal e Receita Federal - cujo objetivo seria a desmoralização do Conselho Nacional de Assistência Social como instância de certificação das entidades filantrópicas e o esquecimento do princípio constitucional da participação da sociedade civil no processo de certificação - foi fundamental para a apresentação do Projeto de Lei n. 3.021/2008 - clique aqui (depois apensado ao PLS 7494/06).
Esse Projeto de Lei, por sua vez, tinha como premissa maior a centralização dos atos de certificação nas mãos do Poder Público, como ato exclusivo do Governo, sob a regência dos Ministérios da Saúde, Educação e do Ministério de Desenvolvimento e Combate a Fome, e na repetição de velhos critérios quantitativos que trocam a obrigação de recolher tributos por obrigações de fazer assistência social.
O efeito inicial da "operação fariseu" criou a falsa sensação no Governo de que o PL n. 3.021 tramitaria à toque de caixa. Entretanto, com o passar do tempo e a ausência de consistência nas denúncias feitas pela espetaculosa operação, somada a mobilização do setor filantrópico no Congresso Nacional (notadamente as Santas casas de Misericórdia), passou a haver nítida resistência a tramitação do Projeto na velocidade esperada pelo Governo.
Nesse meio tempo, correndo em paralelo, como tem sido comum ultimamente, o STF fez prevalecer uma antiga disputa dos tributaristas e editou a Súmula Vinculante nº 8 (clique aqui), que reduziu o prazo de decadência das contribuições sociais dos inconstitucionais 10 anos, que vinham sendo aplicado pela administração desses tributos, para os 5 anos, conforme previsto pelo Código Tributário Nacional, com reflexo direto sobre o enorme volume de processos administrativos de certificação pendentes no Conselho Nacional de Assistência Social e no Ministério da Previdência Social (que realizava atividade recursal dos processos).
Assim, por decorrência lógica da Súmula editada pela Corte Constitucional, em face da aplicação da regra de decadência em 5 anos, todos aqueles procedimentos pendentes de apreciação, seja do ponto de vista recursal ou mesmo de renovação do certificado, perderam seu objeto tributário, já que passaram a se referir a períodos inalcançáveis por qualquer fiscalização e, dessa forma, independentemente da sorte dos processos de certificação pendentes, o resultado financeiro de arrecadação passou a ser inútil com a Súmula Vinculante 8/STF.
Sempre atento a moverem-se ideologicamente contra as entidades beneficentes de assistência social educacional, setores do Ministério Público Federal ligados a famigerada força tarefa MPF/PF/RFB, não mediram forças no sentido de pressionar o Ministro da Previdência com a possibilidade de ação de improbidade administrativa no caso de os processos que seriam atingidos pelo manto decadencial não serem julgados até novembro de 2008, o que levou, nesse meio tempo, o Governo a editar a ilegal Portaria Interministerial nº 241/2008 que, na prática, tinha o condão de regulamentar o PL 3.021 (uma situação absurda se considerando que Projeto é apenas uma lei em tese), antecipando a divisão de competências da certificação contida naquele PL, independentemente do que era regido pela legislação vigente, que dava competência exclusiva ao Conselho Nacional de Assistência Social.
Nessa balada, com a edição da malfada portaria, foram distribuídos ao Ministério da Educação mais de 500 processos e ao Ministério da Saúde outros 250, tudo para ser julgado em menos de 2 meses, sendo desconsiderada por completo a falta de estrutura de ambos os ministérios, que não tinham a menor condição de receber esses processos, muito menos de julgá-los no período proposto.
Assim, nessas condições, o resultado da Portaria Interministerial nº 241/2008 foi a pressão política por parte dos Ministérios da Educação e Saúde no sentido de buscar uma solução apta a resolver o problema, o que levou o Governo a se render à realidade e às dificuldades políticas de tramitação do PL 3.021 e, literalmente, atropelá-lo com a edição da MPV n. 446/2008, em que se preservou a lógica do Projeto de Lei mas, por outro lado, acresceu uma série de perdões que antes de serem benignidade com qualquer entidade são o convencimento pela razão prática que o prazo decadencial de 5 anos tornou o calhamaço de processo de certificação inócuos.
Acrescente-se, ainda, que nesse contexto mais uma vez o STF afetou a discussão do direito adquirido ao Certificado das instituições beneficentes (aplicação da Lei nº 3.577/59) para ser decidida de forma paradigmática pelo Recurso Extraordinário n. 566.622-RS (clique aqui), o que refletirá sobremaneira na discussão política que vem sendo tramada no contexto político.
Enfim, nessa conjuntura é que foi editada a MPV nº 446/2008, cujo texto propositivo trás respostas claras e soluções objetivas às regras de certificação das entidades beneficentes de assistência social, com o estabelecimento de prazos e novas condições ao próprio direito de ser tratada como instituição beneficente de assistência social, além de criar requisitos estritos e vinculantes ao exercício da imunidade às contribuições sociais, consoante a previsão constitucional do art. 195, § 7º.
O novo marco regulatório encaminhado pelo Governo por intermédio dessa Medida Provisória criou novas diretrizes no sentido de eliminar as fraquezas que levaram à falência do sistema de certificação, seja do ponto de vista procedimental ou material, revogando, inclusive, o §1º do artigo 55 da Lei nº 8.212/91 - clique aqui (fonte da tese do direito adquirido).
Como principal lamento temos o fim da participação da sociedade civil no processo de concessão e renovação dos certificados. E, entre outras medidas, houve gestos saneadores do sistema, sendo concedida uma espécie de anistia aos processos em tramitação, sejam aqueles em sede recursal, cuja certificação foi inicialmente indeferida, ou mesmo aqueles que simplesmente pedem a renovação do certificado e que há muitos anos tramitam junto ao CNAS sem qualquer resolução.
Esse, sem dúvidas, é o ponto mais polêmico e que gera maior repercussão política, uma vez que essa espécie de anistia cria uma renúncia fiscal considerável na interpretação do Ministério Público e da própria Receita Federal do Brasil. No entanto, embora haja um grande estardalhaço acerca da matéria, essa renúncia não é tão factível como pretendem aplacar aqueles que militam contra o sistema de assistência social, pois em que pese a fumaça da incidência fiscal só existe fuligem, já que o fogo, por si só, já foi alcançado pela decadência, ou seja, pouco resta de tributos a serem perquiridos pela falta de certificado e conseqüente perda da imunidade.
A realidade é que o sistema estava falido, o Conselho Nacional de Assistência Social, pós "operação fariseu", mesmo com um passivo de processos gigantesco, tinha medo de julgar e limitava-se a cumprir o mínimo da pauta mensal, prejudicando não só as instituições, mas todos os usuários de assistência social do Brasil.
Com esse cenário, de situação precária e caminhando para o fim da parceria do Estado com as entidades beneficentes de assistência social, é curioso observar o Presidente do Senado criar um fato político de tamanhas proporções com a devolução da matéria à Presidência da República, utilizando-se de um artifício - ainda mais curioso - do Regimento Interno, precisamente no art. 48, inciso XI. É fato que essa manifestação é estritamente política, fundada no exagero da edição de medidas provisórias por parte do Governo e, principalmente, pela falta de negociação prévia junto à casa legislativa.
Nesse aspecto, talvez se torne imperiosa a crítica, já há algum tempo superada tanto pelo Judiciário quanto pelo próprio Executivo, de que se o Congresso realizasse suas atividades ordinárias talvez estivessem aptos a acompanhar o tempo e as necessidades da sociedade, pois, como se viu do contexto ilustrado, o Projeto de Lei que discutia a matéria veiculada pela Medida Provisória tramitava sem qualquer atenção por parte dos parlamentares, com a ressalva do relator e alguns pouquíssimos interessados.
Talvez, as eleições municipais sejam mais valiosas, merecedoras de maior atenção, do que as necessidades da sociedade.
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*Sócios do escritório Covac - Sociedade de Advogados
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